Arquitetura rural na Serra da Mantiqueira | Marcelo Carvalho Ferraz
“Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei”.
Manoel de Barros, O fotógrafo
Gosto muito de bichos com um olho de cada lado da cara, como as galinhas e os peixes porque me apresentam um jeito indiscernível de ver o mundo, certamente mais alargado. Gosto também dos bichos com dois olhos frontais, como os macacos, que nos encaram de frente, apresentando escancaradamente nosso parentesco próximo – olhares como os humanos.
Aqui Marcelo Carvalho Ferraz nos entrega algo de seu. Apresentado em um livro que pode ser contemplado vagarosamente numa tarde chuvosa, em postura contemplativa, meditativa; mas principalmente podemos retornar a ele a vida inteira. Não se esgotarão as miradas destas páginas jamais.
Eu conhecia e possuo um exemplar da segunda edição e vejam só, não posso mais viver sem esta agora, com a galinha na capa me olhando com um olho só, mas em verdade atenta aos seus três pintainhos, acolhidos todos no ninho-cesta de taquara rachada; e com o porco na contracapa de costas para mim sem me olhar porque tem mais o que fazer em seu curral. Agora me afeiçoo permanentemente ao formato retangular – paisagem – com textos e imagens entremeados por páginas plenas de cor de argila, na primorosa criação gráfica de Victor Nosek.
Três apresentações, três referências culturais permanentes – Lina Bo Bardi, Antonio Candido, Agostinho da Silva. Uma vinda desde uma velha península que se rebela contra a Europa e quer alcançar a África no mar interno mediterrâneo, que escolheu e soube interpretar e agir aqui entre nós – uma das mais autênticas de nós mesmos – marcando a modernidade do século 20 como bem suja de terra, sangue, carne e poesia; outro que nos ensinou a ler o Brasil, vindo desde a origem da mesma argila mas sabendo tudo sobre o mar e a terra de tantos rios bonitos de nossas imensidões; outro ainda d’além mar, daquela outra ponta que liga mares, da qual nos despregamos tal qual a Jangada de Pedra de Saramago, nós que temos três umbigos justapostos e descompensados como orifícios originários, um peninsular ibérico, um brutalmente arrancado do outro lado do oceano e outro originário desta mesma terra em que estamos – esta terra que [não] queríamos ver dividida.
É um ensaio fotográfico? Me parece um termo muito pomposo. Não é sequer um ensaio, dado que o livro já está completo como está, ensaio pode ser reticente e este livro não é. Pode se desdobrar infinitamente sobre si mesmo porque são imagens antropológicas – homem e natureza em instantes encadeados – como lições simplificadas de existência. O arquiteto não pretende ser fotógrafo, mas traz aqui o olho enraizado do que viu através dos tempos desde menino e continua a ver, como valor – pesado, medido. São fotografias de olhos que têm raízes e escolhem quando voam na paisagem ou repousam mansamente como a câmera de Ozu, sempre fixa, na altura do umbigo da gente.
A vida tem altos e baixos, sabemos nós que já passamos dos sessenta – dos sessenta anos e dos anos sessenta! – assim é a paisagem mineira do sul de morros e vales com seus matizes tonais de inúmeros verdes. Terra sob nuvens e céus azuis, sombras dos morros sobre si mesmos – como a vida. A vida plana, como seria? Não nos diz respeito, não a escolhemos assim por sina, por vocação ou por temperamento.
E eu que achei que conhecia o sul de Minas, com meu micro habitáculo forasteiro com louças e panelas à mostra, prateleiras e pequenas cortinas feitas à mão… que nada! O mapa mostra que estou ínfima, na pontinha sudoeste, no ladinho deste microcosmos do qual desconheço outras paragens.
