As relações entre os termos Arte e Política são complexas e por vezes, paradoxais. Durante o longo processo histórico de constituição do campo artístico em sua forma moderna, posições divergentes têm defendido tanto a total autonomia entre arte e política, quanto a indissociabilidade de suas conexões. Entre um extremo e outro, seguimos com Jacques Rancière, quando argumenta que “arte e política tem a ver uma com a outra como formas de dissenso, operações de reconfiguração da experiência comum do sensível” (2012: 63). Nestes termos, entendemos que as relações entre arte e política passam pelos temas abordados pelos artistas em suas obras, assim como por suas opções formais, estéticas, por seus processos de trabalho e de exibição. Os projetos de curadoria e de exposição, por sua vez, podem ser considerados como tomadas de posições políticas, tanto em relação às questões específicas do mundo da arte, quanto aos limites sobre o que é aceito socialmente como arte em um momento dado ou às transgressões das fronteiras da moral ou do “bom-gosto”. A atuação de historiadores e críticos de arte também pode ser pensada nestes termos, se consideramos suas narrativas como construções de poder simbólico. Por fim, as relações de poder entre os agentes, as instituições – museus, academia – e a lógica contemporânea de funcionamento do mercado produzem e conectam diferentes circuitos, gerando impactos diversos nos papeis e no lugar ocupado pela arte na sociedade contemporânea.
Após um longo processo histórico de construção e consolidação, no qual a Academia exerceu um poder regulador sobre os limites entre o que poderia ser reconhecido como Arte legítima, o século XXI provê um cenário em que se multiplicam e diversificam as instâncias de regulação, esgarçando de forma impressionante as fronteiras entre os campos da arte e da não-arte. Se o mundo da arte foi historicamente fundado na possibilidade de um exercício da liberdade individual, como reinado da subjetividade e no ideal da autonomia, em que medida poderíamos avaliar os efeitos de suas proposições em discursos políticos e culturais mais amplos, postulados como coletivos? Ao mesmo tempo, os mundos sociais que emergem das redes de relações entre indivíduos, práticas, instituições e objetos engendrados como arte, talvez nos auxiliem a compreender outros processos de estabilização e ruptura em nossos sistemas de crenças, valores, laços identitários, regimes de socialização e solidariedades.
O Dossiê Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições lançou um convite ao debate e à reflexão sobre as complexas relações entre arte e política, considerando o papel e as questões da imagem como recorte do tema, contemplando aspectos relativos ao sistema de artes e suas lógicas de funcionamento na contemporaneidade, às instituições, seus modos de narrar e exibir enquanto regimes de visibilidade, assim como a potencialidade crítica da própria obra de arte quando ativada pela experiência do público.
Os noves artigos reunidos neste dossiê analisam e problematizam estas questões, passando pelas contribuições da cultura visual, da análise sistêmica, de diferentes abordagens para o complexo fenômeno da exposição e da crítica institucional até a experiência com a obra mesma, em sua emergência/urgência poética e dimensão crítica.
Arthur Valle, em seu artigo “Lula-Presidiário” e “Temer-Drácula”: imagens difamatórias no contexto da crise política brasileira, aborda as relações entre arte e política a partir da construção iconográfica da imagem dos próprios agentes políticos protagonistas da atual cena contemporânea. Os personagens, vestidos com atributos caricatos de caráter difamatório, se transformam em imagens recorrentes na cultura visual, desde charges até bonecos infláveis. Mesmo sendo tão recentes, o autor estuda com rigor histórico a origem e resignificação de tais imagens, e a importância dos lugares da representação, seja os meios de comunicação de massa, seja as redes sociais ou o espaço real da cidade.
Raúl Niño Bernal, por sua vez, nos convida a pensar os próprios limites do que entendemos por política através de uma densa argumentação sobre a noção de ecopolítica. Situado no debate sobre o desenvolvimento humano no contexto da sociedade do conhecimento, o autor apresenta em seu artigo “Ecopoliticas, no linealidad y poshumanismo” uma reflexão sobre o complexo conjunto de processos relativos à vida artificial. Neste cenário, Raúl Bernal procura perceber e discutir a dimensão criativa – ou a criatividade – em uma perspectiva não humana, tendo como justificativa a necessidade de compreendermos as profundas mudanças nos processos sociais e culturais decorrentes do estágio de desenvolvimento tecnológico contemporâneo.
