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Arte abstrata no Brasil: novas perspectivas | MODOS. Revista de História da Arte | 2021

A arte moderna dos anos 1930 e 1940 e as práticas abstratas dos anos 1950 são comumente tratadas como temas separados. No estudo da arte brasileira de meados do século XX, a disciplina de história da arte e sua dependência de associações teleológicas e já mapeadas, entre estilo e periodização, enfatizaram uma ruptura depois de 1945 e mitigaram a percepção das continuidades e transformações entre arte e a política da ditadura do Estado Novo, bem como as do Brasil da democratização depois da II Guerra Mundial. As colaborações sociais e de ativismo entre grupos de artistas de diferentes vertentes pode já ser observada durante as três edições do Salão de Maio (1937-1939) em São Paulo. Precisamente em sua segunda edição, em 1938, quando o artista Flávio de Carvalho passou a organizar a exposição, as alianças entre estéticas divergentes emergiram, indo de tendências realistas à abstração. Durante sua longa viagem à Europa em 1934, que ele havia iniciado pela Inglaterra, Carvalho entrou em contato com o grupo do artista Ben Nicholson e do crítico Herbert Read. Em seguida, Carvalho os convidou para participarem do salão, e a presença de artistas ligados aos grupos de arte concreta na Inglaterra, França e na Alemanha tornou-se um elemento definidor da mostra. Não houve qualquer reação estética ou crítica a esta tendência naquele momento, mas o papel que esses grupos tiveram em movimentos antifascistas foi bastante comentado1. A manifestação da oposição do meio artístico a formas autoritárias de poder coincidiu, no contexto brasileiro, com a crescente simpatia do Presidente Getúlio Vargas tanto por seus pares nazistas quanto pelos fascistas, bem como a criação de uma comissão especial de concessão de vistos de permanência para imigrantes de origem judaica em 1938, que limitou a emissão de vistos a 20 por ano 2.

A criação do Clube dos Artistas e Amigos da Arte em 1945 deu continuidade à prática do ativismo coletivo entre os artistas de São Paulo, mas já em um contexto democrático. O clube era um lugar de encontros e apoio aos artistas, e ligado tanto à elite do meio artístico (com figuras como Sérgio Milliet e Rino Levi, exercendo um papel-chave ali e na fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM SP), quanto aos artistas do Grupo Santa Helena e da Família Artística Paulista – alguns dos quais oriundos da classe trabalhadora, outros tantos artistas autodidatas e imigrantes europeus e japoneses recém-chegados, ou da primeira geração nascida no Brasil3. A imigrante russa Pola Rezende, artista realista e dramaturga, era uma figura central no clube.

Uma fotografia que apareceu na edição noturna de um jornal de São Paulo em 1952 faz a ponte entre os grupos artísticos figurativos dos anos 1930 e 1940 e a emergência da abstração geométrica e gestual dos anos 1950 4. Nela, uma modelo posa no meio da exposição do Grupo Ruptura no MAM SP para mostrar em primeira mão uma peça de vestuário de moda que deveria ser apresentada ao público no baile de gala do Clube dos Artistas e Amigos da Arte, momento no qual a première de uma das peças teatrais de Rezende aconteceria. Em anos anteriores, o Clube dos Artistas tinha sido um local de protestos contra o advento do MAM SP como força cultural hegemônica5. O Museu de Arte Moderna, pensado inicialmente no final da década de 1930 como um farol antiautoritário por intelectuais opositores em um contexto ditatorial, enfim operava como uma entidade privada, definitivamente de elite, apoiada por verbas públicas substanciais6. No clube, entre 1950 e 1951, artistas de diferentes gerações, filiações políticas e estilos diversos, incluindo jovens artistas abstratos que viriam a formar o Grupo Ruptura, argumentavam coletivamente que o MAM SP estava excluindo artistas de seus processos de decisão na organização da delegação brasileira para a Bienal de Veneza e na recém-criada Bienal de São Paulo. Ao invés da ruptura pretendida entre a velha e a nova geração que o grupo declarava em seu manifesto, a fotografia e seu contexto apontam para os vínculos intelectuais, sociais e políticos entre artistas praticantes da abstração, do realismo e seus híbridos.

