Neste dossiê estão reunidos estudos acerca da arte e da literatura na Amazônia, aproximando pesquisadores interessados em problematizar os processos de criação, circulação, apropriação e consumo da arte e da literatura, assim como refletir sobre sua condição de fonte histórica. Rejeitamos o pensamento que, por um lado, interpreta a arte e a literatura como um universo autônomo, estudados por si mesmo e, por outro, considera-as como mero reflexo do seu contexto, isto é, consideramos que a obra expressa um processo ativo. Dessa maneira, deve-se relacionar o objeto de análise ao seu contexto, entendendo-o como interação social e não determinado por ela, pois compreendemos a arte e a literatura como expressões de cultura, não em sua totalidade harmônica, mas como zona de conflitos, contradições e oposições existentes no universo social. O autor, a obra e o observador adquirem significado quando colocados em seu contexto material e temporal, assim como a obra adquire uma maior significação quando entendida como parte da totalidade histórica.
Desta forma, temos a intenção, com este dossiê, de desconstruir antigos estereótipos que vislumbram a Amazônia, nascida, desde o século XVI, através do olhar do europeu sob o signo margem da margem do mundo, Eldorado: misto de espanto e expectativa (reduto de riquezas materiais), outrossim, na contemporaneidade, por conta de um exotismo herdeiro do oitocentos, apenas como terra de indígena, vazio populacional, localidade de violência, de florestas selvagens e animais perigosos. Interessa-nos expandir a historiografia da Amazônia como condições de possibilidades onde a voz dos artistas e intelectuais contribuíram com a criação / elucidação de identidades e realidades que por vezes são desconhecidas pela região centro-sul do país. Nessa medida, a intensão do dossiê é trazer à balia a Amazônia na sua alteridade. Daí a polifonia perceptível no conjunto de artigos que reunimos nessa coletânea.
Assim, sobre literatura, temos três artigos. Fadul Moura analisa o livro intitulado Frauta de Barro (2011 [1963]), de Luiz Bacellar, em dois momentos específicos: a visão do poeta acerca da cidade de Manaus e a presença poética de autores nacionais e internacionais em sua obra. Enquanto o autor baliza as tradições manuseadas por Bacellar a partir de sua “memória colecionadora”, vai deixando entrever a intenção do poeta em escapar da configuração tradicional do exótico em relação à Amazônia. Marinilce Oliveira Coelho examina a complexa relação entre a literatura e a memória na obra da escritora modernista paraense Sultana Levy Rosenblatt (1910-2007) a partir de elementos do testemunho pessoal e familiar de sua herança judaica. Observando por uma ótica histórica e literária, perpassa pela análise de diversas questões, como o movimento migratório de judeus para a Amazônia no final do século XIX e o antissemitismo. Matheus Villani Cordeiro, ao se basear na literatura produzida por relatos de viagem, apresenta a obra A Amazônia que eu vi: Óbidos – Tumucumaque (1930), de Gastão Cruls, para compreender a perspectiva deste em relação ao espaço amazônico e as influências que propiciaram a produção etnográfica a partir de sua obra.
Outra questão que se mostra importante no dossiê são as relações de intelectuais e artistas da Amazônia com escolas e movimentos artísticos europeus. Assim, João Augusto da Silva Neto apresenta as relações artísticas ocorridas entre o Brasil e a França na primeira metade do século XX por meio do pintor Manuel Santiago, amazonense, que viajou a Paris em 1928 com a finalidade de estudar arte. A partir de uma profunda análise da tela Tatuagem (1929), o autor discute o lugar de Paris no Brasil com base nas noções de centro e de periferia artísticas. Silvio Ferreira Rodrigues apresenta o vínculo entre o ambiente artístico paraense e a Itália, demonstrando que durante o Segundo Reinado Brasileiro a Amazônia foi palco de intenso intercâmbio cultural com o cenário artístico italiano pois, além de receber objetos de arte, artistas e inovadores movimentos estéticos, enviava para as academias italianas aspirantes a artistas, provendo intenso diálogo no campo das artes entre Brasil e Europa. Também em relação ao encontro com a Itália, Amanda Brito Paracampo analisa o meio artísticomusical belenense em relação à música operística e lírica em finais do século XIX e início do XX por meio de companhias italianas que se apresentavam no Teatro da Paz e da trajetória do maestro italiano erradicado em Belém, Ettore Bosio, em cuja modernidade musical incluía o folclorismo. Não só de encontros mas de desencontros trata Domingos Sávio de Castro Oliveira ao considerar a cidade de Belém do Grão-Pará do século XVIII enquanto local de intensa transculturação. O autor demonstra que o contato entre os saberes tradicionais e acadêmicos ocorrido entre indígenas, negros africanos, mestiços, religiosos e o arquiteto italiano Antônio José Landi deu origem a artes ornamentais e obras arquitetônicos repletas de matrizes culturais diversas adaptadas à região. Tunai Rehm, ao analisar a pintura Avenida Independência (1939), do artista belga Georges Wambach, fez uma leitura da história da cidade de Belém recorrendo a um encontro entre duas épocas, 1986, início do governo de Antonio Lemos, e 1939, ano da produção da tela.
As festas e folias como representações culturais e artísticas foram objetos de dois artigos. Letícia Souto Pantoja apresenta diversos festejos, círculos de sociabilidade e artísticos provenientes dos setores populares que habitavam Belém entre 1920 e 1940, período de decadência da borracha e aumento da miséria de grande parte da população do Norte. A autora demonstra que este período também foi de efervescência cultural articulada pelas camadas trabalhadoras pobres, culminando em muitas práticas festeiras cotidianas, como o boi bumbá e as pastorinhas. Já Leandro de Castro Tavares e Oseias de Oliveira pautam-se nas folias de santo nas áreas remanescentes de quilombos do município de Óbidos, Pará, resgatando seus traços étnicos enquanto cultura afro-brasileira. Além disso, ao discutir as dispersões escravas pela região e a formação de quilombos, apresentam cantos, folias e ladainhas das Folias de Santo que foram importantes para a formação de suas identidades.
Por fim, o cinema e o museu tem papel importante na cristalização de ideias e ideários e não poderiam ficar de fora. Para isto, Carlos Gabriel Sardinha de Medeiros analisa o filme Iracema, uma transa amazônica (1974) a partir de seu contexto de ditadura militar e de construção da Rodovia Transamazônica. Enfoca, no artigo, nas representações e alegorias apresentadas pelo filme que fizeram com que fosse censurado haja vista que apresentava, em tom de denúncia, o modo de vida da população amazônica na beira das estradas, assim como a caracterização dos indígenas enquanto entrave à modernização do país. Baseando sua análise em um guia de exposição chamado “Amazônia Urgente – cinco séculos de História e Ecologia”, Ellen Nicolau evoca narrativas e imagens que foram essenciais na ruptura de paisagens genéricas que estereotipam a Amazônia. A autora traz uma Amazônia enquanto fruto de conexões e materialização de diversidades históricas, assim como contribui para se pensar, a partir das exposições, sobre problemáticas ambientais e indigenistas.
Desejamos a todos uma excelente leitura.
Heraldo Márcio Galvão Júnior (UNIFESSPA)
Ana Clédina Rodrigues Gomes (UNIFESSPA)
Aldrin Moura de Figueiredo (UFPA)
Arcângelo da Silva Ferreira (UEA)
GALVÃO JÚNIOR, Heraldo Márcio; GOMES, Ana Clédina Rodrigues; FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; FERREIRA, Arcângelo da Silva. Apresentação. Faces da História, Assis, v.5, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
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