Anos 70: Trajetórias | Antônio Risério, Maria C. M. Freire e Maria Rita Kehl

Resultado de um evento multidisciplinar realizado em São Paulo durante os meses de outubro de 2001 a janeiro de 2002, o livro Anos 70: Trajetórias compõe-se de 18 ensaios sobre a década de 1970, no Brasil, divididos em sete blocos temáticos, reunindo os seguintes autores: Nicolau Sevcenko, Antonio Risério, Maria Rita Khel e Cláudio Novaes Pinto Coelho falam sobre “Cultura e Contracultura”; Esther Hamburger, Silvia Borelli e Waldenyr Caldas, sobre “Comunicação e Indústria Cultural”; o debate sobre Literatura reuniu João Adolfo Hansen, Waly Salomão e Carlos A. Messeder Pereira; sobre “Artes Cênicas”, há os textos de Dulce Aquino, Luiz Carlos Maciel e Luiz Fernando Ramos; Luiz Tatit e Marcos Napolitano escrevem sobre “Música”; Paulo Sérgio Duarte e Cristina Freire, sobre “Artes Visuais”; e Daniel Revah, sobre “Educação”.

Como diz a apresentação do livro, os autores convidados viveram os anos 70, e seus textos, portanto, constituem, ao mesmo tempo, o relato pessoal dessa experiência e uma reflexão histórica sobre o período, buscando dar voz à pluralidade sem a preocupação de síntese. De fato, a variedade dos temas e autores favorece o interesse de leitores provenientes de distintas áreas de atuação, como permite também uma visão não unificada sobre o período em foco.

Para a maioria dos autores, os “anos 70” constituem uma “longa década”, que teve início em 1968, após os acontecimentos de maio, no mundo, e, no caso do Brasil, com o decreto do Ato Institucional n. 5 (AI-5), em dezembro, quando a ditadura se instala como tempo de horror (os “anos de chumbo”), até o fim do governo do general Emilio Garrastazu Médici, em 1974, o início do período da distensão, com a Lei da Anistia, em 1979, encerrando-se, apenas, em 1984.

Não sendo viável sumarizar os 18 textos reunidos, essa resenha propõe destacar alguns dos principais elementos presentes nas discussões, como: a) o debate sobre o termo “anos 70”; b) a simultaneidade de três circuitos: o da esquerda, o das vanguardas e o da indústria cultural; c) o dilema entre interdição e transgressão e d) a dicotomia entre arte efêmera x realidade midiática.

A ETIQUETA “ANOS 70”

Como contar a história dos anos 70 do século XX? Como capturar o fervor do momento, suas contradições e convulsões, pelo discurso que vem após? Como produzir a escrita dos acontecimentos? Pode-se começar pela indagação sobre a própria denominação “Anos 70”, e alguns dos textos aqui reunidos a questionam. Para Paulo Sérgio Duarte, por exemplo, a prática de fazer história com base em uma periodização por décadas seria um “vício pedagógico” (p. 134), característico do ensino da arte moderna e contemporânea. Já o texto de João Adolfo Hansen (“Pra falar das flores”) pontua de modo preciso: há várias durações presentes num mesmo tempo, por isso não se deve ler a etiqueta “anos 70” como uma uniformidade, “como se nesse período tivesse existido uma unidade cultural, estética e ideológica. Não houve nenhuma” (p. 71). Neste mesmo sentido, e acentuando a diferença entre vivência e rememoração, Waly Salomão, poeta que incorporava, até sua morte em 2003 (aos 59 anos), por seu modo de gesticular, falar e escrever, a agitação característica daqueles anos 70, vai desdizendo ou desfazendo a fala do historiador da cultura e sua tentativa de sistematizar o período: “Acho que o artista tem até quase como uma imposição […] uma pulsão para a acronologia, para não se acomodar na gaveta anos 60 ou anos 70 ou anos 80 ou anos 90, nesse baú de ossos da cronologia” (p. 79). Sentindo-se, pois, deslocado na homenagem, como “um tiranossauro rex fugido do Museu de História Natural” (p. 77), Waly discute, no texto “Contradiscurso: do cultivo de uma dicção da diferença”, o que para ele é a “camisa-de-força” da denominação “anos 70” ou “poesia marginal”, questionando as classificações que a história da literatura produz ao uniformizar as diferenças: “eu me senti um fóssil; e eu me pretendo sempre um míssil” (p. 77). Sua fala e sua posição, pode-se dizer, são bastante características, justamente, das contestações e do pensamento produzidos nos “anos 70”.

