LEÓN, María Antonia García de; FÍGARES, María Dolores Fernández. Antropólogas, politólogas y sociólogas (género, biografia y cc. sociales). Madrid (España): Plaza y Valdés S. L., 2008. 256 p. Resenha de PAULILO, Maria Ignez. Feminismo e disputas pela memória na Espanha. Revista Estudos Feministas v.18 n.3 Florianópolis Sept./Dec. 2010.
As últimas décadas do século XX colocaram em pauta o instante, o presente em contraposição ao “império do passado”. Contudo, as mesmas décadas que evidenciaram a dissolução do passado e sua celebração também trouxeram com força a expansão memorialística, com suas museificações e institucionalização de passados-espetáculos,1 e, no campo das relações sociais, as disputas pelas memórias. O passado e seus usos, bem como a construção dos acontecimentos e a institucionalização de algumas memórias em detrimento de outras passaram a ser importantes para diferentes grupos. Sobre isso Pierre Nora já chamava a atenção em 1978, dando conta de que o esfacelamento, a mundialização, o aceleramento e sua democratização, chaves para o entendimento do “breve século XX”, multiplicaram as memórias coletivas, os grupos sociais preocupados em preservar ou recuperar seus próprios passados.2 Essa preocupação com o passado, com a construção de uma memória para as mulheres feministas espanholas, parece ser o eixo central por onde se distribuem as questões e as discussões do livro Antropólogas, politólogas y sociólogas (género, biografia y cc. sociales), das autoras espanholas María Antonia García de León e María Dolores Fernández Fígares.
E esse, a nosso ver, constitui um dos principais motivos para apresentarmos esta obra às feministas brasileiras (e também aos feministas, convém não esquecer). É que esse tipo de preocupação não é comum no Brasil, ou seja, ver a importância heurística que tem a biografia das estudiosas feministas para compreendermos sua própria obra e o contexto em que foi escrita. Mas há uma importância mais primária: fazê-las aparecer como protagonistas na história da humanidade, pois, se dependêssemos da história e da imprensa oficiais, elas seriam esquecidas. Como diz Marina Subirats, autora do prólogo,3 poder e memória são inseparáveis e sem poder não se pode criar e legitimar um novo relato, uma nova maneira de ver a posição das mulheres no mundo. E sem memória fica difícil cumprir uma das principais etapas do pensamento científico crítico “a reflexividade”, à qual as autoras dão grande importância na medida em que sentem falta, na Espanha, de mentores que façam esse trabalho de apreciação, avaliação e ancoragem do conhecimento que está sendo produzido.
As autoras se inspiram na tradição dos países de língua anglo-saxã, principalmente os Estados Unidos, onde se sobressai a importância dada aos relatos biográficos como um procedimento metodológico e epistemológico relevante para a compreensão do processo de conhecimento, com o intuito de reintegrar o que foi desintegrado: produção intelectual e vida. Ou seja, para compreendermos como está sendo construído o conhecimento feminista, é importante que saibamos quem o está construindo e como. Ao usar esse procedimento, as autoras levam em conta as críticas de Pierre Bourdieu e Norbert Elias, que alertam para a importância da inserção social dos biografados e de não vê-los como seres especiais e isolados. Isso não implica negar a existência de obras exemplares que mereceram a atenção das autoras.
Por ser esse tipo de estudo raro na Espanha, bem como em muitos outros países, entre eles o Brasil, o pioneirismo do livro a ser apresentado dificulta a elaboração de uma resenha por três motivos.
Primeiro, o documento se constitui parte de uma investigação maior à qual as autoras se remetem inúmeras vezes. As discussões presentes no livro são resultado do projeto de pesquisa ‘I+D’,4 desenvolvido entre os anos de 2005 e 2007 por uma equipe de investigação interdisciplinar coordenada por María Antonia García de León, professora de Sociologia na Faculdade de Educação da Universidad Complutense de Madrid. A investigação resultou em cinco volumes de entrevistas transcritas, nem todas incorporadas ao livro por razões óbvias, afinal são mais de 1.500 páginas escritas. De todo modo, para aqueles que tiverem interesse, os volumes estão classificados (dois para a história,5 um para as ciências políticas e a sociologia, outro para a antropologia e o último, com um caráter interdisciplinar, é dedicado a especialistas em estudos de gênero provenientes de outras disciplinas) e depositados nos arquivos do Instituto da Mulher, em Madri.6
Segundo, por não ser uma pesquisa de caráter tradicional, as fontes tiveram que praticamente ser criadas, ou seja, foi preciso transformar estatísticas incompletas e, além do mais, elaboradas com outros fins em informações utilizáveis e confiáveis, o que obrigou as pesquisadoras a constantemente terem que alertar os leitores sobre os limites de abrangência das interpretações possíveis.
