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Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução | Eudes Fernando Leite

A publicação do livro Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução pela Editora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) facilita o acesso a um importante estudo sobre a história recente de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul). Antes só era possível ter acesso às páginas desta pesquisa por meio da dissertação de mestrado apresentada pelo autor em 1994, junto ao Programa de Pós Graduação em História da Unesp, Campus de Assis-SP, ou então através de artigos publicados em periódicos e em anais de eventos acadêmicos.

O autor atualmente é professor do curso de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e tem se debruçado em pesquisas e orientações relacionadas a assuntos inerentes à história regional. É interessante notar que o texto ora resenhado traz características que marcaram as contribuições posteriores deste historiador sul- -mato-grossense, principalmente no que se refere ao diálogo interdisciplinar e à utilização de fontes orais.

A intenção do estudo é compreender os desdobramentos do Golpe Militar de 1964, em uma cidade do interior do Brasil – Aquidauana, então no estado de Mato Grosso – focando-se especialmente na Repressão e na Utopia, elementos em evidência no contexto político da segunda metade da década de 1960.

Para tal empreendimento, Eudes Fernando Leite, além de manter constante diálogo com a historiografia nacional relacionada ao Golpe, apoia-se em inúmeras fontes: inquéritos policiais- -militares, revistas, jornais, textos literários, leis, dados censitários, fontes orais, entre outros. É nesta variedade de fontes e no trato das mesmas que o texto se enriquece, pois o autor consegue realizar um cruzamento entre os materiais selecionados, contrapondo-os, inquirindo-os, evidenciando assim, o amplo trabalho de investigação que permeou a pesquisa.

Tributário dessa visão sobre as fontes, o primeiro capítulo foi destinado especialmente à História Oral e à Memória. Para o autor, mesmo diante da desconfiança e das críticas enfrentadas pelos historiadores que utilizam as fontes orais, não há como negar a contribuição dessa ferramenta para os pesquisadores tanto da área de História, como de Sociologia e de outras disciplinas das ciências humanas. A memória por sua vez não pode ser desvinculada da oralidade, pois a construção das fontes pela História Oral passa pelo preenchimento das mesmas fontes por parte da Memória. Não se pode deixar de apontar que apesar de o capítulo ter sido dedicado à discussão teórica, nele encontramos uma instigante análise dos depoimentos coletados pelo autor, um exercício fecundo de ligação da teoria à prática que demonstra as potencialidades e dificuldades encerradas na “narração da memória”.

Entendendo a utopia “como perspectiva, fundada em uma urgência material ao novo” no segundo capítulo, Aquidauana: entre a realidade e a utopia, o autor apresenta um breve painel sobre a utopia comunista em Aquidauana. Fica evidente que o principal ponto de inflexão dentro das chamadas “Reformas de Base” do presidente João Goulart, para o caso de Aquidauana, era a reforma agrária e foi em torno dessa discussão que se formaram os núcleos considerados esquerdistas, que tanto descontentamento trouxeram à elite aquidauanense.

Em suma, Aquidauana, “microespaço” na conjuntura de 1960, estava dividida entre uma elite aterrorizada pela ameaça do comunismo e grupos que viam nos ideais comunistas a possibilidade de uma vida mais justa.

O terceiro capítulo, A cidade, os coronéis e a emergência política da esquerda, apresenta aspectos históricos da formação da cidade de Aquidauana que direta e indiretamente influenciaram nos fatos ocorridos em 1964. Dentro desse quadro histórico, dois elementos se sobressaem: a bovinocultura e, consequentemente, a formação das oligarquias. Nas palavras do autor: “subordinada e subordinadora a pecuária gerou e reproduziu […] um complexo de relações em que a mentalidade conservadora dos fazendeiros coadunou-se com a economia, assentada na pecuária” (2009: 43).

A Utopia e Repressão que emergiram nos anos de 1960 estão ligadas à formação histórica de uma Aquidauana marcada pelo autoritarismo, pela violência, pela sobreposição do poder privado ao poder estatal, tudo isso sob a égide do coronelismo.

