Os grandes historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch, em diversos momentos, na primeira metade do século XX, já tinham postulado a importância da interdisciplinaridade e diálogos entre as diversas ciências com a História. Já é deveras conhecida a recomendação de Febvre de que para ser historiador era preciso ser geógrafo, sociólogo e assim por diante. Bloch, por sua vez, não discordaria, pelo contrário. A geógrafa Judith Carney, vindo ao encontro da História, da Sociologia, da Agronomia, da Linguística, da Arqueologia, da Biologia e da Botânica, fazendo de certa forma o caminho inverso ao proposto pelos já citados fundadores da Escola dos Annales, publicou um excelente e instigante livro, resultado de um trabalho minucioso e competente de pesquisas documentais e bibliográficas: Black Rice. The African Origins of Rice Cultivation in the Americas (Massachussets: Havard University Press, 2001).
Black Rice, posteriormente, foi traduzido para o português por José Filipe Fonseca, com a colaboração de Gaston Fonseca, Ernesto Fonseca e Nivaldina Fonseca, sendo publicado em Bissau, na Guiné Bissau, pelo Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas/IBAP, com patrocínio do banco da África Ocidental/BAO. Publicado em 2018, assim suponho, com prefácio à edição portuguesa datado de novembro/dezembro de 2017, escrito pelo historiador Leopoldo Amado, manteve em português o título traduzido do inglês: Arroz Negro. As origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Neste momento cabe dizer que, sendo o livro escrito com afetividade, não menos apaixonada e comprometida com a história do protagonismo africano, apesar do tráfico e da escravidão, foi a edição guineense. Gosto de livros com marcas de afetividade, sem a aridez impessoal de alguns trabalhos acadêmicos ainda que competentes.
Mas, como já é sabido, todo livro tem uma história. No prefácio à edição inglesa (2001), Judith Carney nos conta que a história deste trabalho começou de forma acidental, “Sem conhecimentos na época”, 15 anos atrás “em dois contextos geográficos distintos” (p. 21). Primeiro na Gâmbia, na África Ocidental, em 1984; depois na Costa do Golfo, ao sul de Veracruz no México, em 1988. Na Gâmbia, investigando “sobre o impacto das mudanças tecnológicas orizícolas [cultura do arroz] no trabalho feminino e no acesso das mulheres a recursos”, quando de seu doutoramento, Carney passou muito tempo pesquisando nos arquivos nacionais desse país, até que “Num dia chuvoso”, “numa sala bolorenta”, ela diz: “tropecei numa referência de 1823 que proclamava entusiasticamente que, em termos de produção de arroz, a Gâmbia podia rivalizar com Carolina [do Sul]”. Então “desconcertada com a base geográfica da comparação”, Carney afirmou que “só muitos anos depois compreendi o significado dessa declaração” (p. 21). No México, quando houve o “segundo incidente que teve influência na génese deste livro”, a autora estava realizando as pesquisas de seu pós-doutoramento, quando, nos conta, “deparei-me com uma placa de trânsito a sul de Veracruz que quase me levou a siar da estrada”. Isto porque o “nome da aldeia seguinte era Mandiga, o mesmo que o do grupo étnico com o qual tinha trabalhado na Gâmbia”. Carney acabou então indo ao povoado constatando “a presença de uma população mexicana de descendência mista africana e alguns campos de arroz abandonados” (p. 21).
Pois bem, faltava de uma vez por todas juntar A com B, que acabou somente possível alguns anos depois, em 1993, quando Carney já era professora na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLAEUA). Nesta época, a autora descobriu que “o arroz constituía a base do sistema de plantações da Carolina do Sul”. Sendo importante então o conhecimento do trabalho dos historiadores Peter Wood e Daniel Littlefield. Segundo eles, nas palavras de Carney, “os africanos trouxeram consigo conhecimentos cruciais para a instalação e o desenvolvimento da cultura do arroz da Carolina [do Sul]” (p. 22), sendo, portanto, uma “revelação” que “traçou a direção” de seu “trabalho nos anos seguintes”. Daí, diz a autora que: “Este livro é o resultado do meu contínuo esforço para examinar a história do arroz na bacia do Atlântico numa perspectiva multidisciplinar e multicultural”. Sendo a “incrível história desses orizicultores africanos e dos seus descendentes ao longo de toda a bacia do Atlântico” o “objeto deste livro” (p. 22).
