O fim da arte é uma expressão a primeiro olhar assustadora, pois insinua o desaparecimento de uma das expressões humanas mais sublimes e que se vincula tão fortemente à cultura e à civilização que o seu desaparecimento nos ameaçaria com o desaparecimento dessas últimas e por consequência com o fim do mundo como nós o conhecemos. Quando surge pela primeira vez, com Hegel em suas lições de estética no início do séc. XIX, a expressão “fim da arte” significa a sua substituição pela racionalidade como meio de representação do Espírito Absoluto, de maneira que a arte como sempre foi conhecida tenha podido, a partir de então, se desvincular da necessidade de representação fiel da realidade e mesmo do critério de beleza, o que fez com que a morte da arte fosse, no fundo, a sua libertação. Mas não libertação completa, pois ela continuou vinculada à história, ou seja, continuou relacionada ao tempo e ao espaço no qual ocorria, continuou em firme relação com o contexto sociocultural, tornando-se ora arte de vanguarda alienada, ora arte politicamente engajada. Em Após o fim da arte, uma coletânea de diversos artigos sobre a temática da arte contemporânea, o emérito professor de filosofia da Universidade de Columbia e crítico de arte Arthur Danto, já célebre por seu livro anterior, A transfiguração do lugar comum, sobre uma nova maneira de olhar a arte que torne mais complexa a diferenciação entre objeto artístico e objeto cotidiano, vai pensá-la após a sua morte, ou seja, após esse processo de independência em relação aos critérios de valoração estéticos antigos, bem como em relação à história e sua capacidade de se inserir em um cabedal conceitual de valoração e significação que lhe seja próprio, fazendo da arte livre e autônoma o seu próprio meio cultural reflexivo.
Ao todo o livro é dividido em onze ensaios, tendo a questão da pós-historicidade da arte como elemento aglutinador, embora o tema seja analisado sob diferentes aspectos em cada um deles. Mesmo que por vezes sejam bastante repetitivos os argumentos dos diversos artigos, por se tratar de uma coletânea e não de uma obra pensada como um todo coeso e único, tal fato não chega a prejudicar a leitura da obra como um todo; ao contrário, auxilia na compreensão de suas teses principais à luz de diversas circunstâncias e exemplos diferentes. É como se sua tese principal, a do fim da arte historicamente subjugada, se refletisse em um prisma, jogando nuances de cores distintas a cada capítulo.
Já no primeiro deles, Moderno, pós- -moderno e contemporâneo, que serve de introdução e de delimitação conceitual para as demais apreciações, percebemos a tese central do escrito, a de que a morte da arte denuncia a morte do pensamento metafísico como um todo, inclusive na filosofia, como vai aparecer mais longamente no capítulo “Pintura, política e arte pós-histórica”, no qual o autor demonstra como o positivismo lógico sepulta o pensamento metafísico em filosofia e de que maneira isso se reflete na produção artística do século XX. Isso impedirá, doravante, qualquer produção orientada por referências externas ao seu próprio processo, refletindo a estetização do cotidiano, pois não há mais, então, um modelo fora do mundo em direção ao qual o fazer artístico possa orientar- -se. Nesse sentido, quem desaparece não é propriamente a arte, mas sim a sua “narrativa legitimadora”, possibilitando que a estética crie sua própria autoconsciência e inaugurando especificamente a filosofia da arte, que será pensada mediante critérios que lhe sejam imanentes e não mediante critérios exteriores, criados pela filosofia isoladamente e depois aplicados a ela pela força dos conceitos e do ambiente cultural.
As delimitações temporais cumprem um papel importantíssimo dentro desse quadro conceitual: arte moderna, caracterizada pela pluralidade de estilos, é aquela realizada entre 1880 e 1865, sepultada, então, pelo surgimento da Pop art. Afirmar ser algo contemporâneo é delimitar a produção pelo momento no qual ela é realizada, e não pelo seu teor e estilo, ao passo que referir-se, como se está fazendo aqui, à arte pós-moderna, é tratar especificamente dessa produção pós-histórica enquanto possibilidade de desfazer-se temporalmente de motivos, técnicas e materiais predominantes na composição artística. Para essa arte pós-moderna não há mais qualquer limite histórico, conceitual, material ou estilístico. Na medida em que tudo é permitido e acessível, ocorre, mediante essa desordem informativa, a necessidade de se pensar a arte filosoficamente a partir da percepção de que tudo poderia ser arte, de que a arte não obedeceria mais aos limites que lhe foram historicamente reservados.
