Assim como pode ser possibilitada às pessoas a locomoção para outros lugares através de uma estrada, o historiador Adelson A. Brüggemann nos transporta a reflexões, no mínimo curiosas, quando lemos seu livro. Isso se dá, inicialmente, pela compreensão de que “até mesmo as estradas” possuem história. Esse livro está entre aquelas pesquisas que ampliaram a temática de investigação do passado, tão a gosto da proposição dos Annales, por exemplo, e de uma escrita da história com abordagem interdisciplinar. Com estilo de escrita agradável e envolvente, o autor torna o leitor companheiro de viagem, analisando documentos dos séculos XVIII e XIX presentes no Arquivo Ultramarino: correspondências entre capitanias, políticas e propostas da coroa portuguesa ou relatórios de autoridades. Trata-se de uma pesquisa cuidadosa em fontes que não são propriamente as mais convencionais ou rotineiras. Adelson consegue realizar um diálogo de variadas situações, tendo sempre em vista a estrada de Lages a Desterro como eixo principal e condutor da interpretação, mobilizando temas como: fronteira; geopolítica das disputas portuguesas e espanholas; apropriação estatal de bens naturais; logísticas, cotidiano e necessidade dos deslocamentos (para transeuntes); integração territorial; histórico de uso de caminhos; relações internas entre capitanias. Os temas presentes em documentos consultados são variados quanto à bibliografia e, por conseguinte, a análise tecida pelo autor é tão rica como o diálogo “teórico”.
É tratada no livro a interação entre litoral e planalto, ou melhor, a forma como até então a capitania de Santa Catarina, “espremida” entre Serras (Geral e a do Mar) e Oceano Atlântico, passou a ter como sua área parte do que até então era capitania de São Paulo: os Campos Gerais de cima da Serra. O autor parece defender o argumento de que as estradas foram um dos principais meios de que os colonizadores portugueses lançaram mão, seja para acessar e explorar recursos, implantar meios de adquirir capital (cobrando impostos) e, particularmente, controlar a sociedade e manter o domínio. As estradas desempenharam papéis estratégicos na conjuntura colonial. Nessa interpretação, ao que parece, Adelson Brüggemann as considera mais importantes do que parece ter entendido Marlon Salomon (2002). Enquanto esse último localiza no tempo quando as estradas passaram a ser uma preocupação do poder, ampliando-se tal preocupação num período, Brüggemann, em Ao poente da Serra Geral, considerou as estradas um exemplo da busca por “vencer” distâncias e superar barreiras naturais. Acredito que Adelson Brüggemann, ao mobilizar um espectro temporal mais largo, tenha encontrado a preocupação e a necessidade de caminhos (em situações anteriores ao que apontou Salomon), desde a chegada da colonização portuguesa. Caminhos eram uma das formas de agentes se disporem a estarem em – e definitivamente realizarem – apropriação, sendo que a abertura de passagens pode ser lida como resultado daquela estrutura em que a América portuguesa foi menos pensada como variadas comunidades, e mais como um imenso recurso. Embora, na capitania de Santa Catarina, até a década de 1770, administradores tenham estado estritamente atentos e limitados à defesa e à ocupação do litoral, deixando em último plano as atenções ao interior, quando então as possibilidades de invasão “pelo lado oposto ao litoral” começam a tomar maior relevância; passou-se a incorporar no planejamento de defesa, não apenas a costa litorânea, mas também os sertões. Entretanto, também se desejou dos campos de Lages outra forma de proteção ao litoral, visto como um oceano aberto e fronteira explícita de ataque, com possíveis combates. É após a chegada e domínio dos espanhóis na Ilha de Santa Catarina, em 1777, que a vila de Lages passa a ser vista como estratégica na proteção de Desterro e para efetivar a ligação entre a “imensa barreira natural”, um caminho teria papel primordial. Por isso, o título do livro faz uma referência ao movimento dos portugueses que viviam na Ilha de Santa Catarina de conhecer e questionar o que havia além da Serra Geral, indo além do que era possível visualizar a partir do litoral, em direção Ao poente.
