O livro busca trazer ao palco cultural as mulheres que, por muito tempo, foram injustiçadas e excluídas de uma sociedade da qual sempre fizeram parte. A obra divide-se em cinco partes. Na primeira parte, o autor mostra como se dá ocupação dos espaços nos seringais, que eram unidade produtoras de extrativismo vegetal assentado no látex da Hevea brasilienses, fazendo inferências sobre a criação destes latifúndios durante aquilo que se caracterizou como a primeira fase de exploração das terras acreanas pelos brasileiros. Na segunda fase da obra, vemos a saga das mulheres seringueiras do Acre, como participante do processo de constituição do modo de vida no seringal, atendendo ao chamado de Scheibe (1998), que afirma:
Colocar as mulheres no centro da análise de um trabalho sobre o Acre tem ainda um sentido militante tanto na historiografia da região, que costuma ignorar quase por completo a experiência social das mulheres, como do ponto de vista da sociedade atual, cuja a postura violenta e opressora com as mulheres tem sido denunciada com veemência por diversas entidades. (SOUZA, 2010 apud SCHEIBE, 1998.)
Ainda na fase em comento da obra, o autor traz a figura feminina dos tempos áureos da exploração da borracha, assentando seu foco nas nordestinas, chamadas de “as invisíveis”, soldadas da borracha3 que migraram para o solo acreano na Segunda Guerra Mundial. Apesar da vinda massiva de homens para a Amazônia, mulheres também fizeram parte desta leva de trabalhadores do Látex na região. Também este mesmo capítulo dialoga sobre as mulheres seringueiras nas reservas extrativista – territórios de conservação, de uso sustentável utilizada por populações extrativistas tradicionais cuja subsistência baseia-se no extrativismo, agricultura de subsistência e criação de animais de pequeno porte e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura destas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade e nas beiras dos rios – e fechando esta parte–, e somos convidados a entrar no mundo das parteiras e da medicina popular tradicional nos seringais.
3 “Soldados da Borracha” foram brasileiros que atuaram na Segunda Guerra Mundial. Eles foram recrutados pelo governo brasileiro, que, aproveitando-se dos problemas enfrentados pelos nordestinos, recrutaram milhares para irem para região amazônica trabalhar na extração do látex, que seria exportado para os Estados Unidos para dar apoio ao governo e aos aliados da guerra”.
Na terceira parte, Souza nos coloca diante de uma face cruel do seringal: o roubo de mulheres por homens dos seringais e aventureiros, apresentando incesto e violências praticadas de várias formas contra elas. Enquanto na quarta parte do texto, o autor traz a lutas das mulheres em defesa de sua terra através dos sindicatos e empates, com ênfase em Valdiza – integrante e fundadora do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Por fim, na última parte da obra, o autor traz a luz da história, a contribuição e resistências das mulheres agricultoras, colonas e indígenas.
Souza, no início de sua obra, pautado em uma definição dada pelo Instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos das Culturas Amazônicas ENVIRA, explica o significado de aquirianas:
O termo aquirianas é uma homenagem às mulheres acreanas e ao Rio Acre, denominado antes Aquiri. Se a historiografia oficial se deu ao luxo de chamar o grande rio de Amazonas, em homenagem às mulheres indígenas (adjetivadas de “as amazonas”) que lutavam ao lado de seus homens contra os conquistadores europeus que, a partir do século 15, invadiram a Amazônia, também podemos chamar nossas mulheres da floresta de aquirianas como uma justa homenagem. (SOUZA, 2010, p.03).
Nos recorda o autor que falar de seringal significa adentrar em um universo amplo, um modo de vida atemporal que sobrevive ainda, mesmo com o avanço das cidades e da tecnologia. Apesar da borracha – para aqueles que ainda extraem – não ser o único meio de sobrevivência dos seringueiros, pois muitos recorrem a outros meios para extrair da natureza o seu sustento e manter o mercado consumidor, continuam morando em suas “colocações de seringa”, bem deixado por seus avós e pais. Nos seringais, homens e mulheres dividem o mesmo espaço na coletividade, assumindo, tanto os afazeres de casa quanto o do plantio. Segundo Souza:
Os modos de vidas criados e recriados nos seringais não permitiriam a segregação de homens e mulheres em determinados espaços (na cidade são os espaços do público e do privado). Todos os espaços foram atingidos pelas experiências sociais de homens e de mulheres. Daí, numa colocação de seringa, a presença da mulher é materializada em todo e qualquer espaço, porque, em uma colocação de seringa, a vida acontece.” (SOUZA, 2010, p.25).
