Aristotle’s Metaphysics Alpha: Symposium Aristotelicum – STEEL (RA)

STEEL, C (Ed). Aristotle’s Metaphysics Alpha: Symposium Aristotelicum. Oxford: Oxford University Press, 2012. Resenha de: LAKS, André. Revista Archai, Brasília, n.15, p. 157-163, jul., 2015.

Esta obra procede do 18° Symposium Aristotelicum ocorrido em 2008 em Louvain, no qual as primeiras versões de todos os ensaios, à exceção de um, foram apresentadas e discutidas. Certamente o primeiro livro da Metafísica de Aristóteles é, no mínimo, tão famoso quanto os demais, embora talvez seja o menos lido, se por “lido”se entende “lido por si mesmo”, em vez de ser utilizado pelas informações exclusivas que dispõe da aurora da filosofia grega e de Platão. Uma clara indicação disso é que, salvo a edição e comentário ainda indispensáveis de toda a Metafísica por Ross, não dispomos (tanto quanto eu saiba) de nenhuma obra específica dedicada ao Livro A – compare-se com o Gamma, os assim chamados livros centrais, Lambda, e mesmo o Beta. O presente volume que é o resultado de muita organização, muito trabalho e muitas discussões vem agora suprir esta falta de maneira significativa. Ele não  constitui propriamente um “comentário contínuo”do Livro A. Primeiro, por haver onze comentadores (aproximadamente um para cada um dos dez capítulos, exceto o A9, que tem dois 1); segundo, porque nem todos os pormenores do texto aristotélico são discutidos (embora grande parte deles de fato o seja); e terceiro porque, como se espera de uma compilação, cada capítulo assume a feição de um ensaio e assim se mantém guiado por questões definidas ou por um conjunto de questões. No entanto, mesmo com essas particularidades, o volume transmite uma impressão de notável homogeneidade, especialmente por que (quase) todas as contribuições seguem a progressão do texto de Aristóteles seção a seção, com marcações adequadas e intertítulos. Uma tradução pessoal das passagens comentadas é frequentemente apresentada antes dos comentários propriamente ditos. Assim, o volume como um todo funciona efetivamente à maneira de um comentário polifônico (multi-voiced) e pode ser assim utilizado.

O capítulo 9 (sobre a concepção platônica de causa formal) revela um aspecto peculiar, seja do ponto de vista formal, seja em termos de conteúdos, e tem sido constantemente objeto de atenção específica pois, tomado em conjunto com o comentário de Alexandre, encerra o material básico para a reconstrução da crítica aristotélica à teoria das Formas de Platão. Neste caso, é especialmente útil – e agradável, dado o grau elevado de tecnicidade e especulação que se têm posto ao serviço da reconstrução de argumentos completa ou parcialmente perdidos – dispormos de duas contribuições (de Dorothea Frede e Michel Crubellier) que apresentam panorama claro e atualizado de todo o desenvolvimento, acompanhado de avaliação breve, mas razoável, de cada argumento. Visto que não se pode tratar deste capítulo desvinculado da sua retractatio e repetição parcial no livro M, M4-5 também merece alguma atenção.

Uma nova edição, por Oliver Primavesi, do texto da Metafísica A segue-se aos onze ensaios. Esta inserção, se comparada aos volumes anteriores da mesma série, representa uma inovação formal. Contribui para a unidade do volume, pois as decisões acerca do tratamento de problemas textuais no interior de cada trabalho refere-se sistematicamente ao texto e sigla de Primavesi, seja para indicar acordo ou discordância. Não obstante, pode-se avançar dois pontos de vista muito diferentes sobre semelhante inclusão. Por um lado, esta edição representa o primeiro passo rumo a uma nova edição da totalidade da Metafísica de Aristóteles, destinada a substituir a de Ross e a de Jaeger (cf. as stemmas de Primavesi para as diferentes partes da Metafísica p. 392ff.; para o Livro A- α 2, em que J desaparece, cf. p. 397). Por outro lado, constitui-se em uma contribuição específica ao volume, que é textualmente orientada, mas implica um número importante de problemas interpretativos.O tratamento apropriado do primeiro aspecto exigiria discussão extensa e técnica que não estou em condições de oferecer mais por razões de competência, do que pela natureza desta resenha. Mas no que se refere ao segundo aspecto eu diria que, embora a edição seja útil e estruturada com clareza (com uma introdução de 80 páginas, contendo a análise mais proveitosa das 23 passagens da Metafísica A), sua consulta não é propriamente fácil. O texto grego de Aristóteles está dividido em pequenas seções imediatamente seguidas pelo aparato crítico correspondente, interrompido pela numeração das linhas uma a uma e pela referência, antes de cada seção (de 987a6 em diante) ao assim chamado Textus de Averróis em seu Comentário à Metafísica de Aristóteles (cf. p. 400). E isso sem mencionar o aparato rico – demasiado rico, eu penso, para a finalidade do volume em questão e talvez até mesmo para uma edição da Metafísica em geral. Felizmente, a informação mais significativa a que os ensaios se referem sistematicamente, a saber, a questão de se uma determinada leitura pertence à assim chamada tradição- alfa ou à tradição- beta, pode ser facilmente compreendida graças ao uso das letras α e β em negrito, as quais o leitor também encontra em todas as contribuições.