A imagem também lança luz sobre as visões generificadas e racializadas de consumidores e produtores da abstração. Como muitas outras fotografias que apareceram em resenhas da mostra do Grupo Ruptura alguns dias antes, ela empregava a imagem de uma mulher branca como consumidora da arte abstrata7. Em artigos ilustrados por essas fotografias, as mulheres declaravam sua incompreensão do manifesto do grupo, assim como das pinturas em si, e um repórter concluiu que as modelos constituíam “bela mostra de arte perfeitamente figurativista em meio às harmoniozas (sic) charadas coloridas do grupo ‘Ruptura’” (Ibidem). As jovens belas da alta sociedade são entendidas como ingênuas e insípidas, e sua suposta ignorância é motivo de risadas, e não, como tinha sido o caso das resenhas da primeira Bienal, a base para uma diatribe sobre a falta de seriedade entre as classes privilegiadas no Brasil8. Incertos sobre os méritos da arte em exibição, o extenso registro fotográfico que documenta a presença de mulheres na exposição serve para mostrar a visão que a arte abstrata tinha para a elite. Paralelamente a esta visão machista do público para abstração, uma imagem marcadamente distinta emergia do produtor da arte abstrata: o homem lutador e trabalhador. Os sete artistas homens de origem europeia do Grupo Ruptura, vestidos com terno e gravata e engajados em eventos públicos e bares, eram apresentados na mídia como pensadores públicos, ou mesmo líderes da sociedade civil9.

Barbara Weinstein (2015) examina o mito do Brasil como uma democracia racial, pretensamente sem preconceito racial, em meados do século. Ela observa como a consolidação desta ideologia coexistia com teorias racistas de progresso anteriores através do branqueamento, e demonstra que a afirmação da excepcionalidade de São Paulo, do ponto-de-vista cultural e econômico, reforçava uma clara associação entre branquitude e civilização (Weinstein, 2015: 11-14, 224-232). Ela argumenta que “imagens racializadas de modernidade e progresso estavam na base de políticas e práticas discriminatórias” no país (Ibidem: 14). Denise Ferreira da Silva teoriza sobre a ligação inextricável do indivíduo racializado e generificado do cidadão democrático brasileiro pela “tese de branqueamento” e pela democracia racial, mostrando que ambas as narrativas são dependentes da miscigenação e da “apropriação do sujeito não-europeu (colonizado ou escravizado)” pelo europeu (Silva, 2007: 223).

Dizer que artistas e instituições artísticas estavam imbricados nesses processos foi por muito tempo considerado irrelevante. Em seus estudos sobre a cidadania brasileira, Brodwyn Fischer (2008) e James Holston (2008) examinam o que Holston designa como “disjunção” entre cidadania política idealizada e cidadania desigual, injusta e violenta. Fischer aponta para uma pretensa universalidade da democracia inscrita na lei brasileira de meados do século (com a notável exceção de privação de direitos de analfabetos, mas sem uma discriminação de base racial e com reformas de discriminação de gênero, incluindo o voto feminino em 1932 [Fischer, 2008:5]). Os protagonistas do estabelecimento de um conjunto de instituições de arte moderna no pós-guerra e da emergência da abstração, formada de patronos da arte, artistas e escritores eram, com poucas exceções, os privilegiados – letrados e majoritariamente brancos, ainda que de classes sociais diferentes, bem como de identidades étnico-regionais diversas – e não estavam sujeitos à privação ou à violência do estado. Eles eram, ao contrário, os cidadãos favorecidos e os agentes da imagem do indivíduo e da sociedade do segundo pós-guerra, enquanto o Brasil experimentava uma expansão da classe média urbana. Esse dossiê questiona, sem tentar buscar soluções, como o estudo da arte do segundo pós-guerra pode começar a dar conta, não só das aspirações e ideais dos adeptos da abstração, mas também das maneiras através das quais a teorização, produção e recepção desta tendência agiram na esfera pública, reforçando ou desafiando a injustiça social.