No segundo capítulo, “Três décadas após o fim da arte”, o autor demonstra o quanto esse período de indeterminismo estético é a consequência direta da progressão técnica na história da arte ocidental e de seu esgotamento criativo, o que, somado aos avanços tecnológicos, empurra a arte forçosamente ao período pós-histórico, no qual se dá sua desvinculação com os valores definidores da arte do passado, como a capacidade técnica de representação mimética realista ou o compromisso com a beleza. Até a arte moderna, era fácil saber o que era uma obra de arte, agora a questão é definir o que pode ser uma obra ou não e quando. O fim da arte é o fim de uma narrativa histórica que colocava o critério de arte ou não arte na vinculação da obra a um determinado estilo predominante, o que será substituído por esse período de pluralidade de estilos e de universalidade de produção artística. Extrapolando o campo da filosofia da arte, resta a esperança de que essa pluralidade da arte possa se tornar pluralidade de pensamento na cultura ocidental, o que teria consequências não apenas culturais, mas também políticas, insinuando que o rigorismo da crítica de arte é um tipo de dogmatismo estético.
A importância dessa pluralidade é tematizada no capítulo “Narrativas mestras e princípios críticos”, no qual essa multiplicidade de estilos é entendida como um impedimento para que se continue a pensar em termos de uma narrativa mestra, ou seja, um critério e um estilo correto para avaliar e classificar o que seria ou não arte e para diferenciar arte boa de arte ruim. Isso cria, então, a verdadeira necessidade de uma reflexão filosófica sobre arte, que não seja apenas a reprodução de um discurso ideológico alheio, mas que seja capaz de transitar por entre seus critérios imanentes.
Em vários de seus capítulos, o autor polemiza com o também crítico de arte Clement Greenberg, especificamente em relação às divergências de opinião sobre a superação do modernismo pelo pós-modernismo, esse último duramente criticado por Grrenberg. É o caso do capítulo “Modernismo e a crítica da arte pura: a visão histórica de Clement Greenberg”, no qual Danto faz uma análise crítica da concepção de história da arte daquele enquanto substituição de um sistema de símbolos por outro mediante uma mera ilusão de progresso, sem, obviamente, propor a supremacia do pós-modernismo sobre o modernismo, o que Danto defende é que não se possa fazer o movimento contrário, ou seja, como queria Greenberg, continuar usando os critérios inerentes ao modernismo para julgar e teorizar a arte do período pós-moderno e pós-histórico, definidos mediante os critérios que já expusemos acima. Enquanto a arte moderna aceita, ou, melhor dito, precisa de referenciais externos para se afirmar, papel cumprido pelos diversos manifestos de cada um dos quase infinitos movimentos da vanguarda modernista, que valiam como um ponto firme em meio às diversas convulsões culturais da primeira metade do séc. XX, a arte pós- -histórica prescinde e só floresce a partir da eliminação dessa necessidade obsessiva de definição e autodefinição em forma de rótulos e movimentos de estilo rígido.
Danto seguirá argumentando que essa exigência de pureza de estilo é o equivalente cultural da limpeza étnica e do totalitarismo político na história recente da Europa, o que fundamenta a necessidade de uma perspectiva pós-histórica e, portanto, pluralista em arte. Enquanto crítico de arte, Greenberg seria tão dogmático e intolerante quanto os manifestos artísticos do séc. XX, chegando a ser comparado a um tipo de fascismo estético no capítulo “Pintura política e arte pós-histórica”. Se fossem eles a definir os critérios do fazer artístico, não haveria inovação ou mudança, pois certamente aqueles que inauguram um movimento artístico não sabem o que estão fazendo no exato momento de sua ação. É a posteridade que lhes atribui essa significação: por si mesmo se sentem, muito provavelmente, inseridos em um fluxo de continuidade. Esse lapso temporal anuncia o descompasso de duas instâncias cujo distanciamento nunca foi tão grande como em relação ao período pós-moderno, o abismo entre os critérios de avaliação estética e os da arte que está sendo realizada, o que é retomado tanto no capítulo “Da estética à crítica de arte” quanto em “A pintura e o limite da história: o desaparecimento do puro”.