O primeiro livro da Metafísica contém duas seções principais. A primeira (A1 e 2) esboça o quadro geral de determinada investigação, dedicada a uma área de pesquisa cujo objeto é definido posteriormente. Tal será a tarefa dos livros subsequentes, iniciando-se com as aporias do Livro Beta, claramente anunciadas nas últimas linhas do capítulo 10 – e que emerge, em certo sentido, do que Aristóteles estava desenvolvendo na Metafísica A (esta é uma compreensão importante que é claramente apresentada por John Cooper em seu “Retrospecto”, p. 351-53). Na Metafísica A, a investigação em análise caracteriza-se como sabedoria (sophia) e lida com as primeiras causas, o que significa, neste caso concreto, as primeiras causas do ser e dos entes enquanto tais (Sarah Broadi, “Uma ciência dos primeiros princípios”, sobre A2, p. 65; Rachel Barney, “História e dialética”, sobre A3, p. 73; Cooper, que, mais uma vez, insiste corretamente neste ponto, p. 358-361). Tal sugere de imediato que até mesmo a razão de Aristóteles para se empenhar em uma exposição (e crítica) da concepção dos seus predecessores de A3 a A10, não pode limitar-se apenas a confirmar a exatidão da doutrina das quatro causas conforme exposta na Física, embora componha certamente parte do projeto (cf. A3, 983a24-983b6, com os comentários de Barney, p. 74; A7, 988a21-23, com os comentários de Primavesi em seu “Reconsiderações sobre alguns pré-socráticos”, p. 226; e as linhas iniciais do capítulo conclusivo, 10, com Cooper, p. 336ff.). Teria a sequência seguida por Aristóteles caráter teleológico? Esta é a opinião corrente, mas que é rejeitada, ou no mínimo fortemente matizada, em duas contribuições. Stephen Menn, em seu “Crítica dos primeiros filósofos sobre o bem e as causas”(sobre A7 a 8, 989a18), sustenta que pelo menos em A7 Aristóteles não diz

… que assim como algumas pessoas  ́lidaram de modo obscuro ́ com a causa formal, também outras  ́lidaram de algum modo obscuro ́ com a causa final… mas ele diz que os primeiros pensadores… compreenderam imperfeitamente o bem, ao não utilizá- lo como causa final e interpreta isso à luz (e não o inverso) da sentença em A10, 993a14, a qual sustenta que “de certa maneira todos [os tipos de causas] já foram referidos anteriormente”(cf. p. 210, com o n. 18; e, para a retomada geral de Menn sobre o assunto, p. 202 e 216); e Gábor Betegh, ao comentar “O próximo princípio”(sobre A4) acerca da famosa metáfora de Aristóteles em 4.985a5 (cf. 10.993a13), segundo a qual seus predecessores mostravam-se “titubeantes”(tottering), sugere que uma forma de titubear é aquela em que há incerteza sobre o modo de conduzir uma sentença ao seu desfecho. Consequentemente, “mais de uma linha de desenvolvimento [ scil. na história da filosofia] foi possível”(p. 106). Pergunto-me se isto é assaz consistente com a tradução de psellizesthai por “expressar-se de maneira inarticulada”(p. 125 com o n. 46), pois a maneira peculiar como falam as crianças representa, seguramente, certo estágio de um desenvolvimento teleológico. Certamente, a teleologia de Aristóteles não é de tipo “panglossiano”(Menn, p. 216); e pode- se caracterizar a história de Aristóteles mais como “progressivista”do que “determinística”(Betegh, p. 106, com uma análise interessante das complexidades que cercam a antecipação da causa eficiente, p. 110). No entanto, se a observação de Aristóteles sobre os filósofos se verem impulsionados pela “coisa”em si mesma (984a1), ou “pela verdade em si mesma”(984b9f.), aplica-se não apenas aos primeiros filósofos, mas também aos filósofos em geral, talvez seja difícil negar que no mínimo certo teor de teleologia exerce o seu papel no construto aristotélico.

