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Angola: História/ Nação e Literatura (1975- 1985) | Silvio de Almeida Carvalho Filho

Não é de hoje que a História se aproxima da literatura. Há dez anos, Sandra Jatahy Pesavento, anunciava a (re)aproximação entre Clio e Calíope, musas da História e da poesia épica, respectivamente, que se associavam, mas não se confundiam. Segundo Pesavento, História e literatura correspondem a « narrativas explicativas do real », renovadas no tempo e no espaço e dotadas de uma permanente ancestralidade, na qual as linguagens escrita, oral, imagética, musical, aparecem como forma de expressar o mundo « do visto e do não visto » (2006, p.2). De fato, a escrita literária nos permite adentrar o universo do imaginário e a partir dele o campo das representações, todavia, logo de início, Silvio Carvalho nos avisa: « aquele que escreve é um ser histórico e, como tal, dever ser analisada a sua escritura » (2016, p. 26).

E Silvio Carvalho definitivamente é um ser histórico. Sua obra, fruto de uma vida dedicada à pesquisa, vem coroar a trajetória de um historiador experiente, que se lança em busca do imaginário social sobre a nação angolana, construído a partir de uma nascente literatura nativa, assentada sobretudo nas relações políticas constituídas durante e imediatamente após a guerra de libertação colonial. Também se insere em um momento de desabrochar dos Estudos Africanos no Brasil e de profunda intersecção entre as duas áreas, em que pese o fato de autores africanos serem ainda pouco publicados pelas editoras brasileiras. Os estudos comparados em literatura de língua portuguesa, tem travado um profícuo e intenso debate com as diversas áreas das Ciências Humanas, e, as chamadas literaturas africanas, ampliaram sobremaneira a sua inserção no campo da História da África, como fontes primárias.

A obra de Silvio Carvalho, ora lançada pela Editora Primas, nos traz uma ampla análise da produção literária angolana, num período que vai do pós-independência em 1975, até a metade dos anos 80. Dessa forma, nos deparamos com um recorte temporal de 10 anos, em que o autor seleciona uma coletânea de 56 livros de um universo de 129 publicados naquele período. A independência proclamada pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em novembro de 1975 e o surgimento da União dos Escritores Angolanos (UEA), em dezembro daquele mesmo ano, são o marco do recorte temporal empreendido pelo autor, que nos leva até 1985, momento em que se realiza o 2º Congresso do MPLA. A UEA surge no bojo do processo final de consolidação da independência e da partidarização do movimento de libertação.

Carvalho faz da literatura sua principal fonte, mas como exímio historiador que é, não se atém somente a ela, e atinge um alto grau de análise acerca da formação da nação angolana, ao cruzar essa produção literária com uma volumosa gama de outras fontes impressas: Jornal de Angola, Diário de Luanda, Lavra & Oficina, Revista Novembro, entre outras, a fim de oferecer ao leitor, uma visão ampla de uma literatura comentada e disseminada por essa imprensa, mas também de processos que recuperam a História contemporânea de Angola.

A obra se divide em dez capítulos, densos, que compõem um todo coeso, mas que podem muito bem serem vistos separadamente, sobretudo os quatro primeiros, que nos oferecem um rico quadro histórico da colonização portuguesa. A violência da ação colonial empreendida em solo africano é examinada e recuperada através das fontes literárias, em consonância com uma ampla bibliografia, aludida pelo autor logo em seus agradecimentos. A divisão dos capítulos em tópicos que nomeadamente aludem às obras pesquisadas por Carvalho, trazem certa poesia e leveza à construção do texto, ao mesmo tempo em que aguçam a curiosidade do leitor com títulos sugestivos, como por exemplo: «Enganando os pretos »; « Onde uns são donos da riqueza outros […] da miséria» ; ou ainda, « Nem as torturas/nem as prisões/nem os campos de concentração/calaram a nossa voz”.

Em « Escrevo sempre como se comesse funji com as mãos », item do oitavo capítulo, « Por uma cultura plural e híbrida », Silvio aborda as representações pejorativas e estereotipadas dos africanos presentes nos textos produzidos pelo colonialismo: «primitivos», «selvagens», «bárbaros», «atrasados», «sem lei», «sem Deus», «sem política», epítetos que irão respaldar ideologicamente o Estatuto do Indigenato, e a sua contrapartida, literalmente impressa na defesa do resgate da «especificidade cultural do homem angolano» pelos escritores revolucionários (p. 266-267).

Carvalho destaca ainda neste interessante item, que poucos autores vivenciaram a África « profunda », privilegiando-se no mais das vezes, uma prosa e poesia de caráter eminentemente urbano. Exceção feita por Uanhenga Xitu, um ambundo que penetrou o universo cultural dos povos ovimbundos, conquistando a confiança dos anciões para contar suas estórias, e que também recuperou crenças e jogos tradicionais de seu povo em Bola com feitiço e Vozes na Sanzala.

