Aprendendo e ensinando na Idade Média e renascimento: novas perspectivas/ Brathair/2021

Colocados lado a lado, os livros, as revistas, os capítulos de livros, os artigos e os ensaios que trazem estampados em suas páginas os estudos acerca da educação no Medievo certamente são capazes de ocupar algumas dezenas de estantes de uma biblioteca, quando não uma inteira. Desde pelo menos as décadas finais do século XIX com os seus “verdadeiros heróis filosóficos” presentes nas numerosas narrativas de cunho nacionalista de então (BOSCH, 2021, p. 25), este é um importante objeto de estudos disposto bem no centro das mesas de trabalho não apenas de historiadores-medievalistas, mas também de filósofos, teólogos, juristas e filólogos.

Grosso modo, podemos afirmar que as pesquisas até aqui produzidas se dividem em dois grandes eixos que atuam de modos complementares: um temporal e outro espacial. O primeiro deles sai basicamente do renascimento carolíngio, ainda nas décadas finais do século VIII, passa pelo renascimento do século XII e vai até o surgimento das primeiras universidades no alvorecer do século XIII. Já o segundo eixo há pouco mencionado diz respeito às escolas monásticas cujas origens remontam à alta Idade Média, atravessa as escolas ligadas às catedrais urbanas e outras mantidas por um ou alguns mestres independentes e também termina com o surgimento das primeiras universidades.

Em ambos os casos, como é possível observar ainda que de soslaio, as universidades e tudo aquilo que representaram foram teleologicamente concebidas como o ápice, o ponto final do que seria um previsível processo evolutivo tantas vezes compartimentado no qual algo supostamente melhor e revolucionário tomou o lugar de algo nitidamente ultrapassado, ou mesmo arcaico em função de sua incapacidade de adaptação e abertura ao novo. Daí a procedência da discussão a respeito da inclusão ou não dos círculos e escolas humanistas da Itália nos séculos XIV e XV. De fato, o lugar daquele Renascimento (com um R maiúsculo, por assim dizer), que parece desvinculado de qualquer passado imediato, que foi construído como herdeiro direto do helenismo, não parou de ser questionado desde que Jacques Le Goff (1994, p. 35-41) compartilhou com o mundo as suas ideias acerca da existência de uma “longa Idade Média”.

Tantas vezes portador de uma face com proeminentes traços liberais e burgueses, para não dizer eminentemente modernos, esse processo evolutivo há tempos tão enraizado na historiografia, sobretudo na de origem francesa que começou a de fato crescer e ganhar forma definitiva a partir da segunda metade do século passado, deu pouca ou nenhuma atenção aos imbricados processos de transformações orgânicas que permitiram uma realidade tão diversa um dia existir (RUBENSTEIN & VAUGHN, 2006, p. 1). Paralelamente, os personagens, os propalados “homens de saber”, elencados entre alguns monges, e muitos clérigos e intelectuais urbanos assumiram o papel de protagonistas nesta história que deu grande ênfase à cultura letrada que tinha as cidades como os palcos principais de suas encenações. Ademais, é importante destacar que como o conteúdo textual não era um fator limitador do que era então ensinado, também é possível imaginar a vida da escola através da difusão de seus ensinamentos assim como a sua recepção por outros discípulos e mestres e o uso da reputação destes dentro da sociedade e em uma miríade de outros contextos (GIRAUD, 2020, p. 6).

Na verdade, acreditamos que estes personagens eram gente que soube tecer e se conectar a redes de muitos saberes horizontais e verticais e que, também envolvidos por suas inúmeras polissemias culturais cotidianas e de vida, construíram diferentes maneiras de ver e ensinar o mundo, da ciência à sapiência (MULDER-BAKKER, 2005, p. 31-32). A partir destas, desenvolveram trajetórias pessoais singulares que se mantiveram em diálogo com as tradições letradas ou não, longevas ou não, que os precederam e com as quais travaram diferentes níveis de contato ao longo do tempo (BRUUN & GLASER, 2008, p. 1-11). E mesmo as diversas memórias que deixaram escritas, longe de serem apenas a manifestação antecipada da individualidade, revelam as urgências e as necessidades cotidianas de mestres que precisaram encontrar caminhos para se afirmar a lançar mão de todo o capital político e simbólico que possuíam em contextos incertos cuja institucionalização promovida pela licença para ensinar em todos os lugares (licentia ubique docendi) ainda não era uma realidade, destacadamente em períodos anteriores ao século XIII (WEI, 2011).

