O contexto atual tem sido marcado por retrocessos nas políticas públicas voltadas ao setor educacional, cultural e patrimonial, por manifestações reacionárias frente aos debates sobre identidades de gênero e diversidade sexual e pelo escancaramento do racismo que caracteriza, historicamente, a sociedade brasileira e tantas outras. Tal conjuntura traz, portanto, desafios específicos para pesquisadoras/es e profissionais do campo da Arqueologia e do Patrimônio. Não por acaso, exemplos mundo afora têm evidenciado tensões e descontentamentos vinculados a essas áreas. Insurgências contra monumentos masculinistas e que representam figuras responsáveis pela colonização e escravização de povos indígenas e africanos têm provocado debates acerca da retirada dos mesmos, evidenciando a luta pelo patrimônio e pelo direito à memória.
Este número da Revista de Arqueologia Pública reúne reflexões que, de diferentes formas, demonstram o papel da crítica feminista e dos debates em torno da historicidade das identidades de gênero no campo da Arqueologia, do patrimônio cultural e da memória, bem como refletem a multiplicação de abordagens, inspiradas sobretudo pelas discussões feitas por feministas negras, lésbicas e trans, em diálogo com os marxismos, os estudos culturais, pós-coloniais e decoloniais. Em decorrência disso, variáveis como raça, classe, sexualidade, geração, dentre outras, aparecem como eixos incontornáveis, analisados de forma interseccional ao gênero.
O dossiê Arqueologia, Patrimônio e Gênero: provocações feministas reúne desde reflexões teóricas, pesquisas e análises das narrativas arqueológicas e patrimoniais.
O conjunto de artigos que abre o dossiê traz pesquisas que acionam o gênero em análises de contextos arqueológicos, materialidades e visualidades, evidenciando relações sociais, a agência das mulheres e seus silenciamentos. Essas análises são encaminhadas em contextos diferenciados, desde a musealização de uma múmia andina em uma instituição alemã, passando pelos estereótipos construídos acerca de Otávia e Cleópatra na Antiguidade, com ênfase na crítica ao androcentrismo, pelas representações das mulheres em pinturas em Pompeia, chegando até o contexto do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais (Brasil), quando são observadas as transgressões das normas de sexo e gênero pelas mulheres ceramistas. Trata-se, respectivamente, dos artigos: “200 Years a Woman, 1000 Years a Man: The Case of the Marburg Mummy” de Anna-Maria Begerock, Isabel Martínez Armijo, Christiane Clados, Mercedes González e Nina Ulrich, “Octavia and Cleopatra among rivals” de Tais Pagoto Bélo, “Arqueologia de Gênero e o estudo das mulheres romanas: perspectivas a partir das pinturas de Pompeia” de Gabriela Isbaes e “Cultural construction in gender studies in Brazil: Heritage and ceramist women of Jequitinhonha valley” de Juliana Figueira da Hora e Ligia Baruque Diogo.
Um segundo bloco, é formado por três textos: “Genre et diversité dans les contextes archéologiques” de Isabelle Algrain, “Para além do binarismo de gênero: reflexões para a Arqueologia” de Lucas Oliveira e “Os impasses da Bioarqueologia: o dimorfismo sexual sob uma crítica Transfeminista” de Violet Baudelaire Anzini. São textos que trazem perspectivas que criticam, de forma contundente, os estudos de gênero que ainda se pautam em uma visão binária de sexo e gênero, ancorada no dimorfismo sexual. Esses artigos fornecem um corpus teórico e conceitual de suma importância, enfatizando a existência de gêneros não-binários, fluídos e trans-identitários, com pesquisas sobre contextos norte-americanos, ameríndios e no Brasil contemporâneo. Diante dessas reflexões, a perspectiva cisheteronormativa é abalada em suas premissas e bases, que se revelam frágeis, ideológicas e coloniais. Destacamos o transfeminismo, conforme artigo de Violet Baudelaire Anzini, como uma abordagem especialmente relevante da crítica ao campo da arqueologia e do patrimônio.
Também formado por três artigos – a saber: “A musealização da arqueologia pela perspectiva do putafeminismo: materialidades e narrativas de trabalhadoras sexuais em uma exposição na cidade de Pelotas (RS)” de Vanessa Avila Costa e Louise Prado Alfonso, “Territorialidade Queer: território e corpo no centro de Goiânia” de Áureo Rosa e “A construção de cartografias insurgentes: um relato sobre a oficina Devassos no Paraíso, Bichas e Putas em um País Tropical: Discutindo Arqueologias e Sexualidades” de Newan Acacio Oliveira de Souza, Vanessa Avila Costa e Louise Prado Alfonso –, um terceiro bloco congrega trabalhos especialmente relevantes para uma arqueologia do e no presente, que atue de forma consistente no combate contra as opressões de gênero e sexualidade. O diálogo com as paisagens urbanas é estabelecido nos artigos, que transitam pelo putafeminismo, pela teoria queer e pelas dissidências sexuais.
