Ángel Rama: um transculturador do futuro | Flávio Aguiar e Joana Rodrigues

Resultado do seminário internacional “Jornadas Latino-Americanas: Ángel Rama, um Transculturador do Futuro”,2 que teve lugar nas dependências do Memorial da América Latina, no mês de novembro de 2009, o livro foi organizado pelos próprios responsáveis pelo evento, os professores Flávio Aguiar e Joana Rodrigues e publicado pela editora UFMG em 2013, inserido na coleção Humanitas.

Realizado ao longo do mês de novembro e organizado em duas mesas redondas bastante concorridas, nele foram distribuídos certificados para aqueles de deles participaram com pelo menos 75%. Somado a isso, também nos é relatado, em sua “Apresentação”, a participação da filha de Ángel Rama, Amparo Rama, que pronunciou um depoimento sobre o pai e fez a leitura de algumas cartas trocadas entre ele e o crítico paulista Antonio Candido, com alguns trechos publicados no livro em questão, retiradas de seus arquivos pessoais.

O livro traz, em primeiro lugar, o depoimento de Amparo Rama e, logo em seguida, seis cartas trocadas entre Ángel Rama e Antonio Candido, sendo a sua apresentação finalizada com um depoimento de Candido. Partindo do que Amparo Rama chamou de “minha modesta experiência de testemunha”, seu depoimento foi organizado em torno de suas lembranças, do recolhimento de opiniões da irmã do escritor uruguaio, artigos por ele publicados (quando da morte de seu irmão mais velho, Carlos) e sobre a experiência de participação no semanário Marcha.3

Ángel Rama acumulou várias tarefas e envolveu-se em diferentes projetos durante os anos de 1940 e 50, dos quais podemos citar seu trabalho no Departamento de Aquisições da Biblioteca Nacional, a função de professor na Escola Dramática, a atividade editorial na Alfa e, logo depois, a fundação da editora Arca. Nesse período, também contribuiu para a crítica de teatro no diário Acción e passou a ser responsável pela página de literatura do semanário Marcha. Para Amparo, o forte envolvimento do pai com a vida cultural tanto do Uruguai, como da América Latina, que iria se desdobrar especialmente a partir dos anos 70, teve a ver com o entrecruzamento de tarefas que ele foi administrando no tempo. Nessa período, Ángel Rama começou uma séria de viagens para o exterior que, segundo ela, não se tratavam mais de conferências, mas cursos de vários meses. Vale a pena destacar que é desse período o projeto de difusão cultural ambicioso: a criação da Biblioteca Ayacucho, em Caracas. Outro projeto importante, que teve o seu primeiro número situado entre os anos de 1968 e 69, foi a criação da Enciclopédia Uruguaia.

Ao ultrapassarmos esse momento introdutório, caímos em um emaranhado de estudos, em um total de oito textos, que estabelecem múltiplas linhas de forças a partir da produção e trajetória desse importante intelectual uruguaio. No primeiro texto, intitulado “Ángel Rama e Antonio Candido: de um encontro feliz a uma nova realidade crítica na América Latina”, Flávio Aguiar mostra a importância do encontro entre os dois críticos, situado no início da década de 1960, na ocasião de um curso ministrado do Candido, em Montevidéu. Aguiar faz uma leitura do livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), de Candido, e demonstra as repercussões e influências de sua construção teórico-metodológica nas formas de pensar de Rama, principalmente no que diz respeito ao conceito de “sistema literário” proposto por Candido, em detrimento do de “manifestações literárias”. Em um segundo momento, ao analisar a produção de Rama (uma série de artigos publicados em países diferentes), também demonstra as possíveis pontes entre as duas formas de pensar e narrar as experiências individuais e coletivas da literatura latino-americana. Um ponto de destaque recai sobre o conceito de “comarca” utilizado por Rama que, junto ao de “sistema literário”, contribuíram, segundo o Aguiar, para uma inflexão na crítica literária e cultural do continente. Por fim, vale ressaltar que o estudo aqui traçado privilegia uma leitura marcadamente política, com uma noção de tempo dialético em que a década de 1960 é tida como um momento de síntese, de certa forma seguindo as considerações de Rama.