As mulheres se “moldaram” enquanto mulheres com as práticas cotidianas, constituíram múltiplas formas de resistência, sabendo gerir sua casa e ao mesmo tempo supriu as fraquezas mais invisíveis do homem seringueiro, graças a sua astucia e sensibilidade. Mesmo não estando na linha de frente da Revolução Acriana – não diretamente –, elas souberam ter pulso forte, contribuíram muito para manter os homens firmes contra os bolivianos, como descreve o autor,
As mulheres não estavam na linha de frente dos combates, mas estavam em suas colocações de seringa, sem seus pais, sem seus maridos, sem seus filhos, substituindo os homens nos trabalhos de uma colocação de seringa. Não deixaram parar a produção. Elas passaram a produzir mais borracha, pois, agora, além do trabalho normal no corte de seringa, tinham de realizar o trabalho dos homens que estavam na guerra. Boa parte da alimentação consumida pelos soldados acreanos foi produzido pelas mulheres nos seringais.” (SOUZA, 2010, p. 29).
A relação direta com a natureza, fez com que as mulheres seringueiras adquirissem o conhecimento das ervas, desenvolvendo assim uma medicina popular, uma forma de amparar entes contra as doenças, já que assistência médica era algo inexiste. O autor traz o relato de Maria Almeida de Melo, seringueira – quando entrevistada em 1993, era residente do seringal Porongaba, região acreana de Brasiléia –, praticante da medicina popular, realizava partos e remédios “caseiros”, ganhando grande prestígio em sua localidade. O autor expressa:
O trabalho de medicina de Maria Almeida de Melo fez com que ela se tornasse conhecedora de uma série de “remédios” caseiros, utilizados para curar várias doenças comuns nos seringais. No parto, agia com o que estava ao seu alcance para garantir uma “operação” com um mínimo de higiene, garantindo o nascimento da criança e a sobrevivência da mãe: lavava as mãos com álcool ou com cachaça, desinfetava a tesoura a ser utilizada, fazia uso de um cordão limpo para amarrar o umbigo do recém-nascido e, em seguida, passava levemente azeite doce na região para não ser infeccionada. Quando a gestante demorava a parir, mesmo sentindo muitas dores, Maria preparava seu chá. (SOUZA, 2010, p.119).
A vinda da mulher para os seringais acreanos se deu a partir de diferentes motivações: ao acompanharem os seus parentes, algumas vieram sozinhas trazidas por comerciantes de borracha ou à procura de seus esposos que estavam no Acre. Já nos seringais, mostravam ser tão capazes quanto os homens para o corte da seringa e aquelas que sabiam ler, foram solidárias, alfabetizando os que jamais entraram na escola. As aquirianas foram para a linha de frente junto com seus maridos enfrentar as motosserras dos fazendeiros e armas dos policiais no “empates” (movimentos constituídos a partir dos “adjutórios”, em que diferentes seringueiros, caboclos e posseiros se reuniam, a fim de dar auxílio mútuo para afazeres nas áreas de mata, mas que, nos anos de 1970, passou a congregar pessoas, a fim de obstar a derrubada da floresta pelos novos donos das terras, em função da desarticulação do extrativismo vegetal subsidiado pelo governo), enfrentando a “corja de subordinados” durante aquela década que tentava expulsá-los das áreas territoriais em que tinham posse, para que ali os grandes fazendeiros transformassem os seringais em pastos para o gado.
O “costume” de roubo de mulheres é descrito por Souza (2010) como uma prática cultural, recriada nos seringais amazônicos, hábito difundido pelos migrantes nordestinos. Podendo ocorrer de duas formas: com o consentimento da mulher, que se apaixona por um rapaz e não tem o consentimento da família, vendo assim, a “fuga” como única alternativa de viver o seu amor proibido. Ocorre também o roubo de mulheres sem o seu consentimento – circunstâncias em que muitas eram levadas pelos patrões, donos dos seringais para servirem de objetos sexuais. A respeito do “ladrão de mulheres”, o autor descreve,
Em muitos casos, o sedutor se comporta para ganhar a confiança da família. Sob seu controle, todos os horários dos moradores da casa. Quando dormem, chega a grande oportunidade de roubar mulheres. Em muitos casos, relações de intimidades familiares são constituídas com o sedutor namorado da menina. (SOUZA. 2010, p.134).