São relevantes as três diferentes formas de conceituar o sertão, que, segundo analisou Adelson Brüggemann, possuía significados diferentes. Pode descrever-se:
1) Para os navegadores portugueses, sertão nomeava genericamente a oposição à costa atlântica, sendo sinônimo de interior.
2) Para os paulistas, sertão era local de risco e perigo, em que se ia desde o início da colonização para acessar riqueza, embora fosse também maior potencial de encontrar “inimigos” e bichos indomáveis.
3) E, ao longo do período colonial, sertão era, ainda, terra nova, espaço possível de apropriação, exploração e alargamento da fronteira (ideia de sertão recurso sempre em expansão).
O sertão poderia ser habitado por aqueles que fizeram e consideraram esse espaço favorável para, entre as árvores e matas, estarem protegidos de apressamentos, como o caso de um Quilombo próximo ao atual município de Angelina. Nesse outro ponto alto da obra Brüggemann, ele transcreve (p.74) o encontro de Quilombo por um alferes que muda sua “rota” ao encontrar vestígios de caminhos mal-entreabertos na mata. Nesse caso, além de indígenas, “o sertão” era habitado também por negros que tornavam as florestas em formas potenciais de escapar da escravidão, construindo suas liberdades. Era fevereiro do ano de 1787 quando o encarregado do poder colonial solicitou ao governador aumento de apoio à tropa. Atendido, com mais soldados e armamentos, o alferes que havia suspendido seu trajeto inicial dedica- -se a adentrar as trilhas para averiguar de qual presença se tratava, encaminhando à capital aquelas pessoas que foram detidas:
[…] marchei com toda a conduta a examinar o seguimento da dita trilha, e me fui arranchar no rio Itajahy-Morim, fazendo meia légua de caminho, neste lugar se achou estabelecido um preto por nome de Garcia e uma preta por nome de Maria, vivendo ai fugitivos havia 18 anos, sustentando-se de caças do mato, que apanhavam em mundéos, e pinhão daquele que abunda este terreno: ele conservava em seu poder vários armamentos e roupas dos soldados debandados da Ilha de Santa Catarina, quando os espanhóis a invadiram no ano de 1777, e alguma roupa do sargento Marcellino de tal, do Regimento de Cavalaria da Cidade do Rio de Janeiro, que ali faleceu, segundo a informação do dito preto, o qual remeti com a preta e tudo o mais ao Governador de Santa Catarina (BRÜGGEMANN, 2008. p. 74).Parece ter havido, segundo Adelson, competições entre a capitania de São Paulo e a de Santa Catarina no conhecimento do sertão, pois ambas desejavam garantir utilização e apropriação do espaço para si. Inclusive, é mobilizando o argumento da necessidade de socorros, por parte de governadores de Santa Catarina, que barganhavam a necessidade de anexar a vila de Lages a essa capitania. A abertura do caminho também era resultado da necessidade de proteção. Ao mesmo tempo em que a “transferência”, em 1820, de Lages pertencente a São Paulo para o domínio da “capitania catarinense”, ajuda na compreensão do estabelecimento do desenho e forma territorial dessa última; essa transferência também pode ser entendida como projeto militar das duas capitanias (ou, em última análise, da Coroa portuguesa) na proteção da Ilha de Santa Catarina e de outros domínios meridionais.
