LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.
O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, técnicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, correspondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.
Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apresentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Roquette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.
Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avanços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.
Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.
Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cientista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desempenhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica. Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas marcas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de transição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “positivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte. Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Ferreira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino superior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de geração de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Euclides, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.
Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coimbra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova República – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pelas elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.
Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mestiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discussão o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.
É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movimentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.
Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substituta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restritivos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, conceito de problemática definição.
A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Segunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japoneses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.
A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia andou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também foram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gostosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.
Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Massarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contribuição ao uso educativo do cinema.
Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a transcrição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consultadas e citadas. Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contaminação com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de leitura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descaminhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomodação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as organizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.
Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideológicas de seu tempo? O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em momento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ainda, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).
Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.
Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educador. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.
Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ricas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positivismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.
Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Romantismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escravatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos persistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagando alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.
Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo conceito problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, enquanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.
José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
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