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Ana Gonçalves Magalhães; Adele Nelson 98 Nossa pesquisa está comprometida com a reconstrução do clima complexo no qual a arte e suas instituições operavam em meados do século e no pós-guerra nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo10. Neste sentido, começamos apontando para a natureza intersticial da vanguarda do segundo pós-guerra e sua participação nas concepções de identidade nacional brasileira codificadas entre as facetas autocrática e democrática de meados do século XX. Argumentamos que na abordagem mais detida de projetos de artistas e intelectuais em uma nação pós-colonial, é preciso considerar os objetivos e efeitos de tais iniciativas nos contextos local e internacional. Também entendemos que a pesquisa arquivística em conjuntos documentais brasileiros e internacionais deve ser acompanhada de um trabalho mais preciso de análise de materiais e técnicas das obras.

Atualmente, a abstração brasileira do segundo pós-guerra ocupa lugar de destaque nas narrativas euro-americanas da arte latino-americana, uma hipervisibilidade que também foi oportunamente criticada (Cabañas, 2010: 365-83; Amor, 2016: 7-11; Alvarez; Franco, 2019: 1-7). Há muitos fios para esta crítica. A atenção internacional ao neoconcretismo, em particular, ofusca qualquer consideração de uma arte que não esteja voltada para os princípios geométricos e interativos do grupo. Desde 1990, este foco, de um lado, cooperou com a visibilidade de um número seleto de países predominantemente sul-americanos, regionalmente ricos e um grupo de artistas majoritariamente brancos produzindo em grandes cidades. De outro, valorizou-se assim a produção artística inteligível para as histórias centradas na arte europeia e estadunidense. De fato, a promoção da arte neoconcreta e concreta brasileiras em sentido mais amplo pode ser vista já no final da década de 1950, quando organismos diplomáticos brasileiros apoiaram uma série de exposições que promoveram esses artistas no contexto internacional, lado a lado com a apresentação do projeto de Brasília, como a nova capital do país11. Nos imaginários do Norte Global e do Sul Global, tais condições desvalorizam e apagam agentes culturais fora de confins geográficos, raciais e culturais muito estreitos. Ademais, as práticas de abstração no Brasil e na América Latina foram heterogêneas para além das trajetórias mais conhecidas, da arte concreta às práticas participativas e cinéticas. O estudo da abstração gestual, informal ou lírica sofreu, assim como o exame de largos conjuntos de culturas visuais e histórias aos quais os artistas recorreram, em favor da destilação de uma linhagem da arte e de ideias em torno de figuras como Max Bill, Kazimir Malevich e Piet Mondrian. Mesmo dentro da arte que poderia retrospectivamente ser aplicada à categoria de abstração geométrica, exclusões são marcadas, como no caso da ausência da arte colombiana em narrativas transnacionais dessa vertente.

Antes da onda de literatura e exposições sobre abstração geométrica brasileira das últimas décadas, foram os pensadores brasileiros que chamaram a atenção da pesquisa acadêmica para a Bienal de São Paulo, para os museus de arte moderna do país, e para a história da arte no Brasil do segundo pós-guerra. A questão do porquê a abstração – e sua forma expandida, ou seja, o que causou a mudança da dominância do realismo social antes da II Guerra Mundial para a ascendência da abstração geométrica depois – motivou esta historiografia fundacional nos anos 197012. Em sua base, a busca de uma causa para a emergência da abstração procura responder à ideia de que a abstração brasileira e latino-americana do segundo pós-guerra chegou tarde, era derivativa e apenas reencenava as inovações da vanguarda histórica europeia dos anos 1910 e 1920. Alfred H. Barr, Jr., diretor fundador do Museu de Arte Moderna de Nova York, assim o insinuou de maneira infame em seu ataque aos artistas brasileiros em 1957, considerando-os apenas como produtores de “Bauhaus exercises”13. Com efeito, a falta de atenção à abstração gestual (e sua relação ou não com o expressionismo abstrato estadunidense) neste momento fundacional na disciplina de história da arte na academia brasileira talvez estivesse ligada a motivações decoloniais de uma elite intelectual que se opôs à ditadura militar apoiada pelos Estados Unidos14. Estes teóricos e historiadores construíram narrativas da arte brasileira pautadas não pela derivação e influência, mas atentando teoricamente e na pesquisa documental à história social do Brasil.

