Este dossiê se circunscreve na importância que a arqueologia e a cultura material adquiriram na última década, potencializadas pela complexa legislação de defesa do patrimônio, criadas e em vigência nos países da América do Sul. Em consequência, multiplicaram-se as demandas de profissionais para as diversas áreas de estudo e preservação dos patrimônios materiais e imateriais. Como resultado dessa nova realidade, a Universidade de Passo Fundo passou a ofertar um curso de Especialização em Cultura Material e Arqueologia, abriu vagas para pós-graduandos para mestrado e doutorado nesses temas, constituiu o seu Laboratório de Cultura Material e Arqueologia (Lacuma), vinculado ao Núcleo de Pré-História e Arqueologia (NuPHA), do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), além de desenvolver diversos programas educativos e de formação.
Esta publicação refere as legislações específicas, analisa as mudanças na definição da Unesco em termos de contextos temporais, sociopolíticos, filosóficos e culturais. No geral, quando se trata de políticas públicas, os profissionais estão sempre diante do dilema de que, socialmente, a construção e a geração de necessidades para criação de patrimônios culturais vêm de grupos hegemônicos, portanto, seu uso é imposto para a sociedade, quase sempre com a intenção de afirmar uma memória confortável.
Nessa inflexão, o dossiê se pauta pela teorização sobre a arqueologia e a cultura material, a fundamentação formativa para a atuação profissional e a apresentação de estudos de caso.
A cultura material e a arqueologia, na perspectiva de formativa de patrimônios histórico e culturais, são temas relevantes do mundo contemporâneo. Circulam entre suas especialidades e temas correspondentes as questões de compreensão histórica, de leitura dos acervos remanescentes, dos sentidos estéticos, funcionais e simbólicos das sociedades humanas, e a diversidade dos modos de vida dos povos. Os documentos materiais, impregnados de trabalho social e individual, constituem os testemunhos desses processos. Estudar, ler, compreender e encontrar os sentidos desses fazer são os atributos metodológicos insubstituíveis da arqueologia e das disciplinas de análise da cultura material. Constituem os alicerces para as políticas de patrimônio.
Em sua metodologia editorial, este dossiê é composto de três partes, formadas pelos capítulos de temas específicos sobre a cultura material e a arqueologia, artigos livres e uma resenha sobre questões transversais de historiografia e memória.
Com a consciência do lugar que a cultura material e a arqueologia ocupam na sociedade, nos capítulos reunimos arqueólogos e historiadores, autores de trabalhos de campo e produção científica reconhecidas na América latina. O leitor encontrará reflexões sobre a importância desses saberes, seus desafios teóricos e a necessidade da formação de profissionais preparados para a realização de investigações. Percebe-se a extraordinária singularidade do homem, ser da dialética da existência no tempo, que indaga sobre as suas origens, constrói discursos sobre seu passado, escava os arquivos do solo para encontrar os vestígios de seus antecessores. Os estudiosos da cultura material e os arqueólogos, com técnicas afirmadas na formação da ciência, são responsáveis pelos milhares de vestígios e suas respectivas interpretações. Nesse desafio teórico, destaca-se a epistemologia e a função social da arqueologia, a relevância do estudo, da compreensão e da proteção dos testemunhos documentais, para garantir, assim, a sobrevivência do futuro do passado, enquanto humanidade.
Essas reflexões estão reunidas no texto de longo espectro do arqueólogo e historiador Arno Alvarez Kern, instigado pela cogitação Nosso passado terá um futuro?, capítulo introdutório desse dossiê.
Nesse âmbito, os autores tomam a própria arqueologia como tema de reflexão e debate. Avaliam o seu potencial e o alcance interpretativo. Pensam-na em relação à abertura de pensamento das ciências humanas e sociais, a sinergia compartilhada de seu corpus.
As bases conceituais e práticas da Arqueologia, em especial devido à sua “autoridade” metodológica, a levaram para áreas de conflito, notadamente, a arqueologia forense, ao estudar áreas de crimes de lesa humanidade, ainda existindo grande parte de seus agentes contemporâneos. Por óbvio, uma pressão enorme geralmente atua sobre os arqueólogos nesses cenários políticos de confrontações, violações dos Direitos Humanos etc. É o exemplo da experiência significativa do arqueólogo Jose Lopez Mazz, dentro da academia e de prospecção. Em seu trabalho, encontra-se a exumação das vítimas da ditadura militar no Uruguai, além de contribuições similares em outros países. Demonstra a relação precária entre arqueologia, direitos humanos e política no Uruguai.
Todavia, também não há conforto entre Arqueologia e interesse de mercado. A preservação quase sempre antagoniza os empreendimentos ou o desejo de exclusivismo da propriedade privada, que, invariavelmente, considera o patrimônio cultural um problema, seja na circunscrição de espaços culturais e artísticos ou na descoberta do naufrágio de uma embarcação, na reutilização urbana de espaços de memória, assim como de estátuas missioneiras, testemunhas dos povoados e estâncias da população rural missioneira.
