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Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental | Florence Dupont

Aristóteles | Francesco Hayez, 1808

Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, traduzido no Brasil em 2017, pode provocar em seus leitores impressões muito distintas. Não se segue, neste comentário crítico, a sequência de argumentos e capítulos da obra em questão40, apenas uma análise mais particular de determinadas perspectivas ou, até mesmo, de posicionamentos que parecem estar na base da proposta do livro.

Um dos esforços mais longamente empreendidos por Dupont em Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental é o de revelar o quanto a Poética – principal alvo do estudo – não dá a atenção necessária a uma série de práticas que constituíam o acontecimento teatral na Atenas clássica. Como afirmado, desde a Introdução, “Aristóteles isolou o texto de teatro para fazer dele um objeto de análise” (p. 10), produzindo uma reflexão autônoma sobre “um texto objetivável” (p. 22). Esse isolamento faz com que a Poética ignore o papel da música na tragédia antiga; do coro, transformado “em um personagem como outro qualquer” (p. 17); do destinatário dos espetáculos, celebrante de um grande evento, o cidadão ateniense que, aliás, Aristóteles não era, como lembra Dupont. Criou-se, assim, um estatuto específico para os personagens, dentre outros efeitos decorrentes da análise centrada no texto trágico. Florence Dupont é enfática ao afirmar que “nunca se insistirá o bastante na distância que separa a Poética – que é uma teoria do texto trágico – da realidade histórica do teatro em Atenas” (p. 20). O rigor com que lê o texto aristotélico – em grego, como faz questão de ressaltar – e a erudição apresentada ao tratar da experiência teatral antiga, em seu “contexto litúrgico e epidítico” (p. 21), evidenciam o quanto de anacronismo há nas nossas leituras contemporâneas das tragédias gregas, centradas nas perspectivas do filósofo.

Séculos depois da derrocada do mundo antigo, o encontro da Poética com o que Dupont chama de “a ‘cultura liberal’ do Ocidente moderno” (p. 53) faz com que a fábula seja colocada “no cerne da reflexão teatral moderna” (p. 16), orientando, a partir da autoridade do filósofo, uma série de reformulações no mundo do teatro. A autora defende, assim, que as principais noções aristotélicas – especialmente mythos, mimesis e katharsis – são condições de possibilidade para diferentes eventos determinantes da história do teatro moderno e contemporâneo, como a invenção do drama (a partir de um deslocamento de sentido dessas categorias) e da encenação, entendida como um modo de ler a dramaturgia, tornando o público de teatro uma espécie de leitor. Mais do que isso, ela afirma que “a história do teatro europeu moderno tem sido uma sucessão de revoluções aristotélicas, conduzidas, por vezes, contra o próprio Aristóteles” (p. 56). Afinal, como fica estampado desde o título de sua introdução, “não é assim tão fácil ser não aristotélico”. A enorme difusão de um modelo de compreensão do teatro produzido por Aristóteles teria feito, então, com que ele se impusesse, até mesmo entre os artistas que o renegassem, sendo Brecht o grande exemplo avançado no livro.

No capítulo 3, principalmente, são também estudados os casos de manifestações teatrais que teriam conseguido escapar do racionalismo aristotélico e de sua excessiva valorização do texto e da fábula. A comédia romana seria uma dessas expressões cênicas em que “o texto e a história eram somente materiais a serviço do espetáculo lúdico” (p. 8). Se, tomadas a partir das categorias aristotélicas, “as comédias romanas parecem mesmo muito ruins” (p. 8), funcionam mal quando vistas a partir da lógica da centralidade da fábula. O texto, nesse caso, apenas ganha sentido num contexto de enunciação muito particular, atuando como uma dentre tantas outras engrenagens que coloca em relação os artistas e o público. Molière é outro caso analisado, uma vez que a música e a dança, em seus espetáculos, possuíam um papel dificilmente imaginado por seus leitores contemporâneos.

Florence Dupont busca demonstrar, enfim, como a Poética produziu um tipo de hegemonia e acabou por gerar uma leitura anacrônica da tragédia grega, impondo-se com força na prática teatral moderna e contemporânea, sempre de forma equivocada. A força dessas hipóteses confirma uma atitude que atravessa a reflexão: a denúncia contra o que é tido como “arapuca aristotélica” (p. 104). Entra em jogo um tipo de juízo de valor: Aristóteles surge como um produtor de “noções parasitas” (p. 207), de “postulados estéticos que envenenam o teatro ocidental” (p. 7) e que teriam levado a uma “ditadura do mythos” (p. 106). Dupont passa a afirmar, hiperbolicamente, que “o aristotelismo colonizou o discurso sobre o teatro” (p. 128): eis aí um “desastre hiperaristotélico” (p. 210).