De todo modo, de A3 em diante Aristóteles empenha-se em viés desenvolvimentista do passado filosófico, um tipo inteiramente novo de abordagem. Trata-se de um dos aspectos mais fascinantes do Livro A, pois implica todas as questões básicas acerca do que significa escrever história, sobretudo escrever a história da filosofia, e ainda mais especificamente, escrever a história da filosofia a partir de determinado ponto de vista. Como é compreensível, este é um tema recorrente ao longo do volume. Ressalta-se a novidade da abordagem aristotélica mediante a comparação com os procedimentos anteriores e em que se lidava com a história das ideias, tais como o trabalho “homonoético”de Hípias, a biografia intelectual de Sócrates no Fédon de Platão, e a Gigantomachia em seu Sofista, todos eles textos que exerceram papel implícito, mas importante, no entendimento que Aristóteles tinha da sua própria teorização (Barney, p. 90 e 101 sobre o Hípias e o Sofista de Platão; Menn sobre o Fédon platônico, que sublinha corretamente na p. 211f. a centralidade, para o projeto pessoal de Aristóteles, da identificação do bem como “primeiro princípio”).

A segunda seção da Metafísica A encontra-se subdividida em suas seções: enquanto A3-A6 consiste essencialmente na exposição meticulosa de como as quatro causas – e não mais que quatro – gradativamente emergem ao longo do desenvolvimento de Tales até, pelo menos, Platão, A7-A9 empenha- se na revisão crítica do que os predecessores de Aristóteles tinham a dizer sobre o que as primeiras causas do ser como um todo são. Barney e Cooper empreendem discussão sobre se esta seção liga-se ao mesmo desenvolvimento “histórico”que A3-6, ou se pertence a outro nível, com ênfase clara na crítica, no questionamento aporético, e na dialética. Barney apresenta resposta positiva (p. 103), enquanto Cooper distingue a empresa “histórica”da “crítica”(p. 359). A descrição que Primaveri oferece do desenvolvimento em duas etapas em seu “Reconsiderações sobre alguns pré-socráticos”(em A8, 989a18-990a32) é neutra a esse respeito:

Os capítulos 3-5 fazem tão somente uma pergunta acerca dos primeiros pensadores: se os seus relatos acerca das causas últimas podem ser reduzidos, sem restos, a um ou mais elementos da lista aristotélica de causas. O capítulo 8, por outro lado, analisará os primeiros pensadores em todos os aspectos que podem ser úteis à busca da sabedoria (p. 227).

Com efeito, se alguém escolhe vincular a seção crítica ao trabalho histórico ou não, isso depende do quão amplamente interpreta a “história”ou, mais especificamente, a história filosófica da filosofia. O importante é que os capítulos A3-A9 constituem um todo admiravelmente bem-articulado. Tal não significa que inexistam problemas estruturais ou dificuldades pontuais, a mais interessante das quais se liga à efetiva complexidade da empresa “histórica”de Aristóteles. Um aspecto disso é que, segundo penso, a linha filosófica aristotélica de reconstrução da história da filosofia, certamente predominante na Metafísica Alfa acompanha e em certa medida entra em conflito com, a tendência à exaustividade – tensão que poderia ler-se como antecipando a diferença entre dois modos de se conceber a história da filosofia que é paradigmaticamente representada por Hegel e Zeller.

