Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação | Els Lagrou

Professora de programas de pós-graduação em Sociologia e Antropologia no Brasil (IFCS, UFRJ), membro de importantes instituições internacionais como o Groupement de Recherche International (GDRI) e dedicada, desde 1989, à pesquisa de campo junto aos Kaxinawa na fronteira oeste do Brasil, Els Lagrou é referência nos estudos de temáticas relacionadas à antropologia da arte, das imagens, dos objetos, das emoções e das filosofias sociais ameríndias. Sua extensa pesquisa durante o doutoramento resultou na publicação de A Fluidez da Forma: arte, alteridade e agência em uma Sociedade Amazônica (Kaxinawa); retomada em muitos aspectos em seu segundo livro – Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação – que apresenta, além das discussões teóricas, uma preocupação didática perceptível na utilização de uma linguagem mais acessível ao grande público, inclusão de glossário e orientações pedagógicas desenvolvidas por Lúcia Gouvêa Pimentel e Willian Resende Quintal.

Nesta sua mais recente publicação – Arte Indígena no Brasil: agência, alteridade e relação – a autora organiza um ensaio teórico sobre a especificidade da arte indígena sem pretender, como ela mesma destaca na introdução, esboçar um panorama das artes existentes no Brasil. O texto organiza-se em quatro capítulos cujos desenvolvimentos dialogam com belas imagens selecionadas para análise e exemplificação, seguidos da conclusão, de mapa sobre as etnias referidas e das orientações pedagógicas.

O primeiro capítulo ocupa-se com problemáticas teóricas importantes em torno da tradicional distinção entre arte e artefato e o papel da inovação na produção selecionada como artística na cultura ocidental. Partindo de indagações sobre como falar da arte de povos que não possuem esse conceito tal qual nós o conhecemos, a autora relembra alguns momentos da cultura ocidental em sua relação com a história da arte, suas classificações, inovações, a introdução da arte conceitual – que se distancia da noção do belo tão marcante na filosofia moderna do século XVIII –, e questiona se realmente podemos afirmar que os indígenas desconhecem o que convencionamos chamar de arte.

Para dar conta dessas indagações, Lagrou pontua algumas especificidades das produções indígenas como a inexistência da figura do artista, da individualização e, principalmente, a indissociabilidade entre arte e artefato. Esta última, tratada à luz do importante debate entre Arthur Danto e Alfred Gell, no qual o segundo encerra a questão mostrando que nestas sociedades não há como separar os objetos meramente utilitários daqueles com alguma outra característica que o conceba como artístico, uma vez que para estes povos nada está isolado de sua trama de significados culturais.

Assim, por meio de uma série de exemplos de práticas de algumas etnias indígenas brasileiras, o texto conduz o leitor à compreensão de que dependendo do contexto simbólico elencado, o feio pode ser o belo, a inovação na produção pode ser considerada perigosa e desvalorizada, que a escolha de cores, formas e técnicas pode estar associada a elementos humanos e não humanos constituindo expressão de conhecimentos, de saber, e, portanto, são reflexivos e têm um poder de ação no mundo. Fica claro que para estas etnias, a noção estética construída não se relaciona ao incomum, ao extraordinário como durante muito tempo nos acostumamos a ver, mas ela existe e se faz presente nas mais diversas expressões e produções.

A ênfase na identificação que as culturas indígenas fazem de corpos com artefatos é discutida no segundo capítulo e propõe uma redefinição da noção de corporalidade dessas etnias. O corpo é entendido como um fazer dos pais e da comunidade e afastado da noção de entidade biológica que se desenvolve com certa autonomia. Relatando exemplos das culturas Wayana e Kaxinawa, a autora destaca que a sobreposição de discursos referentes à produção de corpos e à produção de artefatos expressa a peculiaridade do fazer artístico ameríndio que não pode ser entendido de maneira isolada, mas integrada aos seus valores culturais e vivências cotidianas. Essa interação entre objetos e corpos, rotina diária e signos culturais não se dá apenas no mundo prático, real. Ela também se associa ao mundo sobrenatural de forma que todo fazer representa uma ligação entre mundos: o interno e externo de cada pessoa, sua sociabilidade com os demais membros da comunidade, seus ancestrais e as entidades sagradas. Neste contexto, a inovação nem sempre é positivada, antes é a continuidade, o fazer ritualizado e repetido de forma ancestral que opera a noção de beleza e harmonia nessas sociedades. Essas reflexões ocupam o terceiro capítulo e apoiam-se nas contribuições de Joanna Overing e Franz Boas, entre outros, para mostrar a inexistência da figura específica do artista – já que todos podem ser assim considerados – e que a arte ameríndia deve ser compreendida de maneira mais ampla e anterior à especialização sofrida durante o iluminismo, se referindo mais à capacidade e intencionalidade de se produzir objetos a partir do controle de técnicas que representam a fruição de um aperfeiçoamento em termos funcionais, ornamentais e de agência.

O último capítulo demonstra, com a descrição de práticas e concepções apuradas junto aos povos amazônicos, as ideias apontadas nos capítulos anteriores, ressaltando a integração dos mundos físico, natural, prático e sagrado na criação de artefatos funcionais, rituais e nas pinturas corporais, bem como a intenção de agência nesses mundos a partir desses fazeres. Assim, a autora finaliza sua tecedura teórica destacando que o olhar etnológico para as artes indígenas não pode se referenciar em nenhuma definição de arte já determinada, e propõe uma inversão de perspectiva centrada na possibilidade de coexistência e sobreposição de mundos que não se excluem, mas que se criam e se transformam.

Com a reflexão sobre a alteridade, agência e relação com a arte indígena, o estudo de Els Lagrou aponta para uma necessidade de se entender as artes ameríndias em sua especificidade, pois não há somente um parâmetro para a compreensão da arte. Como ainda não temos um paradigma que possa ser aplicado a todas as sociedades indígenas, o pesquisador precisa considerar a fluidez e sobreposição de mundo para a interpretação dos sentidos integrantes da arte numa dada sociedade indígena.

No estudo da etnoarte, o pesquisador deve considerar a ideia de fluidez, pois, se por um lado, a teoria é o elemento orientador da pesquisa, por outro lado, ela precisa ter a capacidade de flexibilidade ou de descentrar o olhar ocidental marcante destas orientações para conseguir compreender os significados intrínsecos da arte na sociedade indígena.


Resenhista

Oseias de Oliveira – Doutor em História pela UNICENTRO. E-mail: oseias50@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. Resenha de: OLIVEIRA, Oseias de. Agência e alteridade na arte ameríndia. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 235-237, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

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