E, terceiro, somem-se a isso a quase impossibilidade de se encontrarem bibliografias prontas e, dada a ausência de tradição nesse sentido, a dificuldade de criar um ambiente acadêmico favorável à realização de entrevistas que exigem grande disposição, por parte das pessoas contatadas, de desvelamento de sua vida pessoal e que requerem, ao mesmo tempo, um esforço em não se deterem apenas em sua fase de mujer, mas relacioná-la com sua fase de científica. Não deve ser à toa que as mulheres tardam dez anos mais que os homens para obter uma cátedra. É interessante que o mesmo acontece no Brasil com as bolsas de produtividade do CNPq.7 O livro é mais rico pelas interrogações que faz e pelas perspectivas de novas pesquisas que abre do que pelas considerações finais, como ressaltam as próprias autoras. Por essas três razões, optamos por não fazer uma resenha convencional, mas por chamar a atenção para os aspectos mais inovadores e significativos da obra.
Toda pesquisa tem seus limites (não se pode estudar tudo), mas é preciso explicitá-los. Por que escolheram os quatro campos: antropologia, história, política e sociologia? Porque são campos afins, convivem no mesmo espaço acadêmico e, o que é mais relevante, conseguiram formar e consolidar equipes de pesquisa voltadas para as questões feministas, apesar de os estudos de gênero serem um campo relativamente recente na Espanha, menos de 30 anos. É preciso sempre se lembrar do papel do franquismo com vistas a dificultar o desenvolvimento das ciências humanas no país, principalmente o de suas correntes mais inovadoras e críticas. Outro limite é a impossibilidade de dar conta de grande número de autores e obras, por isso as autoras têm o cuidado de apresentar longos levantamentos bibliográficos.
As autoras preocupam-se também em explicitar sua relação com o pós-modernismo, colocando-se mais em uma relação de diálogo com essa corrente do que numa postura de submissão ou rejeição. Para elas, pós-modernismo e feminismo se entrelaçam de forma positiva, dada a valorização que as duas correntes dão à subjetividade. Nesse sentido, a domesticidade das mulheres, base da formulação de que “o pessoal é político”, torna-se uma fonte de desconstrução e, portanto, de crítica ao conhecimento estritamente acadêmico.
As conclusões são de dois tipos: com relação aos agentes e com relação aos produtos. Com relação aos agentes, temos: a) as ciências sociais ainda possuem uma comunidade acadêmica frágil que precisa se fortalecer; b) essa fragilidade ainda é maior no campo dos estudos de gênero por causa da difícil relação das mulheres em lidar com o poder e sua fraca identidade pública; c) os estudos de gênero permanecem em grande parte à margem das estruturas de poder acadêmicas; d) faltam “rituais de transmissão” que conservem os avanços alcançados; e) os rituais de transmissão são dificultados por falta de “massa crítica”, pois especialistas acadêmicos nos temas de gênero ainda são fenômenos isolados e não contam com equipes bem estruturadas e com forte apoio coletivo dentro das academias; f) pelo fato de essa área de estudo ser fracamente estruturada, há um “efeito eclipsador”, ou seja, cria-se uma inércia que leva a que se delegue o avanço do conhecimento a alguns nomes emblemáticos; g) o interesse pelos estudos de gênero não tem sido transmitido para as novas gerações; h) é preciso que se criem mecanismos como associações, congressos etc. para que se possa passar do conhecimento acumulado à ação; e i) é preciso reforçar uma identidade coletiva de gênero, sem a qual não há empoderamento.
