GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014. Resenha de: KNACK, Eduardo Roberto João. Em diálogo com as Ciências Sociais. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 361-369, dez. 2016.
O livro organizado pela Professora Doutora em Antropologia Paula Godinho, da Universidade Nova de Lisboa/Instituto de História Contemporânea, Antropologia e Performance – Agir, Atuar, e Exibir, publicado pela Editora 100Luz em 2014, permite, além de conhecer pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento nas ciências sociais em Portugal (tendo como tema principal a performance), estabelecer um diálogo profícuo, teórico e prático, com a pesquisa em história. Inicialmente, é importante apresentar algumas considerações sobre o conceito performance e os temas desenvolvidos nos capítulos da obra.
Para Godinho, […] a relação entre a ação, a atuação e a encenação são o fulcro desse livro, que trata de performances, de ritos, de jogos e de quem os realiza e realizou, indagando passagens rápidas ou lentas, tempos e espaços de fronteira (GODINHO, 2014, p. 11).
Momentos que devem ser pensados com um rigor crítico que acabou se esvaindo dos estudos sobre esse tema. Eis uma primeira ponte erguida entre história e antropologia. A autora faz questão de contextualizar historicamente os sujeitos e grupos estudados, pois as práticas em foco ocorrem no presente, que “é histórico, resultado de um processo”, ou seja, não é possível estudar a performance, a ação e atuação de indivíduos e/ou grupos sem levar em consideração sua historicidade e como suas práticas vão se (re)significando ao longo do tempo.
As performances são encaradas como uma atuação que requer algum tipo de palco e uma audiência, apresentando uma dimensão espetacular, com “[…] atores e espectadores que se interlegitimam, tendendo a constituir uma forma de escrutinar o mundo quotidiano, visto como tragédia, comédia, melodrama, etc.” (GODINHO, 2014, p. 14). Essas performances estão presentes nos diferentes grupos sociais, entre “dominantes e dominados”. Ao introduzir a noção de “dialética do disfarce e da vigilância”, que permeia a relação de forças entre dois grupos, é utilizada a tipologia dos “discursos públicos”, que vão ao encontro das visões hegemônicas, que capitulam frente a seus interesses e valores, e a performance exerce papel chave na sua legitimação e dos “discursos escondidos” (SCOTT, 2013), que tem certa liberdade de ação, podendo contradizer e até ridicularizar os dominantes.
A partir dessas considerações iniciais, a obra está dividida em três partes. A primeira apresenta alguns textos que buscam delinear uma “antropologia da performance”, com o subtítulo: Antropologia e performance( s): atuar, encenar, exibir. O primeiro capítulo dessa primeira parte do livro, intitulado For years, I have dreamed of a liberated Anthropology, de Teresa Fradique, indaga sobre a definição do conceito de performance a partir de elementos que lhe seriam próprios, como a participação, a ação e o estranhamento, que estão presentes na própria prática, no comportamento do antropólogo. Assim, emerge a defesa de uma etnografia como experiência subjetiva sem que isso venha a solapar a antropologia enquanto área das ciências sociais e humanas. Embora essas considerações resultem de uma reflexão sobre a prática de uma área vizinha, a questão da subjetividade na pesquisa em história é importante, envolvendo o papel das instituições que legitimam a própria prática, o fazer da história e a dinâmica acadêmica, a partir do estímulo à apresentação dessas pesquisas aos pares, o que envolve performance (apresentação) e audiência.
O próximo capítulo da primeira parte é A dimensão reflexiva do corpo em ação: contributos da antropologia para o estudo da dança teatral, de Mario José Fazenda. Além de empreender uma revisão da literatura de autores que trabalharam com o seu objeto, busca observar a dança teatral em uma perspectiva histórica, entendida como uma ação social, simbólica enquanto sistema de significações dos seres humanos que não é mero reflexo da cultura, mas uma prática cultural construída pelos corpos em movimento. O capítulo A política do jogo dramático: marginalidade descentrada como resistência criativa (estudo de um grupo de teatro universitário), de Ricardo Seiça Salgado, se debruça sobre a história de um grupo teatral, o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), para pensar o conceito de “jogo dramático” como propulsor de mudanças na arte e na sociedade.
No capítulo Práticas artísticas contemporâneas: imaginação e exibição da nação, Sónia Vespeira de Almeida relaciona os conceitos de prática artística e performance, associados a maneiras de fazer e à criatividade cultural dos grupos sociais. Sua análise volta-se para uma exposição realizada em um museu e no trabalho de dois artistas de gerações diferentes, concluindo que as práticas de arte, enquanto modos de comunicação, articulam a capacidade de significar, construir e exibir a subjetividade dos sujeitos. No último texto da primeira parte, Metateatro da morte: as encomendadoras das almas numa aldeia da Beira Baixa, Pedro Antunes e João Edral centram sua análise em um ritual de culto dos mortos realizado durante a quaresma em aldeias de Portugal, onde segundo os autores, as práticas e discursos de uma religiosidade popular são indissociáveis de ações performativas e políticas.