Assim, dada a confirmação assídua de que os pressupostos dessa historiografia ainda continuam a operar quase que mecanicamente em todas as áreas do conhecimento, uma revisão multidisciplinar torna-se necessária, melhor, urgente. Somado a isso, é claro, está a convicção de que, ainda que tantas estantes e bibliotecas já tenham sido preenchidas com obras sobre a educação no ocidente cristão medieval, a riqueza do assunto ainda está longe de ser esgotada. E para o interior deste, julgamos fundamental trazer as assertivas de John D. Cotts (2013, p. 3-4) que, ao pensar e escrever a partir da proposta de existência de um “longo século XII”, afirmou: “Livre das responsabilidades de prefigurar Petrarca e Leonardo, entre outros, e também de descobrir a individualidade e dar destaque a outros arautos da modernidade, o século XII pode e deve ser explorado como um locus de contradições, negociações e possibilidades em diferentes áreas do saber”.

De forma complementar, julgamos pertinente trazer a proscênio as palavras de um outro historiador contemporâneo que se dedica ao Medievo. Este é Chris Wickham (2019, p. 23), que em seu manual mais recente, afirmou: “A história não é teleológica, isto é, a evolução histórica não vai para determinado ponto; ela parte de determinado ponto. […] na minha opinião, o período medieval, cheio de energia, é interessante por si só. Não necessita ser validado por quaisquer desenvolvimentos posteriores”. Como consequência da aproximação entre Cotts e Wickham, dois medievalistas atuantes e provocativos da nova geração, encontramos a certeza de que o passado medieval tem muito mais a nos dizer do que nós a ele, sobretudo no que se refere à educação, ou às variadas formas de se aprender e ensinar à época existentes.

Essa nossa proposta de dossiê temático acolhida pela Revista Brathair foi exposta ao público no primeiro semestre de 2021. Antes de ser uma mera provocação, expressão muito comum no jargão acadêmico atual, ela foi concebida como um convite a pensar junto a respeito de algumas das questões acima dispostas e propor algumas outras que possam minimamente adensar esse debate tão importante em um tempo de negacionismos extremos, usos obtusos do passado e tradicionalismo exacerbado. Este convite foi atendido por cinco pesquisadores(as) que também se dedicam à temática em questão ou dela se aproximam. É o caso, por exemplo, de Carolina Gual Silva (UFRRJ) que, com o seu artigo intitulado “Graciano como mestre e o Decretum como um manual de ensino: direito e teologia no De penitentia (c. 1140)”, busca, em termos gerais, analisar as relações muito próximas entre os aspectos jurídicos e teológicos da referida obra tratada pela historiografia como uma espécie de manual de ensino de direito canônico. Logo, e precisamente a partir dele, Gual prossegue com um segundo propósito, desta vez mais concreto: mostrar como o Tractatus de penientia, longe de entrar em conflito com o restante da obra, forma parte de sua estrutura pedagógica.

Por sua vez, Rafael Bosch (Unicamp), em “A História das minhas calamidades de Pedro Abelardo e o universo intelectual parisiense da primeira metade do século XII”, revisita uma vez mais as histórias de um dos personagens mais conhecidos, polêmicos e controversos do século XII. Todavia, sem se render a envelhecidas tradições historiográficas, Bosch assumiu o compromisso de situar a sua fonte à luz do contexto de seu surgimento e das relações de força presentes na vida de seu autor, o que nos permite compreender com um pouco mais de tessitura as tensões e disputas presentes no convívio nem sempre harmoniosos existente entre mestres e destes com os seus discípulos na primeira metade do século XII. Em definitivo, Bosch busca destacar o caráter primariamente teológico de a História das minhas calamidades. E o referido articulista se apoia na análise de gênero textual e no fato de que Abelardo se mostra como objeto e não como sujeito de sua obra.