Uma das grandes virtudes deste livro é que ele sublinha seja o cuidado com o qual Aristóteles desenvolve seu projeto específico, sejam as tensões daí resultantes – para ele e para nós – a partir da sua própria complexidade: qual é exatamente o intuito da seção sobre Leucipo e Demócrito em 4.985b4-20 do ponto de vista do argumento de Aristóteles (Betegh, p. 136ff.)? E “que relevância tem isso para o projeto aristotélico na Metafísica A?”, pergunta Malcolm Schofield em sua análise da seção sobre os eleatas em 5.986b8-987b (p. 159 do seu “Pitagorismo: surgindo da névoa pré-socrática”, sobre A5). Além disso, como a “misteriosa”ausência do nome de Anaximandro é explicada em todo o livro (cf. Barney, p. 78, que menciona o problema, mas não lida propriamente com ele, nem o faz qualquer outra contribuição)? 2 Ademais, é bastante claro que a história relatada nos capítulos 3 e 4, em que Aristóteles resume as concepções de Tales, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e dos eleatas, e brevemente menciona mais alguns nomes (tais como os de Anaxímenes, Hipaso, Diógenes de Apolônia e Heráclito), conduz ao capítulo 5, o qual, ao ocupar o centro de todo o livro, representa um ponto de inflexão em todo o desenvolvimento.

Como fica claro pelo título da contribuição de Schofield (conferir acima), os pitagóricos representam, na construção aristotélica, o momento decisivo na história da filosofia, espécie de ponte entre a filosofia pré-socrática (ou melhor, pré- platônica) “típica”e Platão. Schofield discute o caráter “intersticial”do pitagorismo e é importante que, na apresentação aristotélica, a cronologia encontra-se com o desenvolvimento conceitual (p. 142f.). Com efeito, pode-se afirmar que a partir de A6, apresentada por Carlos Steel (“Platão visto por Aristóteles”), Platão ocupará o centro do interesse e refutação de Aristóteles (em A7b-A9), embora a seção dedicada à crítica aos predecessores se inicie com a crítica aos representantes do pensamento pré-platônico que apresentam potencialmente algum contributo à própria investigação de Aristóteles (cf. a explicação de Primavesi acerca do motivo de Aristóteles se concentrar aqui exclusivamente em Empédocles, Anaxágoras e nos pitagóricos: as concepções de Filolau, Parmênides e Demócrito “encontram-se simplesmente muito distantes do caminho certo, p. 227).”

A centralidade que Aristóteles atribui aos pitagóricos e Platão na história da busca pelos primeiros princípios traduz-se materialmente na extensa crítica à teoria das Formas em A9. Esta crítica divide-se facilmente em duas partes, correspondendo às duas versões ou etapas da teoria das Formas de Platão. A primeira corresponde às exposições clássicas nos diálogos, a segunda, à tese de que as Formas são números. No entanto, embora a divisão entre A9 a e A9 b se justifique perfeitamente e se confirme externamente pelo fato notório de que A9 a é repetida quase palavra a palavra em M 4-5, Crubellier salienta curiosamente em sua contribuição a continuidade entre as duas seções de A9, lidas a partir do ponto de vista específico do projeto aristotélico no Livro A – continuidade refletida na numeração contínua dos argumentos nas contribuições de Frede e Crubellier (de I a VII para A9 a, de VIII a XXIII para A9 b; ver p. 300 e o proveitoso Apêndice I à p. 332, que oferece o plano geral de A9). Formalmente, a concisão e aridez de A9 b não é tão diferente de A9 a (Crubellier, p. 300); substancialmente, e o que é mais importante, enquanto a crítica aristotélica em M revela basicamente natureza ontológica, A9 dirige-se às concepções metafísicas de Platão, “no sentido de uma busca pelos princípios mais fundamentais e universais dos entes naturais e dos fenômenos”(p. 300).

Entretanto, o peso específico do capítulo 9 é manifesto não apenas por sua extensão. O próprio fato de que a refutação assume forma sistemática (a ponto de parecer exceder o verdadeiro objetivo do livro A) justifica-se se Platão, na esteira dos “pitagóricos”, alcançou um ponto decisivo: a descoberta da causa formal que foi ou esquecida, ou apenas ligeiramente esboçada por seus antecessores. É verdade que, de acordo com Aristóteles, Platão fala de forma imprecisa; mas, como observa Cooper, há uma diferença importante entre referir “imprecisamente”e fazê-lo apenas “com hesitação”. Platão permanece impreciso, de acordo com a sugestão de Cooper, porque “a filosofia necessita falar com base em uma relato plenamente articulado não apenas de algo tal como a causa de determinada espécie… mas… que a compreensão deve ser constituída em um pensamento sistemático, plenamente articulado sobre as causas em geral”(p. 350). Platão, no entanto, de modo algum hesita, mas oferece uma teoria explícita da causa formal. Isto é suficiente para explicar o caráter sistemático da crítica de Aristóteles em A9.