A segunda parte do livro, O lugar do político: memória, ação e drama social, inicia com o capítulo Os ataques anticlericais na I República (1910-1917): historiografia, violência e performance, de Diogo Duarte, que estuda as ações que envolveram a danificação, destruição ou mesmo uso profano de objetos religiosos em um contexto de transformação nas relações entre Estado e Igreja em Portugal. Processo que tem início com o governo do Marquês de Pombal, mas atinge seu auge na implantação da República a 5 de outubro de 1910. Seu olhar recaí sobre a performance desses atos como reveladora de intenções políticas e/ou provocadoras, e não apenas servindo a interesses superiores, muitas vezes alheios aos sujeitos que os praticaram. Em A performance do viver clandestino, segundo texto dessa parte do livro, Cristina Nogueira observa, durante o fascismo português, uma cultura política da clandestinidade comunista, com diferentes regras a serem cumpridas que alteravam o comportamento dos sujeitos, obrigando-os a assumir uma nova forma de ser, através da criação de um papel a ser representado, o que envolve viver em uma permanente performance.
Paula Godinho escreve o capítulo A violência do olvido e os usos políticos do passado: lugares de memória, tempo liminar e drama social, no qual realiza um estudo sobre três momentos onde o passado é evocado a partir da construção de placas comemorativas, rompendo silêncios e omissões por parte de grupos dominantes, como aquele em que uma placa foi colocada, em 1996, em uma aldeia de Cambedo da Raia, zona fronteiriça que sofreu com a repressão por ter abrigado fugitivos do franquismo; em 2012 um monumento foi erguido em Ourense, para lembrar as vítimas portuguesas do franquismo na Galiza; e, ainda em 2012, o descerramento de uma placa de homenagem a trabalhadores portugueses que construíram a estrada de ferro Zamora e Ourense. Ao observar essas cerimônias, conclui a autora que existe a necessidade de rememorar, comemorar, para ultrapassar o trauma deixado pelas feridas da repressão de regimes autoritários nas localidades analisadas.
Elsa Peralta também se dedica à análise de monumentos com o capítulo O Monumento aos Combatentes: a Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação. Partindo da ideia de que cemitérios e cultos dos mortos constituem representações simbólicas da ordem social dos grupos envolvidos, Peralta pesquisa o Monumento aos Combatentes do Ultramar nas guerras coloniais em que o regime português se envolveu entre 1961 e 1975. Tal monumento teria sido erguido em nome da normalização da ordem social partindo de uma associação própria dos combatentes e de seu ressentimento, ao observar a opinião pública oscilar entre posições contrárias e a favor das guerras e de suas ações nesse contexto. O último capítulo da segunda parte, Teatro de amadores em Almada: performance e espoir em tempo de Revolução, de Dulce Simões, observa um grupo de teatro amador, o TACA (Teatro de Animação Cultural de Almada), formado por estudantes das escolas técnicas de Almada entre 1974-1976. A autora conclui que as companhias teatrais, nesse momento, aparecem como uma força representativa de opções políticos-ideológicas diferentes que emergiram com uma descentralização do teatro promovido pelo processo revolucionário.
Fazer teatro era participar das transformações sociais e políticas significativas que estavam em curso em Portugal, e a performance desses sujeitos produziam significados que circulavam com força na sociedade.
A terceira e última parte do livro, Homo Performans: entre ação e atuação, começa com o texto de Sónia Ferreira, “Magazine Contacto”: Media e Performance na Construção da Identidade Nacional, onde a autora analisa um programa televisivo sobre comunidades portuguesas na diáspora enquanto prática performativa.
O capítulo de Nuno Domingos, Boxe e Performance: Lisboa, anos quarenta, busca interpretar o jogo, o boxe em particular, enquanto performance histórica, percebendo as atividades desportivas como espaços de intenção normativos, em constante disputa e negociação pela própria linguagem performativa que legitima modos de agir no cotidiano. Xerardo Pereiro e Cebaldo León escrevem o capítulo Turismo e performances culturais: uma visão antropológica do turismo indígena onde observam como o turismo indígena guna do Panamá recria espaços sociais e culturais através de práticas performativas, buscando analisar todos os envolvidos nesse turismo controlado, desde os gestores, até os serviços oferecidos aos sujeitos que desempenham, recriam performances ritualísticas para os turistas.
Maria Alice Samara, no capítulo Outras cidades: as cooperativas e a resistência cultura no final do Estado Novo, busca identificar modos de vida alternativos e sociabilidades comunitárias de grupos que lutavam contra o regime ditatorial, assim analisa algumas cooperativas culturais na grande Lisboa como a Pragma (Cooperativa de Difusão Cultural de Acção Comunitária) criada em 1964, a Devir Expansão do Livro, de 1969 e a Livrelco, do início de 1960.
O último capítulo, Vidas e performances no lúdico de Ana Piedade, apresenta suas considerações a partir de um trabalho realizado ao longo de vários anos na localidade de Lavradio, em Portugal. A autora reflete sobre o papel da memória na reprodução do gesto lúdico e como o lúdico (entendendo o jogo como prática ritual, como performance) se constitui como memória, “culturalizando” tempos e espaços vividos na infância.