Já em “La polivalente recepción de Juan de Salisbury del corpus aristotélico. Una introducción”, Natalia G. Jakubecki (UBA/CONICET, USal), uma das proponentes deste dossiê temático, também traz para o centro do debate um personagem-chave que construiu sua trajetória no decorrer do século XII. Embora não tenha sido um mestre de atuação longeva como foram Graciano e Pedro Abelardo, de acordo com a análise de Jakubecki, João de Salisbury mesclou no conjunto de sua obra as suas memórias, os seus ensinamentos, as suas inquietações políticas e filosóficas, assim como as suas diferentes e até em alguns momentos contraditória percepções acerca da recepção da obra de Aristóteles que então se fazia cada vez mais presente nos círculos letrados.

Ao adentrar no meio universitário com o seu artigo eminentemente historiográfico intitulado “As origens da Universidade de Toulouse no século XIII: uma análise sobre o regime de verdade e seus problemas”, Thiago Azevedo Porto (UFPA) foi aos primórdios da história de uma importante universidade do Medievo, inserindo-a nas disputas de poder que se davam dentro e fora dela, assim como o seu papel desempenhado na formação da Europa Medieval. Tudo isso sem perder de vista a necessidade de se pensar a história e a origem das universidades não mais como ruptura, mas como o ponto de chegada do questionamento do regime de verdade então vigente e as relações de poder que se davam desde o século anterior.

O último trabalho que integra este dossiê é o de Tamara Quírico (ART/UERJ), intitulado “In ipsa legunt qui litteras nesciunt: notas sobre as funções das imagens cristãs no período medieval”. De alguma maneira, este texto é o complemento dos anteriores. Embora os quatro artigos apresentados tenham como protagonistas os letrados e, portanto, o ensino que se dava através das palavras, Quírico apresentou aqueles que não podiam ler, mas que fizeram uso do meio pedagógico privilegiado para eles, o pictórico. Como ela bem explica, o letramento dos fiéis se intensificou no tempo das escolas urbanas, mas el não era suficiente para a cabal compreensão dos textos sagrados. Daí, a importância da mediação das imagens.

Este número de Brathair também traz mais quatro artigos livres e uma resenha crítica. O primeiro deles é “Franquismo, gênero e ensino de História: o mundo iberohispânico medieval em El Parvulito”, de Marcelo Pereira Lima (UFBA). Ao analisar uma obra de cunho didático produzida nos anos sessenta dos século passado, Lima traz os desdobramentos de pesquisas por ele anteriormente realizadas com objetivo de dar ainda mais profundidade às relações entre os estudos de gênero e o ensino de História através de um estudo que teve como referência a península Ibérica, cenário de intensas manifestações cristãs-católicas, nacionalistas, eurocêntricas e androcêntricas que encontraram no medievo hispánico elementos para a disseminação de suas ideologias.

Ainda no mundo ibérico e novamente com a temática gênero como pano-de-fundo, temos o artigo “Dissidências sexuais e de gênero no medievo ibérico: um estudo sobre a sodomia no discurso jurídico de Alfonso X (1252-1284)”, de autoria de Cassiano Celestino de Jesus (UFBA). Ao tomar o Fuero Real e Las Siete Partidas como suas principais fontes, o articulista em questão buscou demonstrar como os comportamentos sexuais tidos como não adequados eram tratados nos discursos monárquicos e da Igreja da época, algo que se fazia com a nítida intensão de manter as classificações e as hierarquizações de gênero tidas como “naturais”.

Na sequência, temos o artigo de “Para o bem de todos: identidade citadina em Londres na baixa Idade Média”, de Viviane Azevedo de Jesuz (UFF). Como o próprio título já indica, trata-se de uma pesquisa cujo objetico central é compreender aspectos cotidianos de um importante centro urbano medieval. Ao tomar a preocupação com o bem comum entre os membros da sociedade que lá vivia, a autora chamou atenção para o fato de que apenas o fato de ter ali nascido não era fator determinante para a existencia de um sentimento de pertencimento, e sim a atuação dos indivíduos que lá construiam suas vidas sem perder vista a necessidade de agir em prol do bem-estar de todos.