Em “Ángel Rama e Antonio Candido: teoria, utopia e antropologia”, Ligia Chiappini destaca, ao fazer um levantamento amplo e atualizado, os vários estudos que têm sido feitos sobre Rama e os mais importantes intelectuais, incluindo os brasileiros Antonio Candido e Darcy Ribeiro. Atuando como uma espécie de intérprete e mediadora. Diante dessa fortuna crítica, centra seu texto em obras de estudiosos os quais, preferencialmente, têm se dedicado ao estudo e reatualização das obras de Candido e Rama, lendo-os criticamente. Vale destacar a inserção de suas próprias leituras sobre o legado dos dois intelectuais, em que pese um destaque ou maior atenção dada ao crítico brasileiro, o que não compromete a profundidade de suas análises e a qualidade de seu texto. De uma forma geral, seu estudo aprofunda e dialoga diretamente com o estudo anterior, realizado por Flávio Aguiar, sendo ponto pacífico entre eles importância dos contatos pessoais e entre as produções de ambos os intelectuais. Um diferencial da análise de Chiappini pode ser localizado nas discussões sobre a importância da antropologia nas formas de pensar e nos trabalhos de ambos, ponto ainda pouco focalizado, mas trazido para o centro das discussões na contemporaneidade. Ao explorar a importância do pensamento dialético nos dois intelectuais, o seu destaque recaiu, em grande medida, em uma leitura cultural privilegiando o viés do embasamento teórico de suas interpretações.

Pablo Rocca, em “Antonio Candido: cultura, pensamento, sociedade”, ocupou-se com uma apresentação da trajetória intelectual de Candido e com a análise de suas principais contribuições teóricas para campo dos estudos culturais brasileiros, sem se descuidar de valorizar os diálogos e alcance de sua produção no contexto latino-americano. Ao mostrar as principais obras escritas por Candido, frutos de sua constante dedicação à literatura, as quais não se restringiram somente à produção brasileira, Rocca constrói um amplo e importante mapa das principais discussões provocadas pelos estudos do crítico brasileiro e os encaminhamentos dados por intelectuais que, de alguma forma, mantiveram diálogos com a sua produção. Vale um destaque para as polêmicas vindas à público em relação ao Barroco brasileiro, provocadas pela publicação do livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), que envolveu uma série de importantes intelectuais brasileiros.

Em “Pícaros e malandros na literatura latino-americana”,4 Mario Miguel González estabelece uma análise comparativa a partir dos estudos de Antonio Candido da década de 1970, principalmente sobre o livro de Manoel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Em seu texto, o autor aponta um outro sentido ao estabelecido pelo crítico brasileiro, focado em uma separação radical do “romance picaresco espanhol” e o “romance malandro enfatizado”. Em sua leitura do romance malandro, ressalta não uma filiação entre as duas tradições, por assim dizer, mas um paralelo, uma correspondência entre anti-heróis. De uma forma geral, o seu estudo mostra-se como uma excelente introdução à literatura picaresca clássica espanhola e ao seu desdobramento (e recuos), principalmente nos séculos XIX e XX. Sem negar a tese de Candido, González ilumina outras possibilidades de aproximação das duas formas de romance, o que, sem sombras de dúvidas, é uma proposta enriquecedora para o campo, entre outros, da literatura comparada sobre a América Latina.