A obra demonstra com clareza que as performances não são apenas simples reflexos ou mesmo expressões de uma cultura, mas são elas mesmas agentes ativos de mudanças (TURNER, 1988, p.
24). A referência a Turner não é mero acaso, pois se trata de um dos autores citados com recorrência nos diferentes capítulos descritos acima. Juntamente com Schechner (2003), baliza as fundamentações sobre o principal conceito/tema tratado – performance. Para Schechner: The phenomena called either/all ‘drama’, ‘theater’, ‘performance’ occur among all the world’s peoples and date back as far as historians, archeologists, and anthropologists can go (SCHECHNER, 2003, p. 66).
Em síntese, fazem parte da existência humana. Soma-se a esta contribuição de caráter geral e legitimador do estudo da performance as noções de “Drama”, “Script”, “Theater” e “Perfomance” (SCHECHNER, 2003, p. 71).
Drama pode ser entendido como o domínio dos autores de uma prática/produção, o srcipt como domínio daqueles que ensinam, theater aparece como a atuação daqueles que desempenham as performances, e a performance adentra no domínio da audiência. É claro que um indivíduo pode realizar mais de uma dessas funções, mas essas definições permitem, metodologicamente, observar todo o trabalho realizado em torno de uma performance em diferentes grupos e cenários culturais, como bem demonstram os temas abordados no decorrer do livro. As próprias danças e demais atividades teatrais, as práticas artísticas levadas a cabo por grupos que visam construir/legitimar identidades nacionais, rituais populares, as encenações que envolvem inaugurações de monumentos, a movimentação dos corpos, práticas esportivas, enfim, uma variedade de atividades desempenhadas em público podem ser pensadas, analisadas a partir das contribuições de Schechner.
Turner (1988, p. 25) contribui com a autonomização da noção de “liminality”, que caracteriza a fronteira de um ritual, de uma performance, “[…] entre um antes (de que nos desfazemos, purificando- nos) e um depois, em que nos reagregamos” (GODINHO, 2014, p. 12). A liminaridade constitui, portanto, uma espécie de ápice das práticas performativas, permitindo observar como elas mudam os sujeitos e/ou grupos que participam, seja como atores ou como audiência. Outro autor que está presente nas discussões no transcorrer da obra é James C. Scott (2013) e a formulação dos conceitos “discurso público” e “discurso oculto”. Os discursos públicos designam “[…] as relações explícitas entre os subordinados e os detentores do poder”, e o discurso oculto é aquele que ocorre nos bastidores, “[…] fora do campo de observação directa dos detentores do poder” (SCOTT, 2013, p. 28, p. 31).
Dentre os diálogos possíveis com a história que a obra Antropologia e Performance pode trazer, sua aproximação fundamental está na própria base da pesquisa. A crítica das fontes, dos documentos produzidos por sujeitos e grupos no passado, pode ser concebida, em muitos casos, como uma prática performativa, as próprias fontes, muitas vezes, são produzidas em virtude de práticas culturais, ritualísticas e performáticas. A sociedade política é permeada de ritualizações que envolvem produções documentais. A imprensa, seja escrita, falada ou televisionada, também é marcada por essa dimensão performativa. Assim, levar em consideração as diversas performances envolvidas na produção de documentos analisados pelos historiadores pode revelar traços importantes dos modos de ser, agir e pensar de determinados grupos. A própria performance é carregada de uma historicidade particular, o que abre outro diálogo possível com a antropologia.
Pesquisar a historicidade das práticas performativas pode revelar mudanças profundas não apenas nos rituais, festividades, jogos, etc., mas transformações importantes pelas quais as sociedades passaram, alterando, ou estruturando, o cotidiano vivido dos indivíduos. Também é importante pensar nas relações de poder que envolvem as performances, pois se há um “drama”, um “script”, agentes que organizam, desempenham e muitas vezes se apropriam dessas práticas, há uma audiência, que não permanece imobilizada, mas também se envolve, e em certas ocasiões passando à condição de organizadores, em um processo dinâmico de (re)construção das práticas performáticas. A noção de discurso público e discurso oculto também abre portas para os historiadores, que devem buscar mais do que a produção de uma massa documental e de um investimento material e simbólico em representações de grupos que figuram como elites em determinado contexto. Mas há, mesmo entre as elites, discursos ocultos que ocorrem fora do palco (o mesmo ocorre com os grupos subalternos) que podem ser percebidos ao se aproximar o olhar para as performances, especialmente em seus momentos liminares. Dessa forma, a leitura da obra proporciona um diálogo profícuo entre historiadores, antropólogos e demais pesquisadores das ciências sociais, abrindo horizontes e possibilidades de estudos interdisciplinares.
Referências
GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014.
SCHECHNER, Richard. Performance Theory. London: Routledge, 2003.
SCOTT, James C. A dominação e arte da resistência: Discursos Ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.
TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications, 1988.
Eduardo Roberto Jordão Knack – Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Pós-Doutorando na Universidade Federal de Pelotas – UFPel.
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