É rotineiro, numa resenha, não sintetizar a diversidade e a riqueza contida no interior de um livro, mas se considera pertinente, nela, a possibilidade de, no diálogo, propor e ampliar significados. Acredito que entre os principais méritos desse livro de Adelson Brüggemann está a proposta multitemática, reatualizando autores como Fernand Braudel. Certamente, o tema principal, que é a abertura de um caminho, a forma de caracterizá-lo, bem como a própria característica da materialidade “de uma estrada”, tornou essencial o diálogo com a abordagem de cunho geográfico. Desde a epígrafe do livro, do eminente e “clássico” Aziz Nacib Ab’Saber, até a utilização e diálogo com autores como: Milton Santos, Caio Prado Junior, Antonio Carlos Robert Moraes (2000), entre outros, é demonstrada a preocupação de Adelson Brüggemann em bem caracterizar seu objeto, realizando um constante “estado da arte” a respeito do tema. Por outro lado, deve mencionar-se uma preciosa ausência que, certamente, teria contribuído para vários trechos e escrita do Ao Poente da Serra Geral. Trata-se do cuidadoso e divertido livro Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda (1994). Talvez, se alguma brecha possa ser encontrada no livro de Adelson Brüggemann, está em detalhar alguns usos, cotidianos e vida material que os caminhos possibilitavam e impediam, tanto aos colonizadores, como às populações autóctones. Claro que Sérgio Buarque fez, magistralmente, uso da ideia de caminhos como encontro de fronteiras culturais e o modo de os colonizadores se adaptarem, os quais muito tiveram de aprender com populações indígenas para a compreensão do meio natural tão diverso do europeu. Acredito que algumas fontes presentes no livro aqui resenhado também receberiam um olhar mais relevante em alguns temas, caso o diálogo com Sérgio Buarque em Caminhos e Fronteiras fosse efetivamente realizado, mas, certamente, a ausência dessa discussão na referência bibliográfica de Adelson Brüggemann não desmerece sua importante pesquisa.
A monografia de final de curso de graduação em História defendida na UDESC por Adelson Brüggemann, publicada em 2008 em livro pela editora da UFSC, contribui definitivamente para a compreensão da formação territorial catarinense. Pode ser muito bem utilizado em estudos históricos de apropriação de bens comuns/ recursos naturais, assim como no estabelecimento de fronteiras, história do espacial da constituição das Capitanias, Províncias e Estados da América portuguesa e do Brasil. Aos estudos da história ecológica e história ambiental, o papel central que os caminhos exerceram, como forma e meio de ampliar controle de locais, criação de toponímias e prática que exauriu e degradou ambientes. A sobreposição de uma territorialidade com predomínio de caminhos também pode ser lida como uma imposição à territorialidade indígena pré-existente, temas que tornam bastante amplo o número de possíveis interessados nesse livro. Outras discussões a respeito da integração, da competição em conquistar centralidade e ser capital do Estado entre Lages e Florianópolis recebem, nesse livro, boa base de inspiração, bem como de interessados no regionalismo catarinense. É um livro de geo-história que mergulhou profundamente na formação do que se poderia nominar como genealogia do deslocar-se e das logísticas.
Se o caminhar se faz caminhando, a permanência de um caminho se faz pelos seus usos e transformações. Já, a compreensão do papel e existência dos caminhos, ao longo do tempo, é feita pela história; é assim que fez Adelson Brüggemann, transportando-nos para outras épocas, a fim de entender que essa estrada não foi sempre assim, “nem sempre existiu” e sua gênese faz parte de uma conjuntura particular e específica que, mais do que ser lembrada, merece ser visitada e lida, através dessas letras que podem nos levar ao poente de uma serra que já foi muito mais difícil de acessar.
Referências
HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da Formação Territorial do Brasil: o território colonial no ‘longo do século XVI’. São Paulo: Hucitec, 2000.
SALOMON, Marlon. O saber do espaço. Ensaio sobre a geografização do espaço em Santa Catarina no século XIX. Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas/CFH, Tese Doutorado em História, 2002. Florianópolis.
Resenhista
Andre Souza Marinello – Mestre em História pela UFSC. Doutorando em Geografia Humana pela USP.
Referências desta Resenha
BRÜGGEMANN, Adelson André. Ao poente da Serra Geral: a abertura de um caminho entre as capitanias de Santa Catarina e São Paulo no final do século XVIII. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008. Resenha de: MARINELLO, Andre Souza. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 12, n. 1, p. 157-161, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]
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