A Arte poética chega a ser tomada, no livro, como “uma máquina de guerra dirigida contra a instituição teatral” (p. 23). Uma vez identificada a batalha, Dupont instaura sua própria maquinaria belicosa, assumindo o objetivo de “descolonizar os palcos” (p. 10), ou seja, de “desconstruir a Poética de Aristóteles e seus conceitos, e sair assim do aristotelismo dominante” (p. 7). É desse modo que um projeto de “libertação dos discursos sobre o teatro” (p. 207) encontra os inimigos a serem denunciados e os modos de se fazer teatro a serem superados. Já nas páginas finais do livro, num momento bastante esclarecedor do que está em jogo nessa disputa, Dupont opõe um “teatro vivo” a um “teatro literário”, o que reserva a seu adversário um lugar de desvantagem na batalha conceitual travada: fundado na Poética, o teatro que se opõe ao “vivo” seria “literário, elitista, profano, austero e solitário, sem corpo nem música: um teatro de leitores” (p. 53).

Nesses termos, o debate avança a partir de premissas visivelmente frágeis, com maior evidência no capítulo 2, em que Dupont busca entender como o aristotelismo foi se impondo à cena teatral desde o século XVII. Uma dessas premissas seria a de que o teatro dos dias de hoje é recebido com tédio pelo público, pela naturalização da ideia de uma suposta atitude subjetiva do espectador, constatação que atravessa toda a construção do argumento do livro, segundo o mesmo pressuposto de uma hegemonia da perspectiva aristotélica. Da mesma forma, a invenção da encenação, no século XIX, teria igualmente “instalado definitivamente o aristotelismo com o qual ela tem ligação intrínseca, já que ela implica num texto primeiro” (p. 101). Se a relação entre princípios aristotélicos e a própria ideia de encenação mostra-se proveitosa no debate promovido por Dupont, a constatação de que qualquer encenação pressupõe um texto prévio pode ser facilmente questionada se tomamos a variedade de expressões e possibilidades criadas por encenadores no último século.

Ainda no capítulo 2, a discussão sobre a obra de Constantin Stanislavski como veículo de fortalecimento do aristotelismo no teatro é, à primeira vista, bastante convincente. Porém, uma leitura mais atenta de sua obra revela também uma proposta de modalidades de trabalho teatral que se afastam decisivamente da Poética. A própria noção de “ação”, tão determinante para Stanislavski, por mais que herdeira da tradição aristotélica, é apropriada por ele de um modo muito particular, tornando-se “ação física” e dialogando com um tipo de acontecimento que só se dá no chão do palco, no jogo dos atores, numa relação entre corpos, que esteve na base do próprio trabalho do Teatro de Arte de Moscou. Não por acaso, como é amplamente sabido, Stanislavski se notabilizaria como diretor dos textos de Anton Tchekhov, que assumiram sentidos muito particulares ao serem articulados, justamente, na lógica das ações físicas. Ao apresentar como meta para o futuro do teatro a saída “do aristotelismo dando aos textos de teatro uma necessidade que lhes seja exterior” (p. 211), Dupont parece propor algo notoriamente corriqueiro nos trabalhos conjuntos de Tchekhov e Stanislavski. Aliás, o exemplo mais contundente, nesse sentido, seria o do diretor polonês Jerzy Grotowski – ausente do livro de Dupont – que, a partir das preceptivas stanislavskianas, criou toda uma proposta de evento teatral seguramente estranha às proposições da Poética. Ou seja, para afirmar que Stanislavski “submete a cena totalmente ao texto” (p. 97), Dupont tem de abstrair toda uma série de modalidades de trabalho propostas e levadas a cabo pelo diretor russo, catalogando seu teatro de modo ligeiro e impreciso.

O projeto declarado de denúncia de uma força imperialista a obriga, portanto, a deixar de lado os usos mais particulares que foram feitos das categorias aristotélicas, que inevitavelmente transformam a produção diferencial de modelos dramatúrgicos, determinantes nos estudos em história do teatro. Afinal, como poderia ter emergido de um teatro stanislavskiano totalmente submisso ao texto uma proposta teatral centrada na máxima “teatro é encontro”?41 Como teria sido possível conceber, nesses termos, um encontro entre organismos, encontro direto e vivo, muitas vezes sem qualquer intermediação do texto dramatúrgico? As sutilezas, por mais que visíveis, da dinâmica de formulação, de circulação e de uso dos modelos teatrais contemporâneos parecem não ter lugar no livro de Florence Dupont, cedendo espaço a um projeto maior, mais estritamente historiográfico, assim definido em seus próprios termos: “localizar os momentos de ruptura em que o teatro foi explicitamente reformado e em que essas reformas foram feitas, instalando-se, em fragmentos, a ideologia da Poética” (p. 85). O entendimento prévio de que a história do teatro ocidental pode ser tomada como a invasão e a deturpação da cena por uma ideologia estranha à prática teatral gera, assim, uma série de equívocos.