Rebeca Errázuriz Cruz, em “A crítica de Antonio Candido: por um equilíbrio instável”, também se ocupou do trabalho de Candido ao buscar em suas principais obras e métodos de pesquisa as respostas para indagações sobre como enfrentar as possíveis formas de leituras do texto literário, entendido sempre como dimensionalmente heterogêneo. Assim como González, Cruz também reconhece a importância dos deslocamentos teóricos de Candido, principalmente no que tange à definição de romance representativo, ao invés de documental, para a tradição brasileira iniciada com o Memórias de um sargento de milícias. Para a autora, um dos passos fundamentais do crítico brasileiro teria sido uma abordagem com características metodológicas de uma crítica dialética. Em sua análise, o foco central situa-se na compreensão, em um esforço interpretativo, de demarcar e demonstrar a arquitetura analítica de Candido, dando destaque para o seu caráter sempre mediador na tarefa de compreensão das relações entre realidade e trabalho da ficção. Seu trabalho foi de interpretação da produção do crítico, ao ler algumas obras selecionadas em que se encontram pontos de relevância de sua produção analítica e teórica como, por exemplo, o livro Tese e antítese, publicado em 1971. Vale destacar, em consonância com a densidade de sua leitura, as identificações e aproximações das propostas teóricas e analíticas de Candido com os estudos de Adorno e Lukács e, de certa forma, com Hegel.

Depois de uma série de textos voltados mais especificamente às obras e à trajetória do crítico brasileiro, Haydée Ribeiro Coelho, em “O papel do intelectual, a cultura e a Biblioteca Ayacucho: Antonio Candido, Ángel Rama e Darcy Ribeiro”, como o título já sugere, analisou as relações entre o papel da atuação e produção intelectual e a cultura, conforme os itinerários e contatos entre os três escritores. Coelho constrói e propõe uma mapa das contribuições e aproximações teóricas entre os intelectuais ao se valer de leituras de alguns textos de Candido e de Rama publicados em revistas sobre o projeto de idealização da Biblioteca Ayacucho, empreendimento cultural apoiado pelo governo venezuelano na década de 1970, em que os três intelectuais se viram envolvidos. Ao se valer de trabalhos desenvolvidos sobre Darcy Ribeiro durante o seu exílio no Uruguai, sua análise é aprofundada com a contextualização das polêmicas em que o trio se envolveu e as respostas que deram, tanto em seus estudos quanto nas atuações, sobre o lugar da produção e do intelectual na América Latina. Vale destacar que a leitura em rede estabelecida pela autora, ao centrar o seu estudo nos debates sobre a questão do intelectual, desloca e sugere uma forma mais abrangente de pesquisa sobre as atuações intelectuais. Nesse sentido, seria de fundamental importância a valorização de variadas fontes para a pesquisa como, por exemplo, cartas, artigos publicados em revistas, prólogos, traduções, diários etc que, em grande medida, oferecem indícios valiosos para a compreensão do trabalho intelectual.

Adentrando mais especificamente na obra e propostas de Rama, Roseli Barros Cunha, em “A transculturação narrativa de Ángel Rama: algumas de suas influências e intercâmbios”, analisa mais detidamente a iniciativa do intelectual uruguaio em resposta ao convite para a direção da Biblioteca Ayacucho, feita pelo governo venezuelano, em 1974, e o trabalho de organização dos volumes e obras para a sua efetivação. Ao mesmo tempo, mapeia a trajetória de Rama para mostrar a sua constante busca de apoio em intelectuais para efetivação e construção teóricas sobre o papel do intelectual e de suas concepções sobre o que era/deveria ser a América Latina. Cunha mostra a importância dos trabalhos do dominicano Henríquez Ureña, do venezuelano Mariano Picón Salas e dos brasileiros Antonio Candido, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre. Entre os vários pontos, vale destacar a valorização das particularidades regionais em detrimento das arbitrárias divisões geopolíticas, o que seria desdobrado na ideia de “comarcas culturais”. A transculturação narrativa, por sua vez, corresponderia a uma operação de síntese cultural.

