Arquitertúlia: Prosa em construção – Contos de humor não edificantes | Manoel Vaz Gomes Corrêa

Arte sobre a capa de Arquiteertulia de Manoel Vaz 2 Arquitertúlia
Arte sobre a capa de Arquiteertulia, de Manoel Vaz

Há pouco tempo, 25/08/2021, recebi um e.mail de um antigo colega de ginásio no Colégio dos Maristas no Rio de Janeiro. Manoel Vaz Gomes Corrêa, o Nel Vaz, carioca, 75 anos, arquiteto, cartunista e ilustrador. Casado, dois filhos, três netos. Em função das quarentenas e isolamentos provocados pela pandemia são vários os ex-alunos que nos procuram via remota São palavras do autor Manoel Vaz:

“Um livro (já sinto suas contrações), era o que faltava, pois na prancheta, fiz muitas plantas, que estão aí até hoje, regando ou não regando. Quanto a plantar na terra, lembro-me de que na instituição onde trabalhei, em cada projeto inaugurado, plantávamos mudas de pau-brasil, pra compensar o que levaram na marra. Desse modo, posso dizer também que já fui uma espécie de pau pra toda obra”.

A minha resposta foi imediata., pois respondi em 26/08/2021: “A memória não me falhou e você surgiu como uma fagulha na minha frente e com seus 14 anos… Já então rabiscos e desenhos que olhavam o mistério da Arquitetura, mas não só. Que senhor escritor, amigo! E tenho uma frase poética que diz tudo sobre o conto “O telefone”. Não! Não é de minha autoria, a frase é: “das, nun, das Möge der Mann erfüllen, was er als Kind versprochen hat…[Hölderlin].”Que, assim, o homem mantenha o que de menino prometeu”… [Hölderlin]. Parabéns pelo conto. E pelo livro “Arquitertúlia”. Que título maravilhoso!…

Um abraço afetuoso, Gisálio

Em seguida, notei que ele me presenteava então com um conto anexado ao seu e.mail. intitulado “Pelo telefone”. Texto agradável de se ler. Bem escrito, cheio de picardia e humor dá um flagrante na relação entre subjetividade e arquitetura. Mais um pouco tempo se e recebo em 30/11/2021 de Ana Lígia o e-mail:

“Meu nome é Ana Lígia, filha do Manoel Vaz. Com imensa tristeza informo o falecimento do meu pai no dia 02/10/2021. Infelizmente, dois dias depois os exemplares do livro ARQUITERTÚLIA que ele havia encomendado na Editora, chegaram em sua residência. Estou fazendo as entregas para os amigos. Envio o número do meu WhatsApp, se houver interesse. Obrigada, Ana Lígia”

Passagens tomou a iniciativa de publicá-lo neste número que abre o ano de 2022. Brindando nossos leitores com o conto que recebemos diretamente do autor e prestamos nossa homenagem homenagem in memorian de Manoel Vaz.

“Arquitertúlia é uma palavra que já nasceu, mas ainda não viu a luz. É uma mistura de grego com castelhano: Arquitetura, que vem do grego Architekton, e Tertúlia, que deriva de tertulia, da língua espanhola. Segundo Doederlein, arquitetura é música petrificada, e de acordo com o Veríssimo, é a primeira escolha de quem sabe que precisa ter uma profissão séria, mas também não precisa ser tão séria assim. A tertúlia é uma reunião de amigos, para confraternizar, para exercício de cunho literário, ou para empreender alguma ação em conjunto. Um mutirão, por exemplo. Como as vinte e cinco histórias de humor aqui reunidas abordam a mesma temática, ou seja, a obra (não a obra-prima, mas a obra a prumo) que é levantada ou discutida, enquanto a ação decorre. Esta obra, ora é o motivo da encrenca, ora é um projeto de arquitetura para futura encrenca, ora é um serviço de engenharia causador de encrenca. Quando a construção ou reforma não está protagonizando, ela faz parte do coro, pela opinião dos operários que a executam. A tertúlia é um jeito vacinado de se reunirem para construir juntos, ou divergir. Da discussão, dizem os eletricistas, nasce a luz”. (Contracapa),

Antes de tudo, os agradecimentos ao autor Manoel Vaz pelo envio do conto que não chegou a vê-lo publicado, pois veio a falecer em 02/10/2021.

Pelo telefone

[ de Manoel Vaz]

— Desculpe se telefono a essa hora, sou Georgete.

— Se lhe dei meu celular é pra ligar a qualquer momento, fácil ou difícil. Pode falar.

— Pensei muito no que conversamos ontem, e no que andou me dizendo. Quero lhe comunicar que resolvi mudar. Mudar de verdade, se quer saber. Mudança radical, custe o que custar.