Em nome do combate contra a dominação ideológica aristotélica, Florence Dupont autoriza-se a ocupar o lugar de quem diz o que o teatro é, com o que se relaciona e pode se relacionar. A partir dessa posição, decreta, nas últimas linhas do livro: “O teatro não tem nada a ver com a literatura” (p. 212); como decretara antes: a “dramaturgia desteatralizou o teatro” (p. 209). Pelo visto, a máquina de guerra de Florence Dupont, ao ganhar em intensidade, na análise, não permite que se leve em conta o fato de que aquilo que o teatro é ou pode vir a ser está em constante disputa. Afinal de contas, é de se imaginar que a difusão das categorias aristotélicas se dê em meio a processos culturais em marcha, numa dada cultura, sempre em transformação. Essa discussão, entretanto, não ganha corpo no livro. O filósofo Paul Ricoeur, que poderia trazer elementos determinantes para o debate acerca das possibilidades de um teatro em que “o romanesco e o narrativo invadem o palco” (p. 68), é tomado como um “teórico do imperialismo narrativo da modernidade” (p. 124), uma espécie de ideólogo de um grande projeto que se volta contra o verdadeiro teatro. Nega-se, assim, qualquer prática teatral orientada ou afetada por lógicas textuais, quaisquer que sejam. O pressuposto radical de que “não existe nenhuma praxis teatral em Aristóteles” (p. 33) expande-se, em suma, para qualquer cena que se constitua a partir de textos, anulando a possibilidade do questionamento: o palco não seria sempre o locus gerador de algum tipo de praxis, em particular na relação entre texto e performance?

Ao final da leitura, a proposta, que se definia, inicialmente, como um “projeto tão radical” (p. 10), mostra-se frágil. A análise da tensão entre a Poética e as práticas teatrais gregas, necessariamente erudita, acaba por se colocar a serviço da defesa prescritiva do que deve ser o teatro. A prescrição que recai sobre o teatro contemporâneo, um teatro que, segundo Dupont, se tornou elitista, entregue aos intelectuais, é a seguinte: “Um teatro verdadeiramente pós-aristotélico não pode ser outra coisa que um teatro popular, em que o acontecimento espetacular seria a manifestação emocional de uma cultura das palavras e das imagens, da música e do palco, das vozes e dos corpos, comum aqui e agora aos autores, encenadores, atores e espectadores” (p. 57). O seu projeto ganha, assim, contornos imprecisos, apoiando-se em oposições facilitadoras (teatro popular e teatro intelectual), na defesa de um “aqui e agora” supostamente comum aos presentes. É possível que a imprecisão seja o preço da atitude flagrantemente belicosa adotada e que arrasta a reflexão para um dos lados de um conflito forjado, que exige escolhas: é assim que se autorizam ou se desautorizam tradições, movimentos e artistas particulares (Nietzsche e Hegel são difusores de equívocos aristotélicos; o diretor Olivier Py e outros artistas presentes no festival de Avignon defendem uma visão de teatro restrita e textocêntrica; Bob Wilson negou o aristotelismo sem criar uma nova tradição; Tadeusz Kantor, por sua vez, conseguira ser verdadeiramente não aristotélico etc.). O combate em tom prescritivo é, sem dúvida, estranho à atitude intelectual esperada, patente no título escolhido para a conclusão: “Algumas maneiras de sair do aristotelismo contemporâneo e não nos entediarmos mais no teatro” (p. 207).

Evidentemente, não se recorre nestas notas críticas à defesa ingênua da “objetividade”, mas coloca-se em discussão uma medida que, nos dias de hoje, merece ser considerada. Se parece óbvio que todo projeto intelectual e historiográfico exige uma tomada de posição, também é importante chamar a atenção para os efeitos da denúncia, em particular contra processos estruturais de longa duração, que acabam gerando novos mitos de origem e de pureza. No nosso tempo, essas mitologias já podem muito bem ser superadas.

Notas

40 Uma resenha do livro, apresentando a sequência de argumentos e comentando-a, já foi produzida por Edelcio Mostaço e publicada na revista Urdimento (cf. MOSTAÇO, Edelcio. “Dentes afiados de Vampiro”. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 36, p. 532-538, 2019).

41 GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1987, p. 47.


Resenhista

Henrique Buarque de Gusmão – Professor do Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: henriquebgusmao@gmail.com


Referências desta Resenha

DUPONT, Florence. Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental. Trad. Joseane Prezotto, Marcelo Bourscheid, Rodrigo Tadeu Gonçalves, Roosevelt Rocha e Sérgio Maciel. Desterro: Cultura e barbárie, 2017. Resenha de: GUSMÃO, Henrique Buarque. A máquina de guerra de Florence Dupont: Notas críticas sobre o projeto de um “teatro verdadeiramente pós-aristotélico”. História, histórias. Brasília, v.9, n.17, p. 234- 240, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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