Se Waly e Hansen pensam em termos de descontinuidade histórica, Nicolau Sevcenko, no texto “Configurando os anos 70: a imaginação no poder e a arte nas ruas”, situa-se como um historiador da cultura que pensa em longas durações, buscando a “gênese” dos anos 60/70 nas experiências estéticas revolucionárias, situadas na passagem do século XIX para o XX, com o surgimento dos artistas “boêmios” e as barricadas, atuantes até a forte repressão à Comuna de 1871. A partir daí, diz ele: “A latência revolucionária da cidade havia sido neutralizada e assim iria permanecer até maio de 1968” (p. 15). O que ele propõe, pois, é a “história do retorno da liberdade criativa reprimida pelo seu início” (p. 15).

Ainda sobre a questão temporal, para Carlos Alberto Messeder, no texto “A hora e a vez dos anos 70”, a década de 70 estaria em uma “meia distância”: “um tempo, simultaneamente, ainda muito próximo de nós […] e distante o suficiente […] para se apresentar como um ‘passado autêntico’” (p. 89). Essa “meia distância” talvez seja responsável pela estranha sensação simultânea de proximidade e, portanto, de continuidade, (como diz o texto de Antonio Risério, o feminismo, a ecologia e a valorização da cultura afro, no Brasil de hoje, nasceram com as atuações dos jovens nos anos 60), e, ao mesmo tempo, pela sensação de distanciamento total, como um outro mundo para sempre passado. Sobre este último aspecto, diz Hansen: “Hoje analisamos ‘os anos 70’ com base no ponto de vista do nosso conformismo neoliberal, que fala da cultura sem a política” (p. 71). Ou seja, naqueles anos ainda era possível pensar em mudança, transformação, revolução, enquanto, hoje, o futuro aparece bloqueado ou como um horizonte aterrorizante de fim de mundo, assim como a idéia de “cair fora” do sistema (drop out), que alimentou tantas mentes e corpos, hoje aparece na sua impossibilidade. É por isso também que Hansen finaliza seu texto aludindo aos resquícios dos anos 70, já tornados ruína para aqueles que os vivenciaram de perto:

Foi ingênuo, romântico, jovem? Foi tudo isso. Foi principalmente bonito, mas acabou. Hoje é uma ruína pré-histórica […] mas não se deve esquecê-la. […] Do positivo de sua contradição, valeria a pena lembrar que era generoso e tinha uma alegria feroz de resistência que perdemos desde os anos 80 (p. 76).

OS TRÊS GRANDES CIRCUITOS

O segundo ponto a ser destacado é o da convivência de três circuitos simultâneos, identificados por Marcos Napolitano (no texto “MPB: Totem-tabu da vida musical brasileira”), como sendo: 1) o nacional-popular engajado, ligado à esquerda ortodoxa; 2) o circuito alternativo, das vanguardas e subculturas jovens pós-68; e 3) o circuito da indústria cultural (editorial, fonográfica e televisual). Se, naquele momento, a literatura ainda ditava a alta cultura nos periódicos, e dividia-se no embate entre as neovanguardas (preocupadas com a forma, a forma, a forma), a poesia dos Centros Populares de Cultura, (voltados para o conteúdo, o conteúdo, o conteúdo), e a chamada “geração mimeógrafo”, que valorizava a espontaneidade e o coloquial, a indústria do disco e da TV obrigava a “deslocar o ouvido, alterava a percepção, produzia outro corpo” (p. 74).