Ainda na baixa Idade Média, Daniel Lula Costa (UNESPAR) apresenta o seu “As presenças das bestas do Bestiário de Bruneto Latini na Divina Comédia de Dante Alighieri” a fazer mais uma inserção nos estudos acerca das imagens de animais e seus significados em duas importantes obras de dois igualmente importantes autores do medievo, tudo isso sem perder de vista suas possíveis origens e influências.

Ao avançar no tempo, mais especificamente para o século XVII, mas sem perder de vista as reminiscências medievais do período, encontramos o artigo “Antônio Vieira: Salvação dos índios na Carta ao rei D. João IV, de 4 de abril de 1654”, de Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira (UFMA). Ao analisar uma das cartas escritas por um dos mais representativos personagens da Companhia de Jesus, Oliveria trouxe para debate um tema recorrente na história do cristianismo desde os seus primórdios: a salvação das almas, neste caso, dos índios então a viver no Maranhão, uma parte na colônia portuguesa nas Américas.

Por fim, como complemento deste número, temos a resenha do ebook “A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI”, organizado por Luciano José Vianna (UPE) e lançado no segundo semestre de 2021. De acordo com Bianca Trindade Messias (UEMA), autora da referida resenha, tal livro é uma relevante contribuição conjunta feita por diferentes professores e professoras de História Medieval de difentes instituições de ensino superior do Brasil e do exterior com o objetivo de servir de material de apoio e consulta para docentes da Educação Básica. Ademais, não podemos deixar de destacar que com esta publicação temos em mãos um retrato fiel do grau de maturidade alcançado pela medievalística nacional no decorrer das duas últimas décadas deste século.

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“De todas as coisas, a mais desejável é a sabedoria […]”, esta pequena frase de João de Salisbury está no Metalogicon (Livro II, cap. 1). Desde o primeiro contato, ela segue a nos indicar o quão importante é a busca pelo conhecimento em nossas vidas. Desejamos sempre que essa busca seja pautada por valores éticos e pelo princípio de abertura ao outro e para o que ele tem a nos dizer, como pregaram muitos dos mestres com os quais trabalhamos e cujos ensinamentos serão analisados nas páginas deste dossiê. Certamente, ouvir os medievais a respeito do que entendiam ser o ensino e a aprendizagem é se ver diante da renovada oportunidade de subir os ombros dos gigantes e olhar para o mundo. Desejamos sinceramente que todos e todas que se interessam por nossa proposta tenham ótimas leituras e exercitem o pensar junto, pois, afinal, é disso que se alimenta a ciência que produzimos.


Referências

BOSCH, Rafael. Hereges dialéticos: um estudo sobre a escolástica nos séculos XI e XII. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e Filosofia, 455 fls, 2021.

BRUUN, Mette & GLASER, Stephanie (eds.). Negotiating heritage: memories of the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2008.

COTTS, John D. Europe’s long twelfth century: order, anxiety and adaptation, 1095-1229. New York: Palgrave MacMillan, 2013.

GIRAUD, Cédric (ed.). A companion to twelfth-century schools. Boston/Leiden: Brill, 2020.

LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994.

MULDER-BAKKER, Anneke B. Lives of the anchoresses: the rise of the urban recluse in medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania, 2005.

RUBENSTEIN, Jay & VAUGHN, Sally N. (eds.). Teaching and learning in northern Europe: 1000-1200. Turnhout: Brepols, 2006.

WEI, Ian. From twelfth-century schools to thirteenth-century universities: the disappearance of biographical and autobiographical representations of scholars. Speculum, volume 86, p. 42-78, 2011.

WICKHAM, Chris. Europa medieval. Lisboa: 70, 2019.


Organizadores

Carlile Lanzieri Júnior – UFMT – Vivarium. E-mail: lanzierijunior@uol.com.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7190-6809

Natalia G. Jakubecki – UBA/CONICET, USal. E-mail: natalia.jakubecki@filo.uba.ar  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1674-7064


Referências desta apresentação

LANZIERI JÚNIOR, Carlile; JAKUBECKI, Natalia G. Apresentação. Brathair. São Luís, v. 21, n. 2, p. 1- 6, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

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