O livro, com 356 páginas, além dos prefácios à edição inglesa e à portuguesa, bem como uma introdução, tem seis capítulos, havendo ainda um posfácio escrito pela autora. Há ainda um índice remissivo, o que é sempre útil aos leitores. Ainda que a autora às vezes venha a se repetir ao longo de seus capítulos, é um livro bem escrito, com uma narrativa agradável. A edição em português, aliás, tem uma bela capa, com imagem de uma mão feminina segurando molhos de arroz africano, feita por Jean-Francois Hellio. Ainda sobre as imagens, todas em preto e branco, estão perfeitamente espraiadas ao longo dos capítulos, bem casadas com os textos, ajudando na sua compreensão, informando, não apenas ilustrando.
No primeiro capítulo, denominado Encontros, trabalhando com relatos de viajantes e exploradores europeus, principalmente portugueses, que estiveram na África Ocidental, desde o século XV, na chamada “Costa dos Grãos” ou “Costa do Arroz”, ou seja, uma “vasta região que cobre a costa atlântica do rio Gâmbia à Libéria” (p. 40), Carney nos apresenta uma série de testemunhos acerca da cultura do arroz pelos africanos, no caso uma das duas espécies que foram domesticadas dentre as vinte que pertencem ao gênero de arroz Oryza, no caso o Oryza glaberrima ou arroz africano, ou, ainda arroz vermelho (apesar dessa atribuição cromática não ser exclusiva ao mesmo), enquanto a outra espécie cultivada é de origem asiática: Oryza sativa. Carney, fazendo então o que denomina de “uma genealogia agrária” (p. 26), demonstra como diversas etnias ou nações africanas dessa região, entre os quais os mandigas e os wolofs, não somente já conheciam a planta, mas cultivando-a produziam em grandes quantidades gerando excedentes. Portanto, a autora diz de forma convincente que não é mais possível subscrever a narrativa historiográfica sobre a primazia dos europeus na introdução do arroz na própria África, melhor dizendo sobre a introdução de técnicas de plantio mais avançadas do arroz de origem asiática, no caso o cultivo do Oryza sativa, suplantando aquilo que seria considerado como um cultivo residual e primitivo do arroz africano. Neste sentido, ainda, Carney critica a narrativa de que tão-somente coubera aos europeus o papel de difusores no mundo atlântico das culturas agrícolas, desconsiderando que os africanos escravizados introduzidos nas Américas trouxeram consigo, apesar da violência do tráfico negreiro, também seu patrimônio cultural, inclusive introduzindo o Oryza glaberrima, arroz africano, em várias regiões do continente americano (Carolina do Sul/EUA; Cuba/Caribe; Guianas/América do Sul; Amazônia/Brasil), além de outras plantas como, por exemplo, o amendoim. Trazendo não só as sementes que aqui plantavam, difundindo-as, mas, igualmente, o conhecimento que tinham como agricultores, neste caso como exímios rizicultores.
Repensando dessa forma também a tese das trocas colombianas e o papel africano neste processo, papel esse por muito tempo desconsiderado ou marginalizado, uma vez que se compreendia, de um lado, o continente africano como desprovido de certa forma de contribuições para as trocas colombianas, pelo menos de forma significativa. De outro que, os africanos escravizados submetidos ao tráfico em condições tão adversas não haviam de ter como contribuir com as trocas colombianas. Neste ponto, aliás, a autora demonstra que a investigação da cultura do arroz na “Costa dos Grãos” ou “Costa do Arroz”, depois chamada como “Costa dos Escravos”, nos permite reescrever a própria história do tráfico de escravos ou a passagem do meio como se diz na historiografia de tradição inglesa. Afinal, as primeiras e importantes áreas de fornecimento de escravos foram justamente essas regiões povoadas que tinham inclusive, ainda que não unicamente, na rizicultura sua base alimentar. Por outro lado, o cultivo do arroz, bem como de outras culturas agrícolas, também permitia o abastecimento dos navios negreiros em suas viagens para as Américas.
Essas questões ainda ganhariam mais coloração nos capítulos seguintes. Pois, no primeiro, a autora, creio, quis nos dizer sobre a presença, a importância e as implicações do cultivo do arroz africano. No segundo capítulo, Origens do arroz e conhecimentos autóctones, considerando a relação entre identidade e alimentação (“A cultura do arroz é essencial para a identidade cultural de grande parte da África Ocidental. Nos grupos étnicos para os quais essa planta constitui o alimento básico, a menos que uma refeição inclua arroz, considera-se que não se come” (p. 61)), Carney, também dialogando com a agronomia e a botânica, trata das diferentes espécies de arroz na região; bem como do processo de domesticação dessa e a formação de impérios, tais como os de Gana, Mali ou Songai. Ainda que não se deva associar de forma mecânica a formação de impérios e o desenvolvimento de técnicas complexas ou avançadas de cultivo, como bem alertou a autora, até porque pequenos grupos étnicos tinham desenvolvidos cultivos avançados de arroz, explorando com maestria os recursos ambientais disponíveis. Neste sentido, Carney também trata do contexto ambiental e do uso da terra associado aos sistemas de cultura do arroz, já demonstrando que esse trabalho agrícola era dominado pelas mulheres.