É na década de 70, justamente, que a televisão vai se firmar e se difundir, no Brasil. O texto de Esther Hamburger, “Teleficção nos anos 70: interpretação da nação”, dedica-se ao estudo das telenovelas, “carro-chefe” da indústria cultural e da mentalidade brasileira desde a estréia, em 1968, da novela Beto Rockfeller, seguida de Irmãos Coragem, de 1970/71, que mimetizava, em sua primeira cena, a cobertura esportiva, “em meio à explosão de nacionalismo que acompanhou as comemorações do tricampeonato de futebol” (p. 50), encerrando-se a década com Dancin’ Days, em 1979. O texto de Silvia Borelli, “Cultura brasileira: exclusões e simbioses”, lembra que a criação da Embratel, em 1965, dá início à formação das redes de transmissão, com o intuito de “integrar” diferentes regiões do país, sob patrocínio do governo militar. No campo da Educação, o texto de Daniel Revah historiciza duas vertentes principais: a educação proposta pelos movimentos sociais populares, nas periferias, e o sistema alternativo contracultural de classe média, sobretudo em São Paulo.

No entanto, é no campo da música que o tropicalismo vai conseguir unir os três circuitos, tendo representado a simbiose bem-sucedida entre os campos da alta cultura, da cultura de massa e da popular. Luiz Tatit o define como “música sem fronteiras rítmicas, históricas, geográficas ou ideológicas” (p. 121), e Hansen como “Baião pop na guitarra elétrica sertaneja” (p. 74), que produz dissonância capaz de unir experimentalismo e crítica social.

INTERDIÇÃO E TRANSGRESSÃO

O terceiro ponto a ser destacado versa sobre censura e transgressão: “Liberou geral, dizíamos já no fim de 1960, e o tempo era de total repressão”, diz Hansen (p. 75). Já Luiz Tatit, (em “A canção moderna”), lembra as “manobras criativas” de Chico Buarque em relação à censura: “Chico Buarque […] desenha uma melodia suspensa para encaminhar a pergunta brasileira da década: O que será que será?” (p. 123), e situa, em seu texto, através de um histórico dos festivais de música, o dilema entre os incluídos e os excluídos do mercado fonográfico. No bloco sobre “Artes Cênicas”, os textos de Dulce Aquino, “Anos 70, o Brasil e a dança”, de Luiz Carlos Maciel, “Teatro anos 70”, e de Luiz Fernando Ramos, “Trajetórias alternativas do Teatro brasileiro nos anos 70”, relembram a repressão violenta, que acaba, paradoxalmente, favorecendo a experimentação: uma vez censurados, muitos espetáculos eram “desconstruídos” e re-elaborados em linguagem que, hermética, passava pelos censores; como a criação coletiva e performática de grupos como o Ballet Stagium, o Teatro de Arena, o Oficina, e diretores como José Celso, Cacá Rosset, Antonio Bivar, Hamilton Vaz Pereira.

Cláudio Novaes Pinto Coelho, em “A contracultura: o outro lado da modernização autoritária”, discute a valorização da loucura naqueles anos, quando se propunha “o rompimento com a racionalidade como uma forma de dissidência social” (p. 42), reprimida seja pela prisão seja pelo internamento. Vale lembrar que o primeiro livro de Waly Salomão, (Me segura qu’eu vou dar um troço, de 1972), foi escrito durante sua prisão no Carandiru, assim como parte dos textos póstumos de Torquato Neto provém de seu internamento psiquiátrico. Nesse sentido, pode-se dizer que há uma mesma configuração do escritor e sua posição emblemática na sociedade, naqueles anos: a contestação comportamental e artística, a prisão ou o internamento, e, no caso de Torquato Neto, especificamente, o suicídio, que passará, como diz Waly Salomão, a direcionar as leituras da posteridade: “Penso muito naquilo que Cioran escreveu sobre Kleist – e Torquato tem muito disso –, que depois de morto se lê tudo como prefiguração do ato da morte, mas é estranhíssimo se a gente quiser que seja interessante” (p. 81), idéia que acentua a ambivalência, muitas vezes trágica, entre interdição e transgressão.

