DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1993. Resenha de: DANTAS, Mariana Libãnio de Rezende. Varia História, Belo Horizonte, v.10, n.13, p. 172-175, jun., 1994.
“Este estudo apenas tentou abrir uma janela para a história social da mulher. Nele, procurei desvendar os mais salientes papéis da mulher na colônia, para descobrir que sentido elas lhe davam. Ou ainda, avaliar como os tais papéis funcionavam para endossar a ordem social proposta pelas instâncias de poder, ou, no plano oposto, para promover mudanças nesse sistema. além de incentivar rupturas e resistências. ” [ Del Priore, 1993]
Como a própria autora especifica nesse trecho retirado da conclusão de seu livro, esta obra vai procurar delinear o modo como a mulher se inseria na realidade social do Brasil colônia, quais papéis ela assumia, qual era a sua função social – função esta ditada pelos discursos normativos presentes e conjugados neste dado momento histórico – e quais eram seus comportamentos, !alas e gestos que nos permitem entrever o seu posicionamento em relação a esta sua existência ( sua aceitação ou sua recusa e a maneira como os demonstrava ).
Ao se propor este objetivo a autora vai mostrar estar em ressonância com a tendência atual de uma historiografia ‘francesa (ou poderíamos estender isto a uma historiografia mundial?) que vem tratando da mulher. Como bem nos mostra Bernard LePetit na introdução que escreveu para uma série de quatro artigos que visam criticar a obra Histolre des Femmes en Occidenl – organizada por Geroges Ouby e Michelle Perrot – publicada em um dos últimos exemplares da Revista dos Annales, não cabe mais se limitar a tratar a mulher na história como parte abstrata de um contexto mais geral, ajustando a sua história a uma já configurada história econômica, política ou social essencialmente masculino. O que ele vai propor, e os demais autores vão reforçar, é que os historiadores que se detiverem sobre esta questão devem buscar tratá-la estabelecendo como foco central a mulher – o que implica não somente elegê-la como objeto estudo mas buscá-la como sujeito de sua própria história e procurar entendê-la e ao mundo que a cerca a partir da interação de ambos.
Tendo em vista esta “proposta” de trabalho podemos identificar ao longo da leitura do texto a apreensão, por parte da autora, de três papéis específicos estabelecidos para a mulher nesse período estudado por ela, que abrange os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX: o papel de esposa, o papel de mãe e finalmente, e em estreita relação com a concretização desses dois. o papel de transmissora e fixadora dos ideais e de uma moral católico-cristãos. Assim, partindo de dois discursos fundamentais, que a autora considera como tendo sido os dois musculosos instrumentos de ação acionados para O processo de adestramento pelo qual passaram as mulheres coloniais, o discurso sobre padr6es ideais de comportamento, difundido por moralistas, pregadores e confessores e fruto, em grande parte, das decis6es tomadas pela Igreja durante a reforma católica e de um projeto civilizatório que inundava a Europa renascentista; e o discurso normativo médico que, procurando discorrer sobre o funcionamento do corpo feminino, acaba por endossar e difundir uma concepção deste como destinado à procriação, a autora vai resgatando a maneira pela qual esta imagem da mulher vai sendo construída e firmada, não somente na mentalidade daquela sociedade como, também, na visão que a própria mulher tinha de si mesma.
Mas, se por um lado temos o que se mostra como sendo o idealizado pela época, por outro temos o que era praticado na época. Mary Del Priore nos apresenta, portanto, um mundo dicotômico, polarizado, onde o que propunha (ou impunha) o discurso masculino (religiosos, civilizador ou médico) tinha como opositor a realidade social desse mundo colonial, fruto de uma grande miscigenação de culturas, crenças e comportamentos. testemunha de necessidades que muitas vezes não condiziam com o que procurava estabelecer tais discursos e aliado de práticas e costumes que fugiam a estes ditames. E dentro dessa realidade “a-ser-normatizada” surgia a própria atitude dessas mulheres: que se apresentava como uma resposta mais coerente às imposições dessa realidade do que seria aquela desejada, pregada ou recomendada pelos seus adestradores. O texto da autora vai se basear, portanto, nessa polaridade e, ao mesmo tempo em que procura mostrar a concretização da mulher ideal ela nos mostra o forjamento da imagem da mulher condenada, aquela que se nega a ser esposa, que exerce a maternidade de uma maneira distoante da desejada pela Igreja e pelo Estado e que é incapaz de transmitir uma tradição católico-cristã por ser ela própria urna transgressora desta tradição, em suma, ela procura mostrar como essa mesma sociedade, que procura estabelecer os moldes da mulher ideal, vai forjar a imagem da “puta” para, através desta polarização radical, poder impor mais eficientemente seu projeta de adestramento da mulher.