E, por fim, como texto de fechamento do livro, Joana Rodrigues, em “Ángel Rama e Antonio Candido: um espaço em comum na imprensa”, analisa a importância da atividade da escrita jornalística para as trajetórias e formações intelectuais de ambos os críticos. Mesmo ressaltando que suas atividades estiveram concentradas em países, tempos e contextos diferentes – Candido, no Brasil, nos anos 40 (no periódico Folha da Manhã); Rama, no Uruguai, nos anos 60 (no semanário Marcha) – seu estudo demonstra como ambas atuações como críticos literários precocemente iniciadas nesses espaços foram de fundamental importância para o amadurecimento de suas perspectivas teóricas e estudos futuros. Ressaltase também a importância, como demonstrado ao longo de praticamente todos os textos do livro, do contato entre os dois intelectuais e as trocas conceituais estabelecidas entre eles. O envolvimento com a escrita jornalística, como bem apontado por Rodrigues, possibilitou, para além de um início da formação de ambos como críticos, a entrada no universo das redes de sociabilidades intelectuais. Através disso, eles puderam contribuir para um alargamento e aprofundamento do papel do crítico nos espaços públicos. Ao compará-los de um ponto de análise centrado em suas atividades jornalísticas como críticos de literatura, a autora nos convida para percorremos, de uma forma instigante e contextualizada, itinerários marcados por diferenças de rotas, mas, em vários pontos, com zonas de contato. Uma delas, por exemplo, diz respeito ao lugar de destaque dado à amizade mantida entre os dois intelectuais, motivo de uma declaração sentimental de orgulho de Candido, que fez com que Rama utilizasse e divulgasse o trabalho teórico desenvolvido pelo crítico brasileiro.

Por fim, uma observação se faz necessário. Como visto ao longo dessa resenha, por todo o livro, em alguns estudos ocupando o lugar central das análises, notamos a presença de Antonio Candido, seja com estudos de sua obra, sua trajetória ou como referência para a melhor compreensão do trabalho de Ángel Rama. Dessa forma, acredito que a inclusão do nome do crítico brasileiro no título do livro poderia ter sido mais adequado, uma vez que ele também foi homenageado no evento que lhe deu origem. Para além disso, seria também uma forma de enfatizar, com mais clareza e de forma mais instigante, o importante lugar das relações de sociabilidade entre os escritores e uma sugestão para ser pensar uma possível ampliação dos estudos no campo da história intelectual latino-americana pensada a partir da formação e estabelecimento de suas redes.

Notas

2 Em sua “Apresentação”, os organizadores mencionam o apoio recebido para evento do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, da Fundação Memorial da América Latina, da Pró-reitoria de Cultura e Extensão e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (ambas da USP), do Consulado do Uruguai em São Paulo e do Centro Ángel Rama da FFLCH/USP. O evento também contou com a participação de Antonio Candido, que teve um assídua correspondência com Rama, motivo que levou Candido a ser homenageado junto ao amigo uruguaio.

3 Marcha foi um semanário voltado para a literatura, que ocupou um importante lugar na produção cultural de língua espanhola, circulando de 1939 a 1974 em Montevidéu e Buenos Aires. Em suas páginas, contou com importantes colaboradores como, por exemplo, Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Antonio Candido, entre tantos outros.

4 O texto é fruto da aula dada pelo professor Mario M. González no curso de extensão que ocorreu durante o evento.


Resenhista

Valdeci Silva Cunha – Doutorando em História Social da Cultura, mestre em História e Culturas Políticas, e licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Pesquisador do Centro de Convergência de Novas Mídias (CCNM/UFMG), co-coordenador do Núcleo de Pesquisa Cidades na História (NECH/UFMG).


Referências desta Resenha

AGUIAR, Flávio; RODRIGUES, Joana (Orgs.). Ángel Rama: um transculturador do futuro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. Resenha de: CUNHA Valdeci Silva. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.17, n.30, p. 273- 278, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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