Com relação aos produtos dos estudos de gênero, temos: a) dado o pequeno espaço de tempo entre o surgimento dos estudos de gênero e o presente, o avanço desse campo de conhecimento pode ser considerado “enorme”; b) essa área conseguiu significativa inserção nas ciências sociais; e c) com relação às carências dentro do campo das ciências sociais, pode-se dizer que falta depurar e fazer um balanço crítico do que já foi produzido; é preciso ter claro que os estudos de gênero tanto podem trazer propostas políticas de mudança quanto propor avanços dentro do establishment, sendo ambas as correntes benéficas; e falta reflexividade no sentido de apurar a crítica.
As autoras fazem também importantes recomendações para novas perspectivas de pesquisa e ação: a) criar estudos mais especializados e menos genéricos que fragmentem o campo e fujam da superficialidade; b) potencializar o grau de institucionalização dos estudos de gênero, criando cátedras e equipes de pesquisa, promovendo congressos, revistas, premiações, entre outros; c) criar associações profissionais específicas para especialistas em gênero; d) insistir em uma perspectiva geracional, ou seja, transmitir o conhecimento acumulado para os/as jovens e criar entre eles/as estímulos para novas adesões a essa área de estudos; e) desenvolver o enfoque biográfico; f) desenvolver instrumentos úteis com dicionários especializados; e g) legitimar cada vez mais essa área de estudo.
A necessidade do relato e da construção de uma memória nesse relato emerge de um campo em disputas, disputas sobre o que se lembrar das diferentes lutas travadas pelas mulheres na Espanha, no século XX. Essa necessidade seria irrenunciável, visto que as mulheres que contaram suas histórias parecem lutar contra certa “conspiração do esquecimento”. Ante a pergunta sobre o que acontecerá com as memórias das mulheres feministas na Espanha depois que morrerem (feita por María Antonia), Marina Subirats conta sobre uma exposição fotográfica organizada para lembrar as eleições espanholas de 1977 em que se constatou a ausência das mulheres nas fotos expostas. Aquelas que apareciam estavam sem nomes, misturadas à multidão, quase esquecidas em suas manifestações nas ruas, em frente às fábricas. Elas não estavam nas mesas de negociações, nas quais estavam os homens, os futuros políticos da democracia. Das mulheres que também estavam lá, nenhuma foi representada. Para Marina Subirats, aqueles/as que nasceram depois de 1975 e virem essas fotos saberão que não houve mulheres lutando pela democracia. E isso não será um prejuízo, apenas uma constatação, dado que os testemunhos gráficos, as fotografias, comprovam que elas não estavam lá. “Así que aún no hemos muerto, pero ya hemos sido borradas, de La historia” (prólogo). É contra essa politica do esquecimento que estaria em curso na Espanha certo antimemorialismo de gênero em que as questões que tangenciam as análises e as reflexões das autoras se apoiam: o que está em disputa é a construção e legitimação de uma memória coletiva em que estejam alocadas as mulheres, suas lutas e história.
Notas
1 Beatriz SARLO, 2007.
2 Pierre NORA citado por Jacques LE GOFF et al., 1989.
3 Prólogo da publicação espanhola, objeto desta resenha, mas há também uma publicação mexicana.
4 I+D é a sigla de investigação e desenvolvimento. A sigla identifica projetos de grande porte que disputam linhas de financiamento bastante competitivas na Espanha. A pesquisa que resultou na publicação do livro foi financiada pelo Instituto da Mulher, sediado em Madri.
5 Na versão impressa foi excluído o capítulo sobre as historiadoras, escrito pela professora Pilar Pérez Fuentes, disponível apenas na versão on-line.
6 Os resultados completos da pesquisa estão disponíveis no endereço <http://www.migualdad.es/mujer/mujeres/estud_inves/776.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2010.
7 Apenas para ilustrar a grande desigualdade de distribuição de bolsas de produtividade do CNPq entre homens e mulheres, pegamos os dados relativos ao ano de 2008. Nesse ano os homens receberam 6.637 bolsas de produtividade, enquanto as mulheres apenas 3.395. Informações disponíveis em: <http://www.cnpq.br/estatisticas/bolsas/sexo.htm>. Acesso em: 12 fev. 2010.
Referências
LE GOFF, Jacques et al. A nova história. Tradução de Ana Maria Bessa. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989. [ Links ]
SARLO, Beatriz. O tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. [ Links ]
Cristiani Bereta da Silva – Universidade do Estado de Santa Catarina.
Maria Ignez Silveira Paulilo – Universidade Federal de Santa Catarina.
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