Nesses, percebe-se o quanto a avaliação estética da arte, considerada enquanto dentro da história, dependerá necessariamente de uma perspectiva de futuro do crítico, que vai enquadrar determinada obra de acordo, inclusive, com aquilo que ele acredita ser o “futuro” da arte, de maneira que as categorias históricas se transformem em molde de avaliação de produções e categorias estéticas. O que a arte pós-histórica faz é romper com essa dependência e reivindicar a estruturação de critérios que sejam alheios a essa historicidade assim entendida. Essa discussão é a mesma do universalismo ante relativismo à qual o autor claramente coloca como resposta o pluralismo, sugerindo que podem coexistir como arte simultânea e paralelamente peças vanguardistas americanas e estatuárias africana cerimonial, por exemplo. Isso nos mostra o quanto é complexa e possivelmente arbitrária qualquer tentativa de delimitação entre a arte e a realidade, tema sobre o qual se debruça toda a produção estética pós-moderna e que segue sendo, sem dúvida, um dos principais motivos de inquietação para todos os que se debruçam sobre a filosofia da arte ainda hoje.
No capítulo “Pop art e futuros passados”, o autor retoma o fenômeno da arte pós-moderna enquanto temporalmente circunscrita ao qual já havia feito menção na introdução para, através da análise de diversos artistas específicos e suas obras, inclusive dos infinitos movimentos e tendências que a compuseram, através de uma floresta obscura de designações, definir a pop art como o momento inicial da arte pós-histórica, da mesma forma como vai analisar a pintura monocromática e sua importância no contexto pós-histórico no capítulo “O Museu Histórico da Arte Monocromática”. Retomando ainda sua oposição ao modernismo de Clement Greenberg, postula a arte pop como o encerramento da narrativa histórica da arte, pois é ela que, em termos hegelianos, pode “trazer à autoconsciência a verdade filosófica da arte” (p. 135). Ela não é apenas mais um movimento estético que segue e é seguido por outros e sim uma ruptura e uma reviravolta no modo mesmo de se pensar o fazer artístico. Seu anarquismo conceitual denota o desejo de toda uma cultura por maior liberdade e autonomia em aspectos que ultrapassam a própria arte. Isso corresponde ao fim de um pensamento metafísico e transcendental que se faz presente em diversos campos do agir humano e, obviamente, não seria diferente em relação à produção artística, que não reconhece mais um elemento exterior que fundamente sua produção, ao qual se projetar, e sim surge de forma autônoma e espontânea, sedimentando esteticamente a exigência contemporânea de pluralidade.
Ainda falando sobre museus, o capítulo “Museus e milhões de sedentos” analisa as relações entre estes, entendidos como espaços referenciais da arte e de manifestação da “verdade-pela-beleza”, a tarefa de levar a beleza democraticamente a todos os homens comuns, na esperança de que a beleza poderia melhorar a vida como um todo, e a sociedade na qual estão inseridos fisicamente. Segundo Danto, embora as pessoas sejam verdadeiramente sequiosas de sentido, que pode ser dado tanto pela religião quanto pela filosofia ou ciência, ou mesmo, como no caso em questão, na esteira do pensamento hegeliano, pela arte, sua sede se refere não especificamente à arte dos museus, pelo menos para a maioria da população, e sim a uma “arte propriamente sua”, que será a do museu apenas se o grupo em questão for o seleto grupo com condições financeiras e culturais para identificar-se com aquelas obras, fazendo do museu um reduto de estratos sociais específicos e, por consequência, um ambiente de sedimentação e reprodução de relações de poder. Isso se liga à invenção do museu como espaço político, invenção recente, de alguns séculos apenas. Como a composição da maioria dos acervos dos maiores museus da Europa se deu por espólios de guerra, muitos museus foram construídos ou criados especificamente para abrigar essas obras no momento de sua conquista ou mesmo de sua devolução, fazendo do museu não uma estrutura cultural mas uma estrutura política, de competição entre nações. Isso é muito discrepante da justificativa do museu enquanto um espaço de democratização da experiência estética, independentemente da erudição relativa à história da arte ou da sensibilidade elaborada da crítica de arte, o que não é exclusividade do museu, obviamente. Acompanhando as conclusões do autor, percebemos que, em meio ao caleidoscópio da pluralidade estética pós-histórica, o desinteresse pelos museus não corresponde ao desinteresse pelas artes, pois as pessoas não deixam de frequentar museus por não ter mais interesse em arte, e sim porque a arte na qual elas têm interesse não é aquela oferecida pelo museu.