A exposição seminal Projeto construtivo brasileiro na arte (1950–1962) de Aracy Amaral (1977) e os escritos de Ronaldo Brito de meados da década de 1970, posteriormente publicados como livro, foram severamente criticados em alguns grupos por terem favorecido o neoconcretismo e por entenderem que o período do imediato segundo pós-guerra era mero incubador da fundação do movimento em 195915. Como argumenta Camila Maroja (2019), Frederico Morais, em escritos do fim da década de 1970, e exposições curadas por Roberto Pontual, mapearam uma história da abstração expansiva e interconectada com o ambiente latino-americano, e forneceram uma trajetória para a formação de um cânone latino-americano centrado na abstração geométrica. Outro estudo importante para a história da abstração brasileira, a antologia de entrevistas e fontes primárias organizada por Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1987), trouxe novas contribuições e sutilmente contestou os termos estabelecidos por Amaral, Brito, Morais e Pontual. Ela incluía abstração informal e geométrica e procurou dar conta da diversidade das práticas abstratas, considerando artistas que não se situavam em grupos organizados, assinaram manifestos ou deixaram aparatos críticos consolidados. Mesmo assim, como os demais estudos iniciais, limitou-se ao Rio e a São Paulo.

Os artigos neste dossiê respondem a críticas da hipervisibilidade da abstração geométrica brasileira. Eles também discutem e contestam as ideias formuladas nos anos 1970 e 1980 sobre o período do segundo pós-guerra, bem como as ideias de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar e outros críticos importantes de meados do século. Os autores oferecem uma análise aprofundada de práticas abstratas fora do eixo Rio-São Paulo; dos contextos institucionais e pedagógicos da abstração lírica; da trajetória de mulheres artistas relegadas a notas de rodapé ou créditos sumários. Outros examinam conceitos-chave e debates dentro do tema, elucidam contextos transnacionais, e revelam uma heterogeneidade de produção artística presente em eventos importantes.

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Inspirados pelas questões historiográficas e metodológicas mencionadas acima, vários dos colaboradores convidados incluídos aqui apresentaram sua pesquisa no painel “Reconstructing Complexity: Art in Brazil at Mid-Century and after World War II” no Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (BRASA), em 2016, na Brown University em Providence, Rhode Island. As discussões na sessão, com comunicações de pesquisadores em arte brasileira no Brasil e nos Estados Unidos, versaram sobre a omissão das relações entre arte, design e as instituições dos anos 1930 e 1940, e dos anos 1950; sobre as apostas políticas e sociais na abstração do segundo pós-guerra; sobre a ênfase em certos diálogos transnacionais em detrimento de outros; e sobre os debates interligados de identidade nacional e o papel do artista durante e depois da ditadura do Estado Novo. O congresso da BRASA, com seu foco interdisciplinar, anais bilíngues e sua cordialidade, foi um ambiente estimulante no qual os participantes puderam contribuir com nuanças sobre condições históricas e políticas precisas –- o que seria normalmente impossível em uma conferência fora do Brasil. Uma segunda sessão expandida intitulada “Art and Its Institutions: Revising Histories of Mid-Century and Postwar Brazilian Art,” estava prevista para acontecer no Congresso Internacional da BRASA em 2020, na University of Texas em Austin, mas o evento foi cancelado em face da pandemia de COVID-19 16 .