Enfim, procurando entender e captar essa mulher presente no Brasil colônia, Mary Del Priore envereda pela literatura narmatizadora de quatro séculos buscando nas escritos teológicos, moralizantes e médicos da Europa, como também alguns produzidos no Brasil, o olhar masculino sobre a mulher e as intenções masculinas com relação a este sexo implícitas nesse “olhar”. E numa tentativa de resgatar essa ”mulher” ela vai percorrer o que a passado nos largou de indícios sobre ela: os testamentos, os autos de divórcio, as receitas de “remédios”, as crenças e tradições femininas. os relatos de viajantes e demais testemunhas que tiveram algum convívio com ela.
Através desse seu rastreamento ela nos deixa um retrato que, apesar de pouco nítido, nos permite perceber uma mulher que aceitou ser uma esposa obediente e submissa. que se rendeu à sua função de mãe e, para tanto, sofreu imensamente as dores do pano, sentiu um enorme medo e uma grande insegurança, que viveu permanentemente entre a vida e a morte (seja a sua seja a de seus filhos), que teve que negar sua própria identidade em prol de seus rebentos, de seu marido, do recato e da boa conduta moral, que abriu mão da sua sexualidade e do prazer e que finalmente acabou se adequando ao que a Igreja e a sociedade exigiam dela. Mas se observarmos bem esse mesmo retrato vamos perceber que essa mesma mulher era dada a agir, de vez em quando, de uma maneira nada “recomendável”, que era protagonista de “histórias de ‘amor-demasiada”‘, que se permitia viver amancebada ou concubinada, que criava suas filhas para venderem seus corpos como ela o fazia, que era detentora e transmissora de um saber considerado como feitiçaria ou bruxaria, que se recusava a ser mãe e abortava, abandonava ou matava seus filhos e, enfim, que apesar de todos os esforços masculinos para a controlarem e adestrarem, era muitas vezes “senhora absoluta” de suas casa e de seu corpo.
É essa mulher que a autora procura apreender e é através dessa mulher que ela procura delinear a trajetória histórica que marcou a vida da mulher desde a fundação da col6nia até a sociedade oitocentista – quando o papel social da mulher se apresenta melhor delimitado e esta se mostra melhor adequada a ele e mais nitidamente situada na sociedade brasileira – e é através dela, ainda, que ela procura entender a origem de uma certa imagem de mãe e de mulher que se mostra presente no imaginário de milhões de brasileiros ainda nos nossos dias. Mas será que, no final das contas, este seu trabalho responde a questão que ela se propôs, ou seja, responde a pergunta “Quem somos nós”? A autora vai, indubitavelmente, “abrir uma janela para a história social da mulher” na medida em que instaura um questionamento a cerca da origem desta mulher brasileira, esposa e mãe, mas será que na tentativa de dar conta destas questões ela não cai numa generalização e numa abstração ao tentar resgatar uma imagem de mulher – acabando, inclusive, por endossar a inevitabilidade a configuração feminina? Assim, ao trabalhar com o discurso dominante e buscar o modo como este interage com a mulher ela vai delineando uma imagem, u um retrato, desta mulher que vai ser sustentada por exemplos ilustra1ivo., deixando sempre a impressão de que a autora pode estar certa ou ela pode simplesmente, ter “topado” com os exemplos “certos” !
Mas, independentemente de qualquer critica que possamos formular a esta obra · fica a certeza de sua indiscutível importância pois ao procurar desvendar a origem e formação desse estereótipo Mary Dei Priore nos fornece o conheci menta necessário ao entendimento de certos fatores que até os nossos dias vêm marcando negativamente o destino da mulher brasileira. Nos remetendo ao nosso passado a autora nos permite entender melhor os elementos que compusseram e continuam compondo a nossa condição de mulher ~· assim. nos permite compreender como somos, na verdade, uma construção fruto de ideais de uma época passada, e, assim, ela acaba nos entregando a possibilidade de nos “reconstruirmos”.
Mariana Libãnio de Rezende Dantas – Bolsista de iniciação científica do CNPq. Aluna do curso de História da UFMG.
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