O último capítulo, escrito à guisa de conclusão, do qual igualmente nos valeremos, é “Modalidades da história: possibilidade e comédia”, que retoma a discussão que perpassou o livro como um todo, a da impossibilidade ou pelo menos dificuldade de estabelecimento de um critério firme que possa ser utilizado para a definição do que possa ou não ser considerado arte. No caso, se a arte tem uma essência universal que transparece nas obras particulares, o que dificilmente pode ser defendido quando se pensa nos Ready-Mades como obras de arte, dos quais Danto usa exaustivamente The Fountain de Marcel Duchamp e Brillo Box de Andy Warhol como exemplo. A crítica ao essencialismo reforça sua argumentação inicial, sobre o período pós- -histórico da arte ser aquele que possibilita efetivamente uma filosofia da arte a partir de critérios imanentes, pois a grande totalidade de filósofos, ao se debruçarem sobre a estética, usa critérios que tendem a um essencialismo por tentarem definir aquilo que na arte seria eterno e imutável, à exceção honrosa de Hegel, que, em suas lições de estética, demonstra o quanto a arte pode ser entendida mediante critérios históricos. Isso reforça o argumento de Danto de que um objeto considerado arte em um momento não seria necessariamente assim considerado em outro período qualquer da história humana, pois sua definição como obra depende de sua vinculação histórica, ou, para usar um termo hegeliano, espírito de seu tempo.
Por fim, a pós-historicidade em arte não é apenas uma produção desse campo específico nem mesmo suas consequências se restringem a ele; a necessidade de autocrítica e autorreflexão de todas as áreas do conhecimento humano é um dos fenômenos mais interessantes e promissores da pós-modernidade, na qual a criatividade, a flexibilidade e a tolerância são valores cada vez mais importantes. Arthur Danto, mais uma vez, nos possibilita refletir sobre a arte de agora para pensarmos o mundo que queremos para o futuro, tornando essa obra, Após o fim da arte, leitura obrigatória a todos aqueles que se interessem por temas relativos à recente produção artística e cultural. Só nos resta concluir com as próprias palavras do autor a respeito das diversas possibilidades do fazer artístico pós-histórico: “Não há mais uma direção única. Na verdade, não há mais direção. E foi isso o que pretendi dizer com ‘o fim da arte’, quando comecei a escrever sobre esse fim em meados da década de 1980. Não que a arte morreu ou que os pintores deixaram de pintar, mas sim que a história da arte, estruturada narrativamente, chegara ao fim” (p. 139).
Referência
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. [After the end of art: contemporary art and the pale of history]. Trad. de Saulo Krieger, Posfácio à edição brasileira de Virgínia H. A. Aita. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
Resenhista
Francisco Fianco – Doutor em Estética e Filosofia da Arte. Professor de Filosofia na Universidade de Passo Fundo. E-mail: fcofianco@upf.br
Referências desta Resenha
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. Trad. Saulo Krieger. Posfácio à edição brasileira de Virgínia H. A. Aita. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. Resenha de: FIANCO, Francisco. Após o fim da arte, de Arthur Danto. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 12, n. 2, p. 377-382, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]
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