Nesses aspectos, Marcelo Weissel Álvarez, estuda duas polêmicas da arqueologia urbana em Buenos Aires, ao circunscrever A abstração do Tango e os destroços do Zencity, nos movimentos para a definição espacial da música emblemática de Buenos Aires e sobre o naufrágio de uma embarcação e o crescimento urbano da capital argentina. Questão também relevante do patrimonialismo é a reutilização dos espaços de memória, invariavelmente enfrentada pelos profissionais e pela necessidade de normatização das políticas públicas. Destacando a particularidade dos edifícios patrimoniais do Uruguai, México e Venezuela, Jenny González Muñoz, doutora em Cultura e Arte para América Latina e o Caribe, reflete sobre as intervenções nas arquiteturas originais desses lugares de memória, onde se estabelecem outras perspectivas de uso, nem sempre vinculadas às vocações culturais. Soma-se ao aspecto da cultura material, como constitutiva de espaços, a estatuária missioneira das áreas rurais, pertencentes às doutrinas fundadas por jesuíticas e indígenas na América meridional, no capítulo escrito pelos historiadores Jacqueline Ahlert e Luiz Carlos Tau Golin. Nele se considera a complexidade da criação desses contornos em sua significância relacional e sua remanescência.
O reconhecimento e a manutenção dos lugares de memória é uma atividade recorrente, da qual depende a importância social, cultural e histórica dos espaços. Os estudos aqui reunidos expressam a importância da Cultura Material e a Arqueologia para a compreensão das sociedades humanas e a complexidade da civilização.
Na transversalidade da abrangência dos temas específicos deste dossiê, encontram-se os artigos livres. O historiador Igor Luis Andreo, em América Latina e as histórias transnacionais, conectadas e cruzadas: a comparação ainda é pertinente para o campo historiográfico?, trata das semelhanças, divergências e limites dos métodos da transnacionalidade e da história comparada, além de destacar a sempre necessária adequação dos métodos, teorias e conceitos aos objetivos e objetos a serem estudados. Luis Fernando Tosta Barbato, no artigo Os portugueses e a colonização do Brasil na Revue des Deux Mondes: mensageiros da civilização ou males de nossa terra?, estuda as publicações da Revue des Deux Mondes, do século XIX, com a intenção de compreender as representações sobre os portugueses e a colonização que empreenderam no Brasil. Identifica os olhares dos viajantes franceses sobre os portugueses, analisa as relações entre os climas e a formação dos povos.
Daniel Afonso da Silva, em À sombra do general: a consolidação da relação franco-brasileira contemporânea – 1997-1999, demonstra as implicações da visita do presidente Jacques Chirac ao Brasil em março de 1997, após a visita de estado do presidente Fernando Henrique Cardoso à França em maio de 1996, consolidando a relação franco-brasileira. Hernán Ramirez, em Trajetória intelectual e política de Roberto Campos desde sua escrita de si, tece ponderações sobre personagem importante da política econômica brasileira na última metade do século XX, demonstrando a sua flexibilização teórica entre o estruturalismo juvenil e a ortodoxia neoliberal, implicando, por intermédio de sua militância, em programas de governo.
E, para finalizar a seção de artigos livros, Fabiano Quadros Rückert apresenta O abastecimento de água na perspectiva da historiografia europeia e hispano-american, o texto descreve um panorama dos estudos sobre a história do abastecimento de água na Europa e na América Latina, destacando aspectos como as relações entre a oferta de água e o capital privado, os conflitos de interesse existentes na gestão dos recursos hídricos e o papel do poder público na criação e administração de sistemas modernos de abastecimento.
Encerra esta publicação a resenha de Eduardo Roberto Jordão Knack sobre Batalhas pela memória: ditaduras, revoluções e democracias, livro organizado por Manuel Loff, Filipe Piedade e Luciana Castro Soutelo. Os artigos reunidos na obra abordam sociedades que foram submetidas aos regimes fascistas ou “fascizados”, sob forte repressão social e policial, especialmente entre os anos 1970-1980. A leitura complexifica os elementos presentes em rememorações de grupos e sujeitos, em sua relação com a história e com as políticas públicas que tratam do passado.
No conjunto das reflexões dos autores, o dossiê Cultura Material e Arqueologia reflete conteúdos de contemporaneidade, oferecendo à academia e ao público leitor questões que podem auxiliar na compreensão do tempo presente, com a necessária erudição historiográfica.
Jacqueline Ahlert – Professora Doutora. Universidade de Passo Fundo
Luiz Carlos Tau Golin – Professor Doutor. Universidade de Passo Fundo
Organizadores
AHLERT, Jacqueline; GOLIN, Luiz Carlos Tau. Editorial. História – Debates e Tendências, Passo Fundo- RS, v. 17, n. 1, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]
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