Seria a sua crítica hostil? A questão é abordada por Frede, que nos convida a examiná-la não “enquanto um longo ressentimento reprimido contra a teoria das Formas de Platão”, e sim como “um longo catálogo de aporiai compartilhadas por alguns platonistas, à maneira de um desafio para discussão posterior”(p. 295). Esta visão está intimamente ligada à famosa questão do grau de fidelidade de Aristóteles à Academia de Platão à época em que ele escreveu a Metafísica A e o famoso “nós”(“nós”, os discípulos de Platão), que, como observa Primavesi, p. 412, surge “nada menos que em treze passagens do capítulo nove em nossa [de Primavesi] edição”, e contrasta fortemente com o uso da terceira pessoa (“eles”) nas passagens paralelas do Livro M. Pode-se divergir quanto às conclusões que se pode ou deve extrair desta mudança tornada famosa por Jaeger (ver Frede, p. 269ff. e Crubellier, p. 299). Mas Aristóteles alguma vez escreveu “tal como nós dissemos no Fédon “(hos en Phaidoni legomen)? Este é o texto que Primavesi publica em 991b3f. (cf. p. 414f.), na esteira das últimas reflexões de Jaeger sobre este assunto3 A leitura, que obviamente representa lectio difficilior, se não mesmo uma lectio impossibilis, não é transmitida nem em α ou β (e ambas têm legetai, “ele diz”), mas é narrada por Alexandre na p.106 do seu comentário (cf. também Asclépio, p. 90, 19). 4 Trata-se de um caso interessante não apenas para a história da transmissão do texto, mas também pela “ousadia”intrínseca da fórmula – inexiste algo comparável nas outras formas da primeira pessoa do plural no Livro A, apesar do que Alexandre afirma. Primavesi o explica: “Aristóteles não diz que ele compôs o Fédon; ele tão somente diz que algumas opiniões expressas no diálogo platônico representam a posição de um grupo de filósofos a que o próprio Aristóteles, de certa maneira, julga pertencer”(p. 414). Bem, parece-me que a frase diz algo mais do que isso; em sendo assim, o problema permanece.

A retomada crítica das opiniões dos seus predecessores é bastante comum nas obras de Aristóteles e representa um aspecto importante da sua abordagem filosófica em geral. Mas a revisão que encontramos na Metafísica A é única no gênero, especialmente porque a estrutura da apresentação e discussão das diversas doutrinas possui acentuado componente cronológico. Certamente um aspecto importante do interesse de Aristóteles na Metafísica A é a dúvida acerca do grau de precisão com que a filosofia se desenvolveu ao longo do tempo, e muitas observações cronológicas feitas de passagem atestam esta preocupação. Aristóteles interessa-se por antecedentes: Homero e Hesíodo vs. Tales, Hermótimo vs. Anaxágoras, Hesíodo e Parmênides vs. Anaxágoras e Empédocles, Anaxágoras vs. Empédocles (para a interpretação da controversa sentença em 984a11f., ver Barney, p. 93, n. 61), assim como “as palavras notoriamente obscuras de abertura do capítulo 5”(Schofield, p. 142): “Esses pensadores e, antes deles, os pitagóricos, como eram chamados, inclinaram-se às matemáticas”(Schofield sugere que Aristóteles “intenta inserir os pitagóricos tardios entre os pré-socráticos pluralistas”). E se a sentença sobre a relação cronológica entre Alcmeão e Pitágoras em 986a28-31 é, de fato, um acréscimo não pertencente ao texto original de Aristóteles, como foi sustentado por grande número de estudiosos (incluindo Primavesi, que pensa ser tal suplemento de origem neopitagórica, p. 447), um motivo para o acréscimo seria o de prosseguir nesta linha de investigação mas eu penso que Schofield na p. 150 está correto em considerá-la como sendo uma observação original de Aristóteles).