Os artigos de Peter Osborne e de Bruna Fetter contribuem para a sempre necessária reflexão sobre as lógicas de funcionamento do campo da arte em uma perspectiva sistêmica. Enquanto o pesquisador inglês volta sua atenção para uma instituição-pilar deste sistema – o Museu -, Bruna Fetter busca analisar as possíveis configurações do conceito de sistema de artes, propondo uma atualização do modelo de análise, na qual os fluxos são percebidos como mais relevantes do que a estrutura rigidamente demarcada por funções e papéis determinados. Seguindo essa linha de pensamento, em seu artigo “Das Reconfigurações Contemporâneas do(s) Sistema(s) da Arte” a pesquisadora enfatiza o caráter plural e as articulações em rede como aspectos necessários à compreensão da dinâmica do sistema da arte em sua dimensão contemporânea e global.
Peter Osborne, por sua vez, em seu artigo “Ilusões de Totalidade. A Contemporaneidade Global e a Condição do Museu” reflete criticamente sobre as pretensões à universalidade – concebida enquanto paradigma constitutivo das narrativas canônicas da história da arte – observando o modo como os museus de arte participam tanto da construção, quanto da revisão desta dimensão do poder simbólico.
Mirtes Marins de Oliveira traz o exemplo da 27º Bienal de São Paulo, curada por Lisete Lagnado, como forma de discutir as complexas relações entre a estrutura institucional, os conceitos curatoriais e o design de exposição. Tendo como tema a proposição “Como Viver Juntos” – título de uma série de seminários proferidos por Roland Barthes nos anos 70 – a 27ª Bienal extinguiu o modelo tradicional das representações nacionais, as quais traziam implicações políticas, econômicas e financeiras em termos de protagonismo e visibilidade para determinados artistas e movimentos, produzindo atravessamentos no trabalho de curadoria através da ocupação territorial do espaço de exposição. O conceito de display, nos termos apresentados por Pablo Lafuente, é empregado por Mirtes Marins em seu artigo “’Como viver junto’: 27ª Bienal de São Paulo e a questão nacional/internacional” para sustentar o argumento de que uma exposição é resultado do tensionamento entre objetos, pessoas, ideias e estruturas, para além dos discursos oficiais com os quais o evento se apresenta.
O conjunto dos textos de Silvia Dolinko, Taisa Palhares e Virginia Gil Araújo estabelece uma amostragem de discursos e diálogos existentes entre as figuras dos curadores, as obras/imagens, as instituições que as abrigam e o espectador contemporâneo. O potencial das imagens, independente de originariamente possuírem uma temática ou abordagem politizada, é retransformado por meio da decisão de re-exposição em novo contexto. A decisão curatorial é de fato novo gesto político, que confronta a realidade violenta dos dias atuais. Sejam gravuras, fotografias, filmes ou objetos, a condição original documental e histórica se transfigura em algo que não necessita mais do chancelamento de “ser arte”, mas tira partido do contexto de circulação da arte contemporânea, assim como de seus instrumentos, parâmetros e estratégias.
Silvia Dilinko nos apresenta De La Protesta al Malba, circuitos de intervención para las xilografías de Juan Antonio Ballester Peña. No texto, a autora aborda a recontextualização e revisão histórica das estampas políticas do artista argentino, a partir de sua inserção no novo projeto curatorial de exposição do acervo do Malba. Discute-se, desse modo, tanto o papel político do museu como potencializador de novas leituras da obra, como a própria obra enquanto fonte de novas interpretações. Especialmente, o foco em um conjunto de imagens de resistência destinadas à reprodução, que ampliaram seu alcance pela veiculação em periódicos anarquistas da época (década de 1920), e que, devido à própria hierarquia das técnicas artísticas modernas, normalmente destinam-se a permanecer ocultas nas reservas técnicas dos museus. Para além de exposições temporárias curtas e temáticas, a decisão de integrá-las ao discurso principal e de longa duração da instituição, contextualizadas junto a vários outros artistas que atuaram em diversos media, transforma e reaviva sua condição discursiva, alterando pontos de vista tradicionais e eurocêntricos.
