SILVA, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da. Arqueologia Funerária: Corpo, Cultura e Sociedade. Ensaios sobre a interdisciplinaridade arqueológica no estudo das práticas mortuárias. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2014, 133p. Resenha de: MAIOR, Paulo M. Souto. Clio Arqueológica, Recife, v.30, n.1, p. 154-159, 2015.
O livro reúne ensaios extraídos de artigos e monografias escritas pelo autor desde 2001 e representa a primeira obra dedicada à Arqueologia Funerária publicada pela UFPE. Os temas dedicados aos estudos da Antropologia Biológica e Arqueologia Funerária são relativamente escassos na bibliografia brasileira, isso porque os resultados das pesquisas são restritos a artigos, dissertações e teses do meio acadêmico.
O livro contém vinte capítulos, todos introdutórios aos temas da Bioarqueologia e da Arqueologia Funerária, com revisões de autores anglo-saxões clássicos, como L. Binford, Tainter, O´Shea, P. Ucko, J. Brown, C. S. Larsen, Saxe, R. Chapman, I. Hodder, Douglas Ubelaker, Don Brothwell, Simon Mays, John Hunter, Tim White, W. Bass, Hertz, Bendann, Margaret Cox, Jane Buikstra, Ian Morris, Parker Pearson e os franceses Louis Vincent Thomas, Henri Duday, Pettitt e Edgar Morin.
E de fato, no Nordeste do Brasil, realizaram-se vários estudos arqueológicos sobre cemitérios históricos e pré-históricos, entretanto, esses trabalhos não fizeram, em certa medida, interpretações arqueológicas dirigidas aos dados mortuários de natureza biológica, com reconstituições dos perfis biológicos em conjunto com os perfis socioculturais, tecnológicos e funerários.
Por outro lado, a proposta do autor recai em uma abordagem que retoma à importância da relação das Ciências Biológicas, da Antropologia, dos sistemas de registro dos contextos arqueológicos com os estudos mortuários na Arqueologia e que possibilita reconstituir as relações sistêmicas entre os indivíduos, nas suas sociedades e destes com o ambiente. É o caso, por exemplo, do cemitério do Pilar2, recentemente escavado pela Fundação Seridó, e os pré-históricos: abrigo Pedra do Alexandre, escavado por arqueólogos da UFPE; sítio Justino; Furna do Estrago; e Gruta do Padre, nos quais a abordagem da Bioarqueologia e dos estudos mortuários permitiram reconstituir parcelas dos contextos arqueológicos e das relações homem/homem, homem/sociedade e homem/ambiente.
Além da diversidade de assuntos tratados sobre o tema da morte na Arqueologia, como a conceituação de Arqueologia da morte, da Bioarqueologia e alguns dos seus alcances, entre outros aspectos, o livro apresenta uma bibliografia significativa sobre esses temas multidisciplinares. Isso significa que, nesse texto, as formas de abordagem dos registros arqueológicos de natureza mortuária e funerária demandam leituras em áreas do conhecimento nem sempre permeáveis entre si, como a Anatomia e a História ou a Biologia e a Antropologia.
Levando em consideração que os estudos sobre a morte e a reconstituição de estilos de vida do passado têm representado campos de interesse da Antropologia da morte e História da morte, no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, e que o corpo humano faz parte dos remanescentes arqueológicos encontrados nos sítios cemitérios, o fator biológico nas análises torna-se imprescindível, resultando no auxílio necessário da Antropologia física ou biológica, desde o séc. XIX. Sobre essas e outras questões, o autor desenvolve os seus capítulos.
O problema do corpo em sua amplitude material, social, simbólica e fenomenológica está inserido no rol de interesses da Arqueologia de longa data. No livro, esse problema é revisitado, e o corpo, ora visto como biofato — objeto da Osteoarqueologia —, ora como objeto de cultura material — objeto da Arqueologia e da Antropologia —, guarda em si mesmo traços de comportamento, da cultura e da sociedade no qual estava inserido. Essa perspectiva valoriza o tipo de vestígio oferecido pelos remanescentes ósseos humanos e o seu potencial de análise e interpretação.