Alguém poderia perguntar por que este interesse especial de Aristóteles se manifesta precisamente no caso da “primeira filosofia”(compare as observações esboçadas acerca da história da dialética no capítulo final das Refutações sofísticas). Gostaria de sugerir que este zelo cronológico dialoga, e, na verdade, o aprofunda em nível ontogenético, por assim dizer, com a perspectiva que é indicada em A1 em nível quase-filogenético: o homem é por natureza uma criatura cognitiva. O liame entre o desenvolvimento da faculdade cognitiva humana e as opiniões e teorias acerca da causalidade, que articula as seções do Livro A (A1-2, A3-10), não é indicado por nenhum dos autores, salvo engano. Porém, Giuseppe Cambiano (“O desejo de conhecer”, sobre A1) e Broadie mostram bem o quanto os capítulos A1-A2, em que pesem as similaridades que revelam com o Protréptico e a Ética, lançam desde o início um projeto inteiramente distinto, a saber, “delinear e justificar um programa de pesquisa acerca dos princípios e primeiras causas”(Cambiano, p. 41; cf. Broadie, p. 48), embora ambos também deixem claro, nos termos de Broadie, que “A1-2 é, entre outras coisas, espécie de manifesto cultural, reivindicando o termo “filosofia”para estudos tais como os que temos na Metafísica, face à reivindicação de Isócrates para o seu tipo de atividade”(p. 50, com referência a Cambiano, p. 36 e 41).

Como foi indicado acima, o foco desse volume atém-se ao propósito e estratégia de Aristóteles ao lidar com os seus antecessores, e não ao intuito de utilizá-lo enquanto fonte para a reconstrução do pensamento dos pré-socráticos (ou mesmo de Platão). Assim procede Betegh, ao referir-se à seção dedicada aos atomistas em A4: “Aquilo em que estou interessado é… sua posição e função no contexto do nosso capítulo”(p. 137); ou Schofield, falando sobre A5:

O meu principal objetivo [não é] discutir em si mesmo o pitagorismo… a que Aristóteles está se reportando. O foco principal repousa antes nos benefícios que ele tenta auferir destes pensadores na medida em que se relacionam com a sua investigação acerca dos princípios e causas.

Mesmo assim, concentrar-se no projeto aristotélico não apenas não impede de considerá-lo uma “fonte”, mas às vezes chega mesmo a exigi-lo. O capítulo de Schofield é um bom exemplo disso, pois parte essencial dele consiste na reivindicação da interpretação aristotélica de Filolau (cuja obra é reconhecidamente a principal fonte da doutrina que Aristóteles atribui ao primeiro grupo de pitagóricos anônimos) contra aquela de Carl Huffman em seu livro clássico. Enquanto o último deseja salvar Filolau de haver concebido os números literalmente enquanto constitutivos do cosmos (imagem que se toma a Aristóteles) e pensa que Filolau apenas estabeleceu um paralelo entre teoria dos números e cosmologia (cf. p. 155), Schofield argumenta, ao invés, que a visão de mundo “fantástica”que emerge da apresentação de Aristóteles (e que é confirmada por outros relatos) deve refletir a doutrina original. Reside precisamente nesta “fantasia”, que a perspicácia filosófica de Aristóteles é capaz de reconhecer, a emergência de uma “reflexão autoconsciente sobre a explicação”(p. 164; cf. também suas observações sobre a relação entre a síntese inicial em 985b23- 986a21 e o comentário de Aristóteles em 987a15- 19, p. 163-5). E impulsiona a contribuição de Steel especialmente o pressuposto de ser Aristóteles uma fonte – neste caso, fonte para o nosso conhecimento e para o seu próprio conhecimento – da doutrina de Platão. Sua perspectiva fundamental, reagindo claramente contra a insistência de Cherniss nas distorções de Aristóteles e na caça sistemática por doutrinas não-escritas e a pitagorização de Platão, é que, além da doutrina do “Grande e Pequeno”que “parece”representar “clara evidência de uma doutrina não-escrita”(p. 194), os relatos aristotélicos de Platão em A6 ou procedem dos diálogos platônicos, ou são rastreáveis até eles (cf. p. 184, p. 188). Em todo caso, as doutrinas não-escritas existiram e A9 b lida extensamente com um dos seus aspectos mais enigmáticos: a tese que as Formas são números,  sobre a qual Crubellier apresenta exposição e exegese lúcidas (p. 303f.).

