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Arautos do progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na época do Império | Alisson Eugênio

O século XIX no Brasil é marcado, dentre outros fatores, por ser o período em que finalmente a saúde é colocada na agenda dos interesses públicos. Nesse contexto, começa a se consolidar uma literatura médica progressivamente distanciada da visão hipocrática da doença como fenômeno individual, estabelecendo-se a ideia de que as doenças são fatos sociais e dando, por sua vez, um tom cada vez mais normativo à medicina. Trata-se de uma ambiência de ampla utilização do conhecimento científico por parte do Estado em que se destaca no presente trabalho a ciência médica. Desta forma, a resenha que se segue tem como objetivo apresentar as principais discussões e temáticas da História da Medicina no Brasil Imperial, tomando como base a obra Arautos do Progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na época do Império, de Alisson Eugênio.

Em Arautos do Progresso, Alisson Eugênio realiza um cuidadoso exame dos principais fatores que permeavam o cotidiano do Brasil oitocentista no que diz respeito à saúde da população. O autor expõe um completo estudo dos esforços da elite médica do período em tentar orientar as legislações e fiscalizações do governo, bem como instruir os povos sobre as principais doenças e insalubridades que se manifestavam nas vastidões territoriais do país.

O livro é uma junção revisada da tese de doutorado e do relatório de pós-doutorado do autor, concluídos em 2008 e 2010 respectivamente. Assim, primeiramente, é preciso ressalvar que o estudo da História da Medicina está em franco crescimento. Logo, muitas das discussões abordadas por Eugênio avançaram vertiginosamente nos anos que se levaram para a publicação editorial definitiva do trabalho. Dessa forma, sob certos aspectos, torna-se um estudo datado, mas, de maneira nenhuma isso anula a importância e o caráter inovador das principais proposições do autor em Arautos do Progresso, sobretudo no que diz respeito ao ineditismo de maior parte do corpus documental e da forma de interpelação das fontes.

O autor faz uma densa análise das obras medicinais e filosóficas do século XVII ao século XIX, sendo maioria delas da autoria de médicos e editados e publicados no Brasil oitocentista. Seu intuito é levantar as principais ambições da elite médica do Brasil do século XIX e, consequentemente, demonstrar como o pensamento medicinal brasileiro se organizou desde os fins do período colonial até a república proclamada. Nesse sentido, os recortes geográficos e temporais da pesquisa foram dimensionados a partir dos anseios, propostas e medidas que se encontravam nas fontes.

À vista disso, estão presentes na obra mais do que o discurso acadêmico medicinal acerca da saúde da população. Atenta-se, sobretudo, ao posicionamento da elite médica quanto aos assuntos do contexto do Brasil Imperial que estiveram na agenda de discussão de vários outros seguimentos sociais. Cabe destacar como exemplo a reorientação administrativa do Brasil independente, a escravidão antes, durante e posterior ao período de proibição do tráfico transatlântico e os problemas acarretados com o crescimento da população urbana no século XIX.

O autor destaca que a motriz principal da pesquisa é justamente a escassez de estudos sobre a História da Medicina no período imperial, principalmente no que tange os trabalhos que não vão pela senda de discussão da suposta ambivalência entre o saber erudito e o saber popular. Realça-se que uma das principais percepções que se tem durante a leitura de Arautos do Progresso é que se faz necessário redimensionar as fronteiras das percepções sobre o que era costumeiro e o que era científico nos idos dos oitocentos no que diz respeito às práticas de cura e às concepções de saúde e doença.

Para tanto, Eugênio realça a maneira como a tendência historiográfica do início dos anos 2000 – cujo seu trabalho é tributário – se organizou. Autores imbuídos em desvelar acerca das diversas artes de curar no Brasil oitocentista, muito revelaram sobre a pluralidade dos saberes, ofícios e técnicas de cura populares que conflitavam e interagiam com a medicina oficializada450. Assim, mesmo existindo um esforço da elite médica para que se desautorizassem os terapeutas que não compartilhavam dos mesmos ideais cientificistas e sanitaristas da medicina erudita no período, não é tão simples de se afirmar que os saberes eram completamente opostos e que não se homogeneizavam entre si. A revelia, nas vastidões do Brasil, onde a assistência oficial e a fiscalização eram escassas, conformavam-se diversas hibridações culturais entre os conhecimentos europeus, africanos e indígenas no que diz respeito às práticas de cura, e, muitas dessas mestiçagens medicinais451 estão bem demarcadas em alguns dos escritos explorados por Eugênio

Contudo, cabe destacar nesse sentido, que o processo de racionalização da salubridade nos espaços e interesses públicos se deu em par da hegemonização dos médicos nas práticas oficializadas de cura452. Dessa maneira, se faz importante entender que os livros medicinais analisados por Eugênio são registros factuais das condições de saúde da época, porém, as proposições dos autores para solucionar os problemas da saúde pública devem ser examinadas com o devido cuidado no que diz respeito à imparcialidade do discurso. Nestes projetos podem estar manifestados não apenas problemas e suas propostas de superação, como também interesses de classes em obtenção de privilégios sociais.