O autor enfatiza sobre o corpo e o seu estudo na Arqueologia e a necessidade de integração das ciências tradicionalmente vinculadas ao seu estudo, como a Medicina, a Odontologia, a Biologia e as Ciências Biomédicas. Também aparecem como recorrentes as contribuições da Antropologia, da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia, da Semiótica e da História. O conceito de população, advindo da Biologia, se interpõe — e ora se sobrepõe — ao de sociedade ou grupo humano nos estudos dos sepultamentos arqueológicos. Com esse foco, o autor enfatiza a necessidade constante da interação entre as Ciências Biológicas e a Arqueologia na produção de conhecimento científico sobre as sociedades do passado, seus estilos de vida, suas práticas funerárias, suas formas de subsistência e sua interação com o ambiente, com as doenças, com os traumas, com as anomalias, com os estresses e com as características demográficas.
Adverte o autor que, como os sepultamentos contêm dados mortuários relativos aos objetos de cultura material eventualmente associados ao morto, a exemplo da cova — ou a estrutura de sepultamento — e o corpo — ou seus remanescentes —, o estudo deve ser multidisciplinar e também com a devida inclusão das ciências como a Metrologia arqueológica, a Química e a Física arqueológica, amenizando as explicações eventualmente infundadas das Ciências Humanas. Esse talvez seja o maior mérito do texto. E, de fato, com caráter eminentemente vestigial ou fragmentário, os remanescentes das práticas funerárias nos sítios arqueológicos devem ser estudados contextualizados, e a sua espacialização é absolutamente necessária a uma interpretação arqueológica eficaz sobre cada indivíduo e na sociedade na qual viveu.
As interpretações arqueológicas dos sítios cemitérios pré-históricos no Brasil ainda merecem coletâneas de grande porte, especialmente voltadas aos níveis de confiabilidade dessas abordagens interpretativas. Nesse aspecto, o autor procurou expor a necessidade de terminologias e classificações objetivas para a descrição inicial dos sepultamentos humanos; sobre a importância da escavação meticulosa, sempre enfatizando a importância dos sistemas de registro, como a fotografia e o desenho de Arqueologia, dentre outros recursos que demandem um adequado alfabetismo visual; o uso do conhecimento da Osteoarqueologia em campo; e a curadoria de curta, média e longa duração de coleções antropológicas que estão sob a guarda de instituições de pesquisa científica, valorizando a elaboração de catálogos sistemáticos de remanescentes funerários voltados aos estudos comparados entre populações com formas de subsistência, localização geográfica e cronologia diferentes. Em outros termos, para que exista a confiabilidade em qualquer interpretação, é necessário o fundamento factual que apresente o benefício da prova científica, oferecida por um registro adequado dos vestígios funerários inseridos no contexto arqueológico e pela sua decapagem e observação alfabetizadas em campo e no laboratório.
A formulação de descritores fiáveis, passíveis de verificabilidade e reprodutibilidade mínimas, aplicados aos dados mortuários, é fundamental para a reconstituição e comparação de perfis funerários — culturais — e de perfis biológicos ou bioculturais, e a consequente interpretação arqueológica, a partir de unidades de análise, é uma advertência que o autor faz em estudos sobre a morte na Arqueologia. E, segundo ele, esse tipo de dado é muitas vezes fragmentário e incompleto. O estilo de vida, as interações ambientais, as doenças e as características socioculturais e demográficas de cada indivíduo exumado em um cemitério pré-histórico, tanto quanto o seu papel no processo de ocupação do continente americano e as suas afinidades biológicas e culturais, são possíveis, conforme propõe o livro, apenas a partir da interdisciplinaridade de todas essas áreas do conhecimento.
Por fim, cabe ressaltar que o livro apresenta um panorama da complexidade de abordagens e possibilidades mais adequadas no estudo das práticas funerárias em sociedades humanas do passado, com uma perspectiva teórica dada pela interação entre as Ciências Sociais e Humanas e as Ciências Biomédicas e exatas, sem, contudo, aprovar as apropriações hegemônicas das Ciências Biológicas sobre as arqueologias.
Nota
2 PESSIS et al.. Evidências de um cemitério de época colonial no Pilar, Bairro do Recife, PE. Revista Clio Arqueológica. V. 28, n. 1, 2013.
Paulo M. Souto Maior – Departamento de Arqueologia, UFPE.
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