ARTE EFÊMERA X REALIDADE MIDIÁTICA

Por fim, como marca dos “anos 70” e sua significação hoje, importa destacar o confronto entre anti-arte e sociedade de espetáculo. No texto de N. Sevcenko, por exemplo, são interessantes as colocações sobre o movimento “Internacional Situacionista”, enquanto antecedente mais próximo dos acontecimentos de maio de 68 e da arte nos anos 70. Atuante a partir dos anos 50, o movimento propunha um projeto estético baseado no cotidiano, na cidade, nos nexos comunitários; contra o consumo, o individualismo, a publicidade e a Guerra Fria, através de “construções de situações”: toda obra devia ter uma dimensão coletiva, não entrar no mercado ou nas instituições, como anti-arte, que denuncia a lógica consumista do espetáculo. É justamente essa dicotomia que a década de 70 vai acentuar.

Assim, Maria Rita Khel, em “As duas décadas dos anos 70”, testemunha sua vivência como estudante universitária, morando em comunidade e experimentando as propostas da contracultura, no âmbito da vida privada. No entanto, para ela, a década se encerra quando percebe que os ideais da revolução sexual são apropriados pela propaganda, nos dizeres do anúncio da marca de jeans: “liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”, transformando, em 1981, os ideais então apregoados em mercadoria de moda.

No campo das Artes Visuais, o texto de Paulo Sérgio Duarte, “Anos 70 – a arte além da retina”, discute a diversificação dos suportes e meios que alteravam o regime de percepção, e identifica três vértices na arte: o dos materiais substantivados, o das relações entre arte e linguagem, e o corpo como suporte (body art). A obra não se enquadra mais como objeto de culto ou de fetiche, nem de consagração, por sua aparição efêmera, quando assume, por exemplo, a forma de um anúncio de jornal, ou a da degeneração e putrefação, em obras como o “Livro de Carne”, de Artur Barrio (um pedaço de carne animal seccionado e exposto à “leitura” e ao manuseio). O texto de Cristina Freire, “O presente-ausente da arte dos anos 70”, lembra que muitas obras encontram-se fora dos acervos públicos, pela precariedade mesma dos materiais e a efemeridade das propostas, só podendo ser vistas, hoje, por meio de reproduções fotográficas. Por isso, a sensação de perda de um referente e a idéia de “permanência de algo que definitivamente escapa” (p. 149).

Já o texto de Waldenyr Caldas, “Comunicação e indústria cultural”, discute as noções de “indústria cultural” e “cultura de massa”, a partir de Adorno, Benjamin, Baudrillard e Guy Debord, com realce para a oposição entre pensamento crítico, na arte, e homogeneidade sem complexidade, na mídia televisiva, com seu bombardeio de imagens. A forma efêmera das manifestações da arte, sua improvisação contestatória, opõe-se, por sua materialidade mesma, à padronização e “rarefação” produzidas pela mídia. O autor finaliza o texto dizendo que a experiência direta do mundo foi, cada vez mais, substituída pela visualização midiática total da imaginação, o que torna, hoje, tudo absolutamente sincrônico e contemporâneo, retomando-se assim, mais uma vez, o debate sobre a temporalidade e os modos possíveis de narrar a história.


Resenhista

Marília Librandi Rocha – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: marilialibrandi@uol.com.br


Referências desta Resenha

RISÉRIO, Antônio; FREIRE, Maria C. M.; KEHL, Maria Rita et al. Anos 70: Trajetórias. São Paulo: Iluminuras; Itaú Cultural, 2005. Resenha de: ROCHA, Marília Librandi. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 6, n. 1, p. 243-249, 2006. Acessar publicação original [DR]

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