A tradição também foi defendida por autores como Agostinho Neto, Henrique Abranches, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho, que, em detrimento de sua formação e forte influência urbana, se inspiraram nas populações campesinas, seja para defender o Direito Consuetudinário, como este último, seja para recapturar as crenças tradicionais do culto aos mortos, dos ritos de passagem, das relações com a natureza, tal como fez o primeiro presidente de Angola independente, ou ainda se apropriar de uma estética das canções africanas em suas poesias, como Barbeitos. Artes da escrita que fomentarão a formação de um sentido de pertença comum, que se solidificará no decorrer dos dez anos em que Silvio Carvalho analisa as suas fontes literárias.

Pepetela, Luandino Vieira, Rui Manuel, o próprio Uanhenga Xitu, Henrique Abranches, estão entre os autores responsáveis por gestar o ideal nacionalista no imaginário coletivo angolano. Os escritores desse período, foram em grande parte, militantes políticos ligados ao MPLA, talvez a organização que melhor estruturou um projeto nacional, segundo Carvalho, que lhes traça o perfil, constatando que esses escritores eram em sua maioria funcionários públicos com pouco acesso ao ensino superior, que jamais conseguiram viver às expensas de sua produção literária. Salvo raríssimas exceções, não conseguiram se profissionalizar.

Dois terços desses autores eram brancos ou mestiços, embora houvesse entre eles negros de renome, tal como Xitu, o fato é que o pouco acesso à escolarização forjou uma pequena elite letrada burguesa, oriunda das três maiores cidades angolanas: Luanda, Huambo e Lobito, uma região de forte influência de povos ambundos, que posteriormente vai inspirar a formação da «angolanidade» nacional. Esse fato, levou com que debatessem a premente questão racial sob a ótica do «racismo antibranco» que segundo Carvalho, transparece em diversas obras (p. 135). Tema polêmico, revelador das amplas possibilidades de descortinar-se a História de Angola através de sua pesquisa, uma vez que o autor nos fornece uma visão deste, e de outros temas, tais como as discussões ligadas ao gênero presentes nessa literatura.

Havia outros pontos em comum entre esses autores, os discursos giravam em torno da luta pela descolonização e do anti-imperialismo. Esses literatos, estiveram nas frentes de batalha anticolonial e sua escrita se encontra eivada pelas memórias da resistência. Antes, durante e depois, essa experiência influenciará as suas representações da nascente nação angolana. A presença de literatos em postos de auto comando, foi uma tônica dos países africanos em processo de descolonização dada a escassez de quadros, configurando-se, dessa forma, uma «íntima relação entre intelectualidade e poder» (CARVALHO FILHO, 2016, p. 45).

No tecer de sua obra, Carvalho mescla as análises literária e histórica com destreza, introduzindo o leitor à História recente de um país a pouco germinado, mas que guarda longevas e profundas relações com o Brasil, o que torna a sua obra ainda mais significativa do ponto de vista da historiografia sobre a África e enriquece um setor ainda carente de publicações produzidas por pesquisadores brasileiros. Os primeiros dez anos pós-independência, foram cruciais para a consolidação desse projeto, tocado por uma elite intelectual burguesa que se apropria das ideologias marxista-leninistas em suas prosas e versos, mas que não deixa de dialogar com a tradição, e que trilha um caminho rumo a um socialismo “desiludido”, momento captado pelo olhar investigativo e aguçado do historiador.

É certo que o nacionalismo angolano foi construído ao longo das lutas de libertação e em seu devir, quiçá ainda se encontra em construção, posto ser um tema latente nas diversas áreas das Humanidades. Nesse sentido, a obra de Silvio Carvalho nos traz uma grande contribuição para a compreensão desse processo histórico, assim como nos permite pensar essa Angola contemporânea, imersa no capitalismo, que renovou nos últimos dez anos, sobretudo os seus laços econômicos com o nosso país.

Uma pequena ressalva: é uma pena que os “livros-fonte”, venham discriminados no espaço destinado à bibliografia, a sua separação em um item específico, facilitaria a consulta ao leitor leigo, iniciante nas artes da literatura como fonte histórica. Nada que comprometa uma obra que já é referência para o campo dos Estudos Africanos. Foi o que combinamos.

Referências

CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: História, Nação e Literatura (1975- 1985). Curitiba: Editora Prismas, 2016.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. “História & literatura: uma velha-nova história”. Mundos nuevos. Débats, mis em ligne. 28 janvier 2006. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/1560 ; DOI: 10.4000/nuevomundo.1560


Resenhista

Fábia Barbosa Ribeiro – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP e graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atualmente é professora do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Campus dos Malês – BA. E-mail; fabiaribeiro@unilab.edu.br


Referências desta Resenha

CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: História, Nação e Literatura (1975- 1985). Curitiba: Editora Prismas, 2016. Resenha de: RIBEIRO, Fábia Barbosa. A utopia de uma nação: construção do imaginário social angolano a partir da produção literária no pós-independência (1975-1985). Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 08, p. 277-282, dez. 2016. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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