Ainda segundo Leite: “o surgimento e o desenvolvimento de Aquidauana deu-se a partir dos ditames e interesses desse modelo de autoridade, o coronelismo” (2009: 45). Nesse ambiente, o confronto em 1964 foi marcado por “comunistas” e coronéis, sendo que estes, após sofrerem forte ataque do governo Vargas na década de 1930, com o Golpe de 1964, retomaram suas influências e, amparados pelo Estado, partiram à caça de todos os que punham em evidência seus privilégios sociais.

Já o quarto capítulo, Esquerda e direita: os confrontos e as idéias, detalha quais foram as ações políticas que culminaram na repressão após o Golpe de 1964 em Aquidauana. Todas as preocupações da elite “bovinocultora” estavam centradas em pequenas reuniões dominicais e comícios políticos que vinham acontecendo no município e que tinham como carro-chefe a discussão sobre a reforma agrária – um tema intimamente ligado ao ideário da esquerda e que ganhava cada vez mais força por conta das reformas propostas pelo governo de João Goulart.

Nutridos pelas propostas de Jango, os esquerdistas aquidauanenses endureciam seus discursos e punham a elite da cidade cada vez mais em estado de alerta. Daí o porquê das tensões geradas no clima político da cidade. E é nessa atmosfera de conflito que Aquidauana recepciona o Golpe Militar de 31 de Março e, a partir desse mesmo ano, sofre repressão que tem por base as manifestações dos esquerdistas que haviam reforçado seus ideais no embalo das propostas de Jango.

O golpe militar e seus desdobramentos regionais Por fi m, no quinto capítulo intitulado O discurso da revolução e suas práticas, após breves considerações sobre o termo “revolução” e de como se apropriaram desse conceito os militares e a esquerda, o autor se centra no discurso dos militares. O discurso era uma importante arma dos novos donos do Estado que procuravam pintar o evento de 31 de Março com um verniz de “Revolução”. Conforme Leite: “amparados em um discurso moralizador, em nome de um nacionalismo autoritário, os militares inauguravam o Regime pela perseguição aos ‘inimigos da pátria’, os subversivos ligados a uma suposta sovietização do País” (2009:74).

Nesse capítulo, Leite ainda apresenta inúmeros exemplos de equívocos na condução dos Inquéritos Policiais-Militares na cidade de Aquidauana, principalmente no que se refere à prisão de suspeitos sem quaisquer provas e mesmo antes da conclusão das investigações. A vaga rotulação de “comunista” – na qual eram enquadradas pessoas que na verdade só buscavam seus direitos sociais -, e a participação da justiça civil junto às forças militares também foram aspectos que marcaram a história da Repressão em Aquidauana. As minúcias de toda essa movimentação são recuperadas pelo autor através de um admirável cruzamento de fontes escritas com fontes orais, uma vez que Eudes Fernando Leite preocupou-se em empreender um dispendioso trabalho de entrevista com várias pessoas que foram citadas nos inquéritos da época.

Com essa pesquisa, fica o exemplo de um estudo em História que partindo de um local específico é capaz de traçar ligações com a historiografia nacional e também mundial, pois ao término do livro, é possível visualizarmos a cidade de Aquidauana dentro do contexto nacional – marcado pela perseguição aos comunistas, pela repressão, pelo desrespeito aos direitos básicos do cidadão etc. – e também uma cidade que, seguindo o contexto mundial, dividia-se entre duas grandes utopias: a capitalista e a comunista.


Resenhista

André Dioney Fonseca – Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail: andredioney@yahoo.com.br.


Referências desta resenha

LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução. Dourados/MS: Editora da UFGD, 2009. Resenha de: FONSECA, André Dioney. O golpe militar e seus desdobramentos regionais. Revista de História Regional v.17, n.1 p.332-335, 2012.

Itamar Freitas

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