Mas voltemos ao livro. Pessoas que não são de riso fácil mas que te olham com atenção – ou não te olham sequer porque também têm mais o que fazer, como o porco e o cavalo na plenitude de suas existências ou na lida diária. Pessoas ao lado de suas coisas onde não está tudo arrumadinho e composto para a fotografia; trempes, apetrechos, ferramental? Acabou de usar, vai usar logo mais ou no dia seguinte. E assim são explicitados os tempos da continuidade perante a vida que respeita ciclos.
Não parece haver qualquer rebuscamento ou caprichoso desenvolver de tradições milenares, profusão de enfeites ou adornos – é a verdade evidenciada em estado concreto como que acabada de nascer. O pau da árvore virou recentemente pilar, viga ou terça e guarda sua morfologia original recentemente transformada. O forno de barro na posição certa, sem cerimônia em usar seu chapéu telhado para proteção – não quer derreter nem rachar, pra quê se pode ser uma coisa híbrida, pra quê forçar os seres à pureza geométrica incongruente? As igrejinhas põem roupas adornadas de missa e o circo põe roupas enfeitadas de fantasia. No mais, seres em sua ontologia primária. Mais “uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir” (1).
Esta é a poesia. João Cabral, como mestre, nos indicou o caminho de opções de natureza análoga. Manoel de Barros também o fez à sua maneira. É contudo um livro de fala mansa, do filho de Dona Aparecida e do Dr. Pedro, que ecoa suas falas ancestrais de amor de pai e mãe, de geógrafo e professora.
“O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor. A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus propósitos!”
Manoel de Barros, O menino que carregava água na peneira
De 1984 lá se vão mais de três décadas de resistência dessa “arquitetura da roça”, com seus jogos de pião de relho, seu preparo de rapadura, suas trupes de circos perambulantes, paióis, currais, frondosas árvores, madeiras portantes para pau-a-piques, no seu “refazer contínuo” “construídas por homens” mas, “por superstição, cujo reboco manual deve ser sempre feito pelas mulheres” (p. 15, 42, 44) como alisam porventura o dorso e os cabelos de seus filhos; com seus terreiros – vazios potentes e articuladores da vida, seus objetos à mostra – baterias de panelas, quaradores, fogões externos, pinguelas e uma profusão de construções secundárias – paiol, galinheiro, chiqueiro, forno de carvão, estoque de lenha ou abrigo da carroça.
“Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.
Manoel de Barros, Sobre importâncias
Paisagem imensa, à página 23, assombro, está até ventando na foto! Se Cèzanne visse iria querer pintar. Precisaria pintar. Mas Guignard já pintou pra nós. Já pintou esta face de nós. Não sei o porquê, mas este livro me dá vontade de pintar… e bordar.
“Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando”.
Manoel de Barros, Quando as aves falam com as pedras
Nota
1BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura, o design no impasse. Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1994, p. 11-13.
Resenhista
Vera Luz – Arquiteta (FAU Mackenzie, 1978), doutora (FAU USP, 2004), professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas. Conselheira, membro da Comissão de Ensino e Formação e Coordenadora da Comissão para Sistematização da Legislação Ambiental do CAU SP. Colaborou em projetos urbanos nos escritórios Joaquim Guedes e Ass., Urbe/Cândido Malta Campos Filho, coautoria do projeto Ligação Leste-Oeste (EEP Mackenzie) e projetos certificados (AQUA-HQE) com a arquiteta Mirtes Luciani, três com pontuações máximas até hoje no Brasil (Programa e Concepção). Autora do livro Ordem e origem em Lina Bo Bardi (Giostri, 2014) e consultora técnica do Movimento Desmonte do Minhocão.
Referências desta Resenha
FERRAZ, Marcelo Carvalho. Arquitetura rural na Serra da Mantiqueira. Apresentações de Lina Bo Bardi, Antonio Cândido e Agostinho da Silva. 3ª edição. São Paulo: Romano Guerra, 2020. Resenha de: LUZ, Vera. A galinha, o porco, os homens e as mulheres na Serra que chora. Resenha Online. São Paulo, n. 228, dez. 2020. Acessar publicação original [DR]