No que se refere aos incestos praticados nos seringais, Souza diz “os agentes sedutores são sempre os homens que agem na certeza da impunidade dos seringais, longe da polícia e da Justiça”. A partir dos relatos descritos no livro, percebe-se a mulher sempre categorizada como a “culpada” pelo incesto, sendo ela a desonra da família, demonstrando o caráter machista e patriarcal dos núcleos familiares e sociais nestes espaços.
São vários os casos em que o homem utiliza de sua força, status patriarcal para abusar sexualmente das moças e rapazes da sua família. A impunidades para esses crimes se dava pelo não alcance do Poder Público aos eventos passados dentro dos seringais ou pela omissão da família por medo de sofrerem na mão do abusador.
Em a mulheres agricultoras e indígenas, a figura feminina no seringal, muitas das vezes com seu marido, desempenhava a função de extrair a borracha, além de realizar os trabalhos agrícolas. Hoje, devido à crise do mercado da borracha, elas desempenham com mais fervor o plantio de alimentos e criação de animais para a sua sobrevivência. Acresce o autor que desde o Acre território, as mulheres já desempenhavam o trabalho de cultivo nas colônias agrícolas, desenvolvida durante toda a formação dos seringais, como forma dos seringueiros equilibrarem a sua produção de bem alimentícios, a fim de não dependerem fortemente dos barracões dos patrões do seringal, com tal atitude, muitos foram perseguidos, vindo a ter fim – aos olhos da legalidade – a partir da década de 1940, quando o governo brasileiro impôs aos seringalistas que assinassem um “Contrato de Extração do Látex” com os seringueiros, permitindo o plantio do roçado ( SOUZA, 2010, p. 197-198). Somente com a chegada de migrantes “paulistas” (expressão que não deve ser confundida com o adjetivo pátrio, mas, enquanto designação criada no imaginário dos acreanos para identificar os migrantes que chegaram em busca de terras ao Acre durante o Regime Militar), a partir da década de 1970 foi que teve início a forma de categoria de mulheres exclusivamente agricultoras.
Ao falar da mulher indígena, o autor destaca o pioneirismo de trabalhadoras da floresta, onde mesmo antes da chegada dos seringueiros, essas mulheres já realizavam a agricultura, ensinavam suas tradições aos mais jovens. Com a chegada dos não índios – tanto do lado brasileiro, quanto do lado peruano (caucheiros) – em busca das árvores seringueiras, o cotidiano dos indígenas muda completamente. Nesse processo pela expansão de terras para a coleta da borracha, serão organizadas várias “correrias”, expedições sistematizadas objetivando a destruição dos nativos. Muitos indígenas serão mortos, populações inteiras dizimadas buscando proteger o seu território dos invasores. Nos diz o autor que as mulheres e crianças sobreviventes eram tidos como prêmios, obrigados a conviver com o “homem branco”4, seringueiros. As indígenas que conseguiam fugir de seus algozes procuravam refúgio na floresta. Aquelas mal-sucedidas nesse intento ou amedrontadas em demasia para realizar fuga, eram incorporadas ao corte de seringa, denominados “caboclas seringueiras”. [1]
Nota
1 Este trabalho é uma homenagem póstuma ao meu querido amigo professor Carlos Alberto Alves de Souza, no qual tenho grande admiração.
Jardel Silva França – Mestrando em Letras: Linguagem e Identidade (Ufac). Especialista em Educação Especial Inclusiva pela Faculdade de Educação Superior Euclides da Cunha (Inec). Licenciado em História pela Universidade Federal do Acre – Ufac (2019). Aperfeiçoado Uniafro em Políticas de Promoção de Igualdade Racial na Escola (2016). Membro do corpo editorial da Revista Em Favor de Igualdade Racial e Revista Das Amazônias / Revista Discente de História da Ufac. Filiado à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABPN). Membro do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Universidade Federal do Acre. E-mail: jardelfranca2509@gmail.com
SOUZA, Carlos Alberto Alves de. Aquirianas: mulheres da floresta na história do Acre. Rio Branco: Instituto de Pesquisa, Ensino e de Estudos das Culturas Amazônicas, 2010. Resenha de: FRANÇA, Jardel Silva. Aquiranas: o protagonismo feminino na floresta acriana. Das Amazônias. Rio Branco, v.4, n.1, p.210-214, 2021. Acessar publicação original [IF].
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