Já Taisa Palhares, em Organizar o pessimismo: a exposição Levantes de Georges Didi-Huberman, parte de um projeto de curadoria e sua efetivação expositiva, buscando analisar por um lado a conceituação teórica que embasa a mostra, a partir de uma reinterpretação atual das ideias de Walter Benjamin, e por outro como isso se coloca no conjunto de imagens apresentadas. Tentando considera-las fora de visões estritas de arte ou como documentos históricos, Palhares reafirma o propósito do curador de deixar as imagens do “desejo de emancipação” inquietarem o público, mostrarem seu caráter dialético, anacrônico, subversivo, recontarem a história a contrapelo pela montagem e, quem sabe, iluminarem de desejo os nossos “tempos sombrios”.
Completando esse quadro, Virginia Gil Araujo, em A antropologia política da imagem na XVII Bienal de Fotografia da Cidade do México, questiona a posição da fotografia documental na contemporaneidade a partir de um caso curatorial específico do contexto mexicano. Se o pais possui uma rica história de fotógrafos e imagens significativas, como enfrentar a crise do documento frente à violência e segregação atuais? Partindo de autores como Jacques Rancière, Rosalyn Deutsche, Hal Foster, Giorgio Agamben e Anna Maria Guasch, entre outros, considera a possibilidade, pela exposição, de uma conexão horizontal de ideias e sentimentos que podem constituir uma “antropologia política da imagem”. Destaca que constituem primordialmente ações de uma micropolítica, na qual são consideradas questões sobre “autoria, alteridade, gênero e intimidade”, e que permitem lampejos de visão do que é silenciado ou violentado no cotidiano da sociedade.
Por fim, o artigo “A Desmedida na Medida de Natalia Leite” aborda a produção realizada por esta artista incomum nascida em 1943, na cidade gaúcha de Santo Ângelo. Os trabalhos comentados por Edson Luiz André de Sousa em seu artigo foram realizados ao longo dos anos em que Natalia Leite viveu como interna no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Em uma perspectiva política da dimensão poética, Edson Sousa observa com olhar sensível as imagens tecidas por Natalia e propõe um diálogo com o poema A Pantera, de Rainer Maria Rilke.
Se começamos com a imagem-difamação em Arthur Valle, com a imagem-poema de Natalia Leite, por Edson Sousa, podemos concluir. A arte que insiste e resiste ao silêncio, ao esquecimento, ao apagamento, ao fogo e às cinzas. A dimensão política da arte pode estar no gesto que produz a obra, assim como no pensamento que aguça o sentido crítico e se abre para outros modos de ver, exibir e narrar. Apostar em ações coletivas e colaborativas que possam reverter os pontos de contato do circuito, operando com o dentro/fora das instituições também configura o lugar político da esfera artística na contemporaneidade. A concepção deste dossiê foi animada por este espírito e sua realização tornou-se possível somente pelo acolhimento por parte dos autores convidados e pelo engajamento dos que se sentiram motivados a escrever e partilhar suas ideias a partir do desafio proposto pelo tema Arte, Imagem, Política: Curadoria, Circuitos e Instituições. Manifestamos nossos agradecimentos a todos os colaboradores desta edição da Revista MODOS e esperamos que os leitores encontrem bons motivos para reflexão através dos textos aqui reunidos.
Referência
RANCIÈRE, J. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Organizadores
Ana Maria Albani de Carvalho – Doutora em Artes Visuais: História, Teoria e Crítica (UFRGS) e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e de Museologia e Patrimônio, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como curadora independente, com pesquisas sobre as relações entre arte e política, conceitualismos e experimentalismo nos anos 1970 no Brasil. E-mail: ana_albanidecarvalho@yahoo.com.br
Marco Pasqualini de Andrade – Doutor em Artes pela ECA USP. Professor Associado do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Historiador e crítico de arte. Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte. E-mail: martkus@gmail.com
Referências desta apresentação
CARVALHO, Ana Maria Albani de; ANDRADE, Marco Pasqualini de. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 2, n.3, p.85-90, set./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]
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