O livro inicia-se um tanto abruptamente, após o breve prefácio formal do editor, com a análise de Cambiano de A1, orientada para uma comparação entre o material presente em A1 e os desenvolvimentos paralelos dentro e fora do corpus aristotélico (para os paralelos “internos”, cf. em particular comparação esperada entre A1 e An. Post. II, 19, p. 15ff.; e para as comparações externas, cf. especialmente a 5 a. seção “Sobre o contexto intelectual de A1”, p. 26ff.). Eis por que eu recomendaria que os leitores – mesmo aqueles já familiarizados com o Livro A – comecem com a “Conclusão – e retrospecto”de Cooper, o qual se dedica explicitamente a cobrir a estrutura geral do empreendimento aristotélico. Os leitores talvez queiram então passar à primeira seção do capítulo de Barney (p. 71-76) com as suas lúcidas reflexões sobre o método histórico de Aristóteles e, em seguida, para “Uma ciência dos primeiros princípios”que preenche bem o esboço oferecido por Cooper em seu “Retrospecto”sobre o projeto geral de Aristóteles de redefinição da sophia.

O livro é extraordinariamente rico, e o leitor encontrará em cada capítulo bastante material para alimentar a reflexão acerca de um grande número de tópicos e problemas que a presente resenha não poderia sequer começar a mencionar. Eu gostaria, entretanto, de chamar a atenção para o fato de que, além da contribuição editorial extremamente importante de Primavesi, que deveria por si só ser estudada por seus próprios méritos, o leitor descobrirá nos vários ensaios muitas discussões proveitosas e compreensão dos problemas textuais; por exemplo, a lúcida exposição de Steel do intricado problema suscitado pela presença de homonuma em 987b9f. (p. 177-180); a convincente preferência de Broadie por pensar que aquilo que Aristóteles escreveu em 982b18 foi “o amante da sabedoria é de certa forma também um amante do mito”(com a tradição α) em vez de “o amante do mito é de certa forma um amante da sabedoria”, conforme a edição de Ross e Jaeger e traduzido por muitos intérpretes (cf. por exemplo Ross-Barnes na Oxford Revised Translation); ou as razões de Cambiano (p. 12, n. 25) para seguir em 980b1 a tradição β contra a correção sugerida por Primavesi (com base no comentário de Alexandre).

Identifiquei alguns poucos erros tipográficos, nenhum dos quais é verdadeiramente preocupante. Os índices (Nomes, Passagens, e o Índice Geral, incluindo importantes palavras gregas transcritas) são um auxílio complementar, fazendo deste livro uma ferramenta indispensável 5.

Notas

1  Há uma outra exceção ao esquema um capítulo/ um ensaio: S. Menn aborda o capítulo 7 e o início do 8 até 989a18; O. Primavei, o restante do capítulo 8. Em termos de tamanho, a exemplo da cisão do capítulo 9 em duas partes, pode-se aqui oferecer melhor divisão entre os dois comentadores. No entanto, não existe justificativa interna verdadeira para esta divisão. Na realidade, a primeira parte do capítulo 8 (crítica dos monistas) também é retomada no trabalho de Primavesi (p. 225-229).

2  Há um debate em andamento sobre se Aristóteles refere-se implicitamente a Anaximandro em 7.988a29-32; cf. Menn, p. 207, com n. 14.

3 JAEGER, W. “Nós dissemos no Fédon ”, em S. Lieberman, Sh. Spiegel, L. Strauss, A. Hyman (edd.), Harry Austryn Wolfson Jubilee Volume, vol. I. Jerusalem,American Academy for Jewish Research, p. 407-21.

4  Na nota de rodapé 93, p. 414, Primavesi corrige a opinião dada por Jaeger, na p. 408 do seu artigo (e previamente pelo aparato de Michael Hayduk em sua edição do comentário de Alexandre), de que os dois manuscritos de Aristóteles também se leem como legomen.

5  Frente à importância da obra, a revista Archai, com autorização do autor e da revista, publica excepcionalmente versão portuguesa desta resenha, publicada originalmente na Notre Dame Philosophical Reviews – An Electronic Journal, no ano de 2013. Tradutor do inglês: Gilmário Guerreiro da Costa.

André Laks – Université Paris-Sorbonne, Paris, França – Universidad Panamericana, México; D.F. laks.andre@gmail.com

Acessar publicação original

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.