O ponto de partida de José Alberione dos Reis, uma proposta que ganha força entre os arqueólogos que estão revisando e reorganizando dados acumulados por décadas em diversas regiões do Brasil, visa realizar “um trabalho de propostas, de sugestões, de sistematização, de apontar problemáticas”. O cumprimento deste objetivo foi possível graças a uma ampla organização e sistematização das informações contidas nos trabalhos sobre os sítios arqueológicos do tipo “buracos de bugre”, incluídos nas tradições Taquara, Itararé e Casa de Pedra presentes na Região Sul. O resultado é uma síntese balizada com rigor pelos parâmetros da Arqueologia Processual, que ordena os dados publicados e que realmente aponta para novos caminhos, a partir de uma minuciosa análise das informações coletadas desde a década de 1960. Ao mesmo tempo, o livro apresenta de forma didática os conceitos e a seqüência de passos necessários para análise de aspectos ambientais, tecnológicos, econômicos e sociais a partir da abordagem processual. Além disso, também mostra um histórico das pesquisas realizadas, examinando os itinerários intelectuais de onde saíram as idéias e as práticas daqueles que formataram a maior parte do conhecimento arqueológico sobre o sul do Brasil.
O conceito deste tipo de sítio arqueológico, normalmente associado com ambientes de clima mais frio devido à altitude, é posto em questão diante do exame criterioso dos pressupostos deram substrato à terminologia existente na Arqueologia Brasileira. Assim o autor analisa criticamente o alcance das idéias enunciadas sob a terminologia “casa subterrânea”, concordando com Maria José Reis, realizadora da primeira pesquisa de abordagem processual sobre este tipo de sítio em uma conhecida dissertação de mestrado defendida em 1980, que escreveu acertadamente que as “conotações funcionais específicas que o termo casa pode sugerir” ignoravam outras possibilidades funcionais, generalizando de forma inapropriada a idéia exclusiva da função moradia. O termo “estrutura” introduzido por Maria José permitiu uma definição mais ampla, a ser especificada durante as pesquisas, abrindo o leque para várias possibilidades funcionais que podem ser identificadas (p. ex.: locais rituais, depósitos, armadilhas, etc). Por seu turno, José Alberione dos Reis defende que o uso da expressão popular “buraco de bugre” deveria ser mantida até que se “tenha trabalhado e interpretado em termos de contextos que relacionem o espaço vivido e construído… e o homem que lá viveu”.
Outro aspecto importante do livro, que merece ser reproduzido em sínteses desta natureza, é a necessária recuperação, compilação e a análise dos dados disponíveis sobre cada um dos sítios arqueológicos registrados no sul do Brasil. Este trabalho resultou no reconhecimento objetivo das variáveis para identificar o padrão de assentamento e de inserção na paisagem dos “buracos de bugre”, propiciando uma alternativa para resgatar as relações das sociedades com o ambiente e superando as limitações das meras descrições de cenários ecológicos a-históricos que ilustram a maioria das publicações . Outra lição que se pode tirar, foi o estabelecimento de uma abordagem que ultrapassou as usuais generalizações sobre a relação entre sítio e paisagem, com a percepção muito clara de que o conjunto da bibliografia arqueológica brasileira ainda possui inúmeras informações pouco ou nada aproveitadas e analisadas sistematicamente para aprofundar o conhecimento sobre a adaptação ecológica dos construtores dos “buracos de bugre”. Com estes exemplos a comunidade de arqueólogos passa a receber um forte incentivo para ultrapassar a tradição classificatória, mais voltada para descrever e comparar certas (poucas…) evidências arqueológicas, e resgatar a vasta quantidade de dados que ainda precisam de análise e interpretações, cujo exemplo pode ser seguido a partir da pesquisa de José Reis.
O livro em questão é um exemplo a ser seguido no processo de renovação metodológica e de atualização teórica da Arqueologia no sul do Brasil, especialmente na revisão e reinterpretação dos dados já disponíveis. Também é a indicação de um novo caminho, que aponta com consistência para o contexto das idéias internacionais da Arqueologia e do panorama etnológico americanista, retomando um caminho que foi abandonado em meados da década de 1960, quando aqueles que construíram o campo científico da arqueologia sul-brasileira achavam necessário tratar a cultura de uma maneira artificialmente separada dos seres humanos.
Resenhista
Francisco Silva Noelli – Universidade Estadual de Maringá.
Referências desta Resenha
REIS, José Alberione dos. Arqueologia dos buracos de bugre: uma Pré-História do Planalto Meridional. Caxias do Sul: EDUCS, 2002. Resenha de: NOELLI, Francisco Silva. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.8, n.15, p.183-185, jan./jun. 2004. Acessar publicação original [DR]
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