Sobre o cultivo de arroz como trabalho de mulheres, a autora discorreu ainda no quarto capítulo, Isto era “trabalho de mulher”, porém fora do contexto da África Ocidental, retomando a discussão no outro lado do Atlântico, na Carolina do Sul/EUA. Até porque, no terceiro capítulo, Fora de África: cultura do arroz e continuidades africanas, a autora, guiando-nos pelas páginas de seu livro, já tinha nos levado para as Américas. Demonstrando-nos, então, como a partir das práticas agrícolas dos africanos ocidentais escravizados, no caso do arroz, os senhores fizeram na Carolina do Sul as grandes propriedades escravistas produtoras e exportadoras de arroz, explorando não apenas a força física dos cativos africanos, mas fazendo uso de seu patrimônio cultural. Aliás, sobre esta questão Carey citou o historiador Peter Wood na forma de epígrafe abrindo o terceiro capitulo, quando transcreveu o seguinte trecho da obra Black Majority (1974) deste autor: “Um Know-how especial, e não a sua ausência, foi um fator que tornou a mão-de-obra negra atrativa para as colônias inglesas” (p. 105).
O último capítulo, Legados, fecha a discussão apresentada na obra, fazendo um reexame do intercâmbio ou trocas colombianas, enfatizando a importância do papel e da contribuição africana, apesar do tráfico e da escravidão, para a cultura agrícola no mundo atlântico. Contribuição que, para além do arroz, objeto deste livro, incluía outras plantas e saberes associados ao seu cultivo, manejo e preparo, bem como formas de consumo, tal como o amendoim, mas não apenas. Sobre o quê, aliás, em parceria com Richard Rosomoff, Judtih Carey publicou em 2009 o livro: In the Shadow of Slavery: Africa´s Botanical Legacy in the Atlântic World (Berkeley: University of California Press). Mas, sobre o arroz africano, Carney trataria mais especificamente da realidade brasileira em seu artigo publicado em 2004 na importante revista Slavery and Abolition (N. 25, 1, pp. 01-27), denominado: “With Grains in Her Hair”: Rice, History and Memory in Colonial Brazil. Como já diz o título, africanas escravizadas de alguma forma conseguiram trazer dos navios negreiros em seus cabelos grãos de arroz com casca que foram plantados em solo americano, não cabendo tão-somente ou necessariamente aos europeus a introdução do cultivo dessa planta nas Américas.
O relato sobre grãos nos cabelos o leitor encontra, todavia, no Posfácio acrescido à obra original, bem como uma revisão do mapa sobre as áreas das Américas que receberam ou podem ter recebido o arroz trazido pelos escravizados da África Ocidental. O Posfácio, recuperando e atualizando o debate historiográfico provocado pela publicação de Black Rice, em 2001, é um excelente acréscimo. Havendo ainda alguma dúvida sobre a argumentação de Carney, lendo o Posfácio acredito que deixaria de ter. A autora não só reavalia e atualiza seus argumentos, comenta e responde as críticas dialogando com a historiografia e justifica a metodologia de seu trabalho, como traz novas informações e fontes em seu apoio, inclusive iconográficas, neste caso duas imagens de navios negreiros, aonde inclusive se vê mulheres africanas escravizadas socando o arroz com casca no convés do navio (pp. 244-245), que descascado seria depois preparado pelas mulheres para alimentar os escravizados a caminho das Américas.
Resenhista
José Maia Bezerra Neto – Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia-IFCH/UFPA. Pesquisador do CNPq. Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará –IHGP. E-mail: jmbn25@gmail.com
Referências desta Resenha
CARNEY, Judith. Arroz, tráfico e escravidão: repensando a importância da contribuição africana no mundo Atlântico. In: CARNEY, Judith A. Arroz negro. As origens africanas do cultivo do arroz nas Américas. Bissau/Guiné-Bissau: Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas, 2018. Resenha de: BEZERRA NETO, José Maia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 07, n. 01, p. 170 – 174, maio. 2020. Acessar publicação original [DR]
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