Paralela à organização do painel não-realizado de 2020, fomos convidadas a coeditar um dossiê especial para a Revista MODOS. Aproveitamos assim a oportunidade para ampliar os diálogos iniciados no contexto da BRASA e reunir novas pesquisas sobre artistas, grupos, interlocutores institucionais e críticos em torno da experimentação com as linguagens abstratas geométricas e não-geométricas em meados do século 20 no Brasil. Assim sendo, convidamos autores que participaram das sessões da BRASA que organizamos, complementados por outros autores, mais artigos da chamada aberta da revista.

No conjunto, os 12 artigos que se seguem atestam a vitalidade dos estudos da arte brasileira do segundo pós-guerra e apontam para alguns potenciais campos e pontos cegos. Em todos há um ponto em comum na abordagem da pesquisa: ao invés de confiar no conhecimento herdado e suas hipóteses, os textos foram concebidos a partir de uma pesquisa firmemente plantada nos documentos (publicados ou não) e nas obras de meados do século. Em muitos figuram análises de obras hoje pertencentes ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), o museu universitário que possui o acervo histórico do MAM SP e as obras de premiação das edições da Bienal de São Paulo entre 1951 e 1963. Um dado relevante é o trabalho com textos do período, tornados amplamente acessíveis através do projeto inédito da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, assim como a pesquisa em vários arquivos institucionais e pessoais. Mais do que fazer um resumo de cada artigo, consideraremos alguns deles, uma vez que eles possuem modos diferentes de nos ajudar a formular duas perguntas cruciais: como as práticas de abstração foram mobilizadas e consolidadas? Que dimensões políticas informaram a teorização, a produção e a recepção da arte abstrata e de seus praticantes?

Recusando narrativas desgastadas da abstração do segundo pós-guerra – tais como a que pretendeu marcar diferenças diametrais entre o concretismo no Rio e em São Paulo, entendendo a arte do final dos anos 1950 como predicada inteiramente nas falhas da Exposição nacional de arte concreta (1956- 57) e na emergência do movimento neoconcreto – juntos os autores formam um tecido complexo e variado da abstração brasileira. Ele inclui a análise de Vera Beatriz Siqueira do rótulo de abstrato que se aplicou às pinturas de Roberto Burle Marx, e a revisão que Heloisa Espada propôs de nossa compreensão da delegação suíça na primeira Bienal de São Paulo (1951), até então tomada como um bastião da arte concreta, mas que se revelou bem mais diversa estilisticamente.

Kaira M. Cabañas e María Amalia García focam no não-abstrato, nas práticas vinculadas a alteridades extremamente valorizadas pelos adeptos da abstração, engajando-se com as ideias que apoiam modernismos inclusivos que coexistiram com o dogmatismo e com o formalismo. Cabañas nos desafia a considerar “como o interesse de Pedrosa pela arte de pacientes psiquiátricos lhe permitiu se desidentificar com uma visão racionalista e com o ambiente da elite cultural no Brasil” e conclama para novos estudos “para explicar como esses pacientes-artistas – homens e mulheres cuja identificação psicopatológica com frequência convergiam para a discriminação de raça e classe – tornaram-se centrais para esta história específica da arte moderna no Brasil”. García faz uma análise aprofundada de revistas de arte brasileiras, argentinas e venezuelanas para tratar de princípios modernistas através dos quais artistas e escritores ligados à abstração incorporaram a cultura vernacular, desde arte pré-colombiana, arte indígena, produções rurais, até imaginários que eles construíram.