O quarto e último bloco prima pelas análises das representações das mulheres, com especial atenção para os atravessamentos entre gênero, sexualidade, raça e classe, sob o viés da interseccionalidade. Ele é formado por quatro textos: “Entre nós: leituras e olhares feministas sobre a representação das mulheres em narrativas arqueológicas e visuais” de Camila Azevedo de Moraes-Wichers, Aluane de Sá da Silva, Giovanna Silveira Santos, Karlla Kamylla Passos dos Santos, Luciana Bozzo Alves, Paula Cristina de Almeida Silva, Wynne Borges Carneiro e Zilda Vieira Simas Oliveira; “As narrativas fílmicas sobre grupos do passado e a naturalização de estereótipos de raça e gênero em ações da educação patrimonial” de Marina Neiva de Oliveira; “Empoderamento feminino e impactos do turismo em Magdalen de Cao” de Nádia Carrasco Pagnossi e, por fim, “Why always male bodies? 2.0 Revisiting Underwater Archaeology” de Marina Fontolan. O campo científico da arqueologia tem construído narrativas que têm sido alteradas apenas lentamente, passando de corpos masculinos para corpos não marcados, e com uma presença, ainda minoritária, de corpos femininos, como na arqueologia subaquática. Prevalecem os corpos cis, brancos e heterocentrados na arqueologia e no campo patrimonial, de forma ampla. Por outro lado, os projetos educativos, de musealização e turismo arqueológico, podem fortalecer as representações praticadas pela academia, ou podem ser um lugar para desconstruí-las. Alguns dos textos desse bloco trazem essas intervenções nas fissuras da colonialidade. Por fim, a indústria cultural acaba reproduzindo e influenciando as narrativas construídas pela academia e pelos processos de socialização. Filmes, novelas e histórias em quadrinhos são alguns dos meios por onde circulam imagens que fixam os papéis do feminino e do masculino, conforme demonstram alguns artigos.
Por fim, o dossiê é encerrado com a tradução de um artigo de Barbara Voss “Feminismos, teorias queer e o estudo arqueológico de sexualidades passadas” (Feminisms, queer theories, and the archaeological study of past sexualities), inédito no Brasil e publicado originalmente no ano de 2000. Docente do Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford, Voss tem atuado na arqueologia histórica, na arqueologia do colonialismo e da diáspora chinesa, entre outros temas, articulando estudos de gênero e sexualidade, teoria queer e pós-colonial.
Compreendendo o papel das materialidades e visualidades, o dossiê traz em sua capa uma homenagem à socióloga, vereadora e feminista Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro, e à Maria Lugones, professora e feminista, falecida em 14 de julho de 2020.
Com a publicação dos textos aqui reunidos, esperamos contribuir para provocar muitos debates e ações!
AGRADECIMENTOS:
Com nossos agradecimentos à Joana Schossler e à Aline Vieira de Carvalho, pela parceria e entusiasmo compartilhados no processo de construção do presente dossiê, bem como a todas as pessoas que compõem a equipe editorial da revista.
Organizadores
Camila A. de Moraes Wichers – Bacharelado em Museologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS/ UFG) Professora do Bacharelado em Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FCS/UFG). Colabora com o Museu Antropológico da UFG. Membra do Ser-Tão – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (FCS/UFG) e da Rede de Ocupações, Parcerias e Afetos (ROPA). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/FCS/UFG) Ser-Tão – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (FCS/UFG).
Letticia Batista Rodrigues Leite – Licenciada e bacharelada em História pela Universidade Estadual de Campinas e Mestra em História Cultural pela mesma instituição. Doutora em História pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne/ANHIMA (Anthropologie et histoire des mondes antiques) – diploma validado pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente atua como Pesquisadora Colaboradora Plena, no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília e no Grupo de Pesquisa Archai, nas linhas de pesquisa Recepção do pensamento antigo e Assembleia das Mulheres.
Referências desta apresentação
WICHERS, Camila A. de Moraes; LEITE, Letticia Batista Rodrigues. Editorial. Revista Arqueologia Pública. Campinas, v.16, n.1, p.1-5, 2021. Acessar publicação original [DR]
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