Os primeiros esforços de Eugênio são de dar um panorama de como a história da historiografia da medicina no Brasil Imperial se organizou até o início dos anos 2000, destacando desde estudos consagrados sobre o tema, até os trabalhos de autores contemporâneos ao próprio Eugênio. Para além da apresentação dos debates e dos autores, o autor faz um dedicado diagnóstico acerca das quatro principais matrizes teóricas que basearam os estudos desde a segunda metade do século XX.

Primeiramente, realça-se a linhagem foucaultiana, constituída de estudos que defendem que o saber médico foi se impondo através de instituições de regulação das práticas ao mesmo passo que ia sendo amplamente “utilizado pelo Estado como meio de controle social, por meio através de políticas sanitárias.” 453. A segunda matriz destacada é a marxista, a qual aponta que as sobreditas instituições médicas eram aparelhos ideológicos da classe dominante que se consolidaram no advento da construção da ordem burguesa no Brasil. A terceira trilha é formada por autores debruçados em discutir a História da Medicina no Brasil Imperial sob a ótica da tentativa da consolidação do cientificismo no XIX, alegando que as ações dos médicos se calcavam na tentativa de emparelhamento científico com a Europa. E, em tempo, salienta-se o crescente interesse de pesquisadores que tendem a se concentrar “no estudo de variadas moléstias, cujas análises têm sido, em sua maioria, apoiadas no conceito de representação ou no de imaginário social retirados do quadro teórico da História Cultural”. 454

A partir do elucidativo balanço historiográfico, Eugênio dá prosseguimento em sua explanação dividindo o trabalho em sete capítulos. O primeiro concentra-se em discutir os reflexos do Iluminismo no pensamento médico do Brasil no fim do século XVIII e início do século XIX. No segundo e no terceiro capítulos, o autor expõe as principais ideias e ações da elite médica quanto às medidas de higiene dos espaços públicos e à instrução da população quanto ao asseio pessoal de suas habitações e corpos. No quarto e quinto capítulos são discutidas as questões das más condições de saúde dos escravos sob os prismas dos impactos da Ilustração e do fim do tráfico transatlântico. Na sexta divisão, explana-se sobre a preocupação do Estado quanto ao charlatanismo e a má qualidade da prestação de serviços médicos. E, por último, no sétimo capítulo, é feito um apanhado das principais dificuldades que a sobredita elite médica sofreu nas tentativas de difusão de seu discurso.

Ressaltando-se que são vários os autores, subtemáticas das ciências médicas, localidades e momentos do século XIX, um ponto primordial a ser destacado é a forma como Eugênio faz o exercício de integração dos textos médicos. Apesar das diversidades individuais, locais e temporais – o que dificulta um estudo coeso da medicina no Brasil Imperial –, o autor possibilitou a compreensão de que havia um ponto principal de interesse em comum por parte desses inúmeros indivíduos: a ideia de progresso.

Apesar da dita multiplicidade de sujeitos e propostas, a elite médica se identificava homogeneamente a partir de interesses corporativos de aproximação da medicina ao Estado, tentando fazer com que os governos e a população assimilassem a ideia de progresso cujo eles eram os principais arautos. Se no século XIX o progresso era concebido como motor da trajetória dos povos, Eugênio elucida que tal fato muito corroborou a consolidação dos ideais científicos que passaram por intensas mutações nos dois séculos antecedentes. Passou-se a entender civilização como a transição do estado de barbárie para uma forma superior de organização social.

E, sob o argumento de que a saúde era a base principal da caminhada dos povos ao futuro melhor, os médicos inseriram suas propostas na agenda dos interesses públicos, e assim, ampliaram a sua legitimidade e rede de atuação profissional expandindo, consequentemente, o campo de saber medicinal no Brasil. Na transição do Império para a República, o sanitarismo como conceito manifestou-se, sobretudo, no amadurecimento da percepção social de que as doenças eram problemas mais coletivos do que individuais, e que as formas de controle da saúde pública necessitavam de máxima sintonia entre o saber médico e a ação governamental.

Notas

450. FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar e seus agentes no século XIX na Província de Minas Gerais. 205f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, São Paulo, 1998.

451. ALMEIDA, Carla Berenice Starling de. Medicina mestiça: saberes e práticas curativas nas Minas setecentistas. São Paulo: Annablume, 2010.

452. PIMENTA, Tânia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-Mor no Brasil do começo do século XIX. 159 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em História, Campinas, 1997, p.13-6.

453. EUGÊNIO, Alisson. Arautos do progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na época do Império. Bauru: Edusc, 2012, p.20.

454. ______. Arautos do progresso, p.27.


Resenhista

Lucas Samuel Quadros – Mestrando em História Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: lucassquadros@yahoo.com.br


Referências desta resenha

EUGÊNIO, Alisson. Arautos do progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na época do Império. Bauru: Edusc, 2012. Resenha de: QUADROS, Lucas Samuel. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.1, p.198-201, jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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