Uma grande parte das contribuições trata de artistas mulheres, algumas intencionalmente entendidas como inovadoras – Anna Bella Geiger, Lygia Pape e Sophie Taueber-Arp – e outras figuras celebradas nacionalmente – Maria Leontina e Fayga Ostrower. Também estudadas estão artistas que demonstram o aprofundamento da pesquisa acadêmica e contextualização que oferecemos aqui: Edith Bering, Estela Campos, Judith Lauand, Yolanda Mohalyi e Jandyra Waters. Talita Trizoli nos conclama a reconhecer o impacto do sexismo nas oportunidades profissionais das artistas abstratas mulheres. Ana Avelar e Regina Teixeira de Barros ressaltam não só a importância de Sheila Brannigan, uma artista abstrata lírica hoje esquecida, mas também insistem em uma paisagem institucional mais complexa e com vários agentes que ajudaram o desenvolvimento da abstração no Rio e em São Paulo. Elas identificam imigrantes mulheres, judias do Leste europeu no meio artístico (aumentando o panteão de figuras conhecidas, estas predominantemente homens, cristãos e da Europa Ocidental), revelam estruturas institucionais que apoiaram práticas de abstração lírica, e lançam luz sobre políticas e apagamentos que ocorreram em entidades como a Bienal de São Paulo. Gil Vieira Costa fornece um exame aprofundado das instituições e artistas em Belém, identificando Campos como uma personagem ativa no Rio e na capital do Pará, documentando o interesse crescente na teoria da Gestalt entre os artistas brasileiros de meados do século.

O estudo da pedagogia permitiu que vários autores desconstruíssem narrativas cristalizadas sobre a abstração do segundo pós-guerra. Sérgio Martins mostra como Pape, ainda que celebrada como uma artista em múltiplos contextos vanguardistas entre os anos 1950 e os anos 1970, “divergiu repetidamente do imperativo vanguardista de fazer tábula rasa do passado como forma de afirmar um novo começo” observando, por exemplo, seu ceticismo em relação à teoria do não-objeto de Gullar. Martins vê como emblemática a experimentação de Pape em sua abordagem não-ortodoxa do ensino – o que ela chamava de “anticlasses” – e sua adoção da xilogravura nos anos 1950, um meio então “comumente associado a certas tradições de relevo, como a da literatura de cordel nordestina e, nas artes, do expressionismo, que tinha na figura heterodoxa de Oswaldo Goeldi seu maior expoente brasileiro” Entre os precedentes do ensino não-tradicional de Pape havia a prática didática pioneira de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), bem como a oficina de gravura de Ostrower, na mesma instituição, que Avelar analisa.

No conjunto, os artigos aqui incluídos oferecem novas possibilidades de compreensão dos debates artísticos brasileiros em torno da arte abstrata. Além disso, eles lidam com as complexidades presentes nas mudanças radicais que o país enfrentou no imediato segundo pós-guerra. Os autores não só escolheram novas abordagens para tratar de seus temas –- estudos de gênero, as relações entre arte e psiquiatria, entre arte e design, entre outras –, mas também se arriscaram a envolver-se em um tecido que vai além da interpretação estética das obras mencionadas, abordando-as em suas dimensões sociais e políticas. Finalmente, eles mostram como a arte moderna foi instrumentalizada para a construção de uma imagem do Brasil como uma sociedade modernizada ao longo do século XX, e nos fazem refletir porquê ser moderno era central no jogo internacional das nações. Esperamos que essa coletânea de ensaios sirva como uma ferramenta didática para questionar a narrativa global da arte moderna como uma linha progressiva em direção à abstração, e estimule uma geração mais jovem de pesquisadores a traçar novos caminhos.

Agradecemos a Emerson Dionisio Gomes de Oliveira pela sua generosa colaboração na preparação deste dossiê. Também agradecemos a Libby Hruska pela sua revisão da versão em inglês desta introdução. Além dos pesquisadores que tivemos o prazer de incluir neste dossiê, conversas com Adrian Anagnost, Aleca Le Blanc e Edith Wolfe contribuíram para nossa reflexão.

Notas

1 Vale lembrar que, no início da década de 1930, Carvalho criou o Clube dos Artistas Modernos (CAM), no qual ativistas e intelectuais antifascistas já haviam se engajado. Há o célebre caso da exposição de obras da artista alemã Käthe Kollwitz no CAM, e a conferência de Mário Pedrosa sobre seu trabalho, posteriormente publicada no jornal antifascista O homem livre.