— Muito bem pensado, mas lembre-se de que isso não pode ser assim, um impulso inconsequente. Tem de ser uma atitude refletida, amadurecida, Dona Georgete. A senhora tem de se questionar se está em condições de arcar com o ônus desta mudança. Está?

— Estou! Com certeza!

— Então posso tentar ajudá-la, passo a passo. Há tantos caminhos e alternativas ao seu alcance. Por que mudar?

— Porque estou me sentindo péssima, sufocada. Com um aperto no coração, é! Estou estressada com a falta de horizontes na minha vida.

— Hum, vamos ver, esqueça qualquer espécie de aperto. A mulher independente conquista seu próprio espaço, com ambientes arejados, janelas abertas para a vida.

— Isso, a vida, eu queria ver a vida de frente, sem obstáculos, sem baixaria, com sabedoria para analisar as coisas de cima, emocionalmente isenta.

— Estou entendendo, apartamento de frente, com varanda, vigésimo andar…

— Queria ver as coisas como elas são, sem ir na onda dos outros, e sem contrariar a minha natureza.

— … com vista para o mar e muito verde…

— Queria acordar, deixar de ser quadrada; saber levantar, sacudir a poeira. Queria ser uma pessoa iluminada, imprevisível, me renovar, até de vez em quando ser surpreendida no âmago do meu ser!

— Perfeitamente. Cama redonda, luz indireta, ducha íntima…

— E também me sentir pisando nas nuvens, sem esta sensação desagradável de que os meus desejos e esperanças têm a transparência dos sonhos impossíveis de se realizar, compreende?

— Sem dúvida. Acarpetado e com vidro fumê.

— Eu não queria viver na fossa. Precisava de alguma chance que me botasse pra cima, bem up, no momento em que eu cismasse, e eu ciente de tudo.

— Mas é claro. Estação de tratamento de esgoto e elevador panorâmico.

— Eu queria estar alegre comigo mesma, festejar a criança que permanece em mim.

— Sim, salão de festas e playground.

— Eu queria me manter fria diante dos acontecimentos, pois caso me sinta insegura, preciso de alguém que fale meu nome bem alto e me diga quem eu sou.

— Piso de mármore no hall, segurança 24 horas e central de interfone.

— Eu não queria me ver como uma pessoa desalentada, sem remédio. Eu sou uma pessoa de cabeça feita, com várias qualidades.

— Quiosque com farmácia, cabeleireiro e sorveteria.

— Eu sou uma pessoa que mergulho de cabeça em tudo que faço…

— Piscina infantil e de adultos.

— Que nunca me omito e ponho a mão na massa.

— Claro! Pizzaria no play.

— Eu me recuso a ficar parada no tempo. Tenho de estar sempre em movimento.

— Estacionamento coberto. Academia de ginástica, no térreo.

— Eu preciso estar constantemente abalando as minhas estruturas.

— Aulas de dança do ventre…

— Virar tudo de cabeça pra baixo.

— De ioga, também.

— Queria estar permanentemente diante de mim mesma, me questionando, entregue ao calor do desafio, despida de qualquer preconceito e apostando no jogo do destino.

— Entendi. Hall espelhado até o teto, sauna e salão de jogos. Concluído.

— Como, concluído? Então, coloco em suas mãos as chaves do meu coração sangrando, e o senhor não dá nem sinal, não diz nada? Nem uma pista?

— Coração sangrando? Claro, claro, espaço gourmet, pista de cooper. Sinal agora e quitação na entrega das chaves. Tenho ótima oportunidade, com tudo isso. Pode vir aqui agora?

— Como, ir aí agora?

— Aqui, no meu apartamento. Estou de plantão, esperando, com tudo armado. É pegar ou largar.

— Como assim, pegar ou largar? Tá louco? São três horas da manhã, doutor! Por acaso estou lendo Freud. Ele diz que só no terceiro estágio de dependência psíquica é passível de haver envolvimento amoroso entre paciente e analista.

— Ah, é? Então vê aí, no seu Freud, e me responde: em que estágio uma maluca confunde o número do celular do seu analista com o celular do seu corretor de imóveis?

Está de parabéns a Editora Viseu.


Resenhista

Gisálio Cerqueira Filho – Professor Titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense. Editor de Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. E-mail: gisalio.cerqueira@gmail.com  https://orcid.org/0000-0001-5047-4376


Referências desta Resenha

CORRÊA, Manoel Vaz Gomes. Arquitertúlia: Prosa em construção – Contos de humor não edificantes. Maringá: Viseu, 2021. Resenha de: CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Entre Arquitetura e Literatura. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 134-141, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

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