2 O documento original do decreto que criou a comissão data de 27 de setembro de 1938 e pode ser consultado no Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Sobre a legislação e a política de imigração no Brasil, veja-se, por exemplo: (Castro, 2012).

3 A imagem desses artistas como oriundos da classe trabalhadora foi parcialmente construída pela crítica de arte que os apoiou. Estudos recentes demonstram que ainda que alguns membros do Grupo Santa Helena e da Família Artística Paulista fossem da classe trabalhadora ou das comunidades e bairros operários da cidade de São Paulo, sua associação à elite industrial imigrante da cidade é um dado a ser criticamente considerado (Freitas, 2011).

4 “Dia de gala no Clubinho”, Folha da Noite, 17, dez. 1952, 5, Arquivo Waldemar Cordeiro.

5 Neste sentido, veja-se Aracy Amaral, Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970. São Paulo: Studio Nobel, 1984.

6 Annateresa Fabris abordou esta questão, sobretudo em relação à posição e manifestação do crítico Sérgio Milliet, para quem o MAM SP deveria ter sido um museu público do município de São Paulo (Fabris, 2008a, 2008b).

7 “Abstracionismo? Figurativismo ou arte concreta? Elegância em todo o caso…”, Folha da Manhã, 14 dez. 1952, 17, CD-ROM Waldemar Cordeiro (São Paulo: Analívia Cordeiro & Galeria Brito Cimino, 2010), fig. 5-31.

8 Serafim, “O repórter na Bienal”, Habitat, n. 5, p.6, out./dez. 1951.

9 Veja-se, por exemplo: (Martins, 2002: 51).

10 Veja-se, por exemplo: (Magalhães, 2016, em especial o cap. 1) e (Nelson, 2021, no prelo).

11 Tais iniciativas podem ser identificadas na participação do Brasil na exposição Interbau em Berlim, em 1957, e na exposição itinerante de arte moderna brasileira na Europa, entre 1959 e 1960, culminando com a exposição retrospectiva curada por Max Bill em Zurique (Konkrete Kunst – 50 Jahre Entwicklung), para a qual o artista convidou um grupo de colegas brasileiros concretos e neoconcretos. Para um estudo da recepção de suas obras na Europa, veja-se, por exemplo: (Neubauer, 2009). Para uma análise do papel do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na política cultural externa do Brasil, veja-se (García, 2019: 200–209), (Le Blanc, 2018: 59–72).

12 Os textos referenciais incluem: (Brito, 1976: 9–13; Amaral, 1977; Brito, 1985; Amaral, 1984: 229–71). Ferreira Gullar e Mário Pedrosa também enfatizaram esta questão e influenciaram as abordagens de Brito, Amaral e outros. Em 2015, a Pinacoteca do Estado reeditou um fac símile de Projeto construtivo brasileiro na arte de Amaral.

13 C.A., “Conversa com Alfred Barr Jr.”, O estado de São Paulo, 28 set. 1957. Sobre a participação de Barr no júri de premiação da 4a Bienal de São Paulo, veja-se (Avelar, 2012: 29-39).

14 Neste sentido, e adicionalmente aos escritos de Amaral e Brito, veja-se (Zilio, 1982).

15 Veja-se, por exemplo: (Pignatari, 2006: 89–92).

16 Assim como uma visita de estudo das obras brasileiras da coleção do Museum of Fine Arts de Houston, com os membros do painel e outros pesquisadores participantes do congresso.

Referências

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Organizadores

Ana Gonçalves Magalhães – Professora Livre-Docente em Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica, curadora e diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP). E-mail: amagalhaes@usp.br  ORCID: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2291-428X

Adele Nelson – Professora adjunta da história da arte e diretora associada do Centro de Estudos Visuais Latinoamericanos do Departamento de Arte e História da Arte da Universidade de Texas em Austin. E-mail: adele.nelson@austin.utexas.edu


Referências desta apresentação

MAGALHÃES, Ana Gonçalves; NELSON Adele. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 5, n.1, p. 94–103, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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