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Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus. A relação de Dom Helder com as artes | N. D. de A. Cabral, L. Pina Neta

Este livro apresenta uma abordagem acerca da trajetória de inserção cultural de Dom Helder Câmara (1909 – 1999) em diversas áreas, traços esses que o destacou como liderança religiosa com forte participação no debate político nacional e internacional, levando-o a ser declarado oficialmente como o Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos (2017). Os estudos que embasam esta publicação destacam aspectos de sua aproximação com o teatro e a literatura, ainda quando jovem na sua cidade natal, Fortaleza – CE, na década de 1920. Enfatiza seu gosto pelo campo da música, no Rio de Janeiro (1936); da literatura, da poesia, do rádio e até mesmo do cinema, em Recife, na condição de Arcebispo de Olinda e Recife (1964 – 1985). Trata-se de uma obra composta de doze artigos, organizada por Newton Cabral e Lucy Pina Neta, a partir de estudos realizados por docentes da Ciência da Religião e/ou da História, originados de seis instituições de ensino superior no Brasil (UNICAP, UPE, UFRG, UFSE, UFRPE e UP).

O livro contextualiza o ambiente cultural que marcou a formação inicial do Dom, filho de um guardador de livros e crítico de teatro, e sobrinho do responsável pela administração do teatro em sua cidade natal, acompanhou atividades de ensaios de peças teatrais e apresentações artísticas, além de vivenciar rodas de artes, incluindo contação de histórias. No início de sua vida adulta Dom Helder experimentou a política, como integrante de um partido político, atuou na formação e na organização associativa da categoria de professores em sua cidade. Destacado como intelectual, exerceu a função de secretário de educação em seu Estado. Como padre católico, veio a morar no Rio de Janeiro, onde conviveu com artistas da MPB. Transferido para a Arquidiocese de Olinda e Recife, ocupando o cargo de bispo auxiliar e na sequência, arcebispo metropolitano. O foco da obra é a trajetória vivida por Dom Helder, como ele desenvolveu sua sensibilidade para com o valor da cultura e, sobretudo com as manifestações da arte, traduzida na sua relação com o belo. O gosto pela literatura e pela arte repercutiu no seu posicionamento político enquanto liderança na igreja católica, embasando assim uma nova perspectiva que ele pensou para a vida religiosa e para a ação da igreja católica no mundo.

O mote presente nos diversos capítulos deste livro é de que o envolvimento do Dom com a cultura do belo representou ao longo de sua atuação no mundo, e em especial na igreja católica, um testemunho “de mais humanismo e de outra concepção de vida religiosa” II. Foi na igreja que Dom Helder deixou sua principal marca, respaldada por seu envolvimento com problemas sociais, com a miséria que via nos morros e nas favelas do Recife. Assim, em 1952 trabalhou na construção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e articulou a participação efetiva de bispos brasileiros para o concílio Vaticano II, nos anos 1962 a 1965. Foi lá que organizou o grupo chamado “grupo dos bispos pobres, preocupados com problemas do Terceiro Mundo e sua participação.” III A ação articulada do Dom propôs um novo modelo de igreja na perspectiva de revalorizar “[…] a bíblia e a pregação no culto, autorizou a língua local e a comunhão nas duas espécies, a participação ativa da comunidade, o reconhecimento do laicato como povo de Deus nos conselhos paroquiais e diocesano”. IV

Em um momento histórico duro da história brasileira, a DITADURA MILITAR (1964-1985), o Dom promoveu as chamadas ‘noitadas do solar dos manguinhos’, uma verdadeira ocupação do palácio, que historicamente era destinado a residência de bispos, por artistas e intelectuais de renome local e nacional, para discussão de temas sociais amplos, focando a cultura, a literatura, a filosofia, a teologia entre outros. Contra a ideologia política e até mesmo em confronto com os interesses eclesiais, o Dom julgava necessário esse debate, como uma prática de fé, vivida em um ambiente hostil à práticas reflexivas, como chegou a ressaltar “neste Recife parado, traumatizado, com medo de pensar, um grupo excepcional de inteligências honestas e limpas ficou até meia-noite em pleno debate de idéias, sinônimo, ao meu ver, de louvor a Deus”. V

Um importante aceno desta obra é dado à capacidade do Dom como escritor e na sua prática diária do registro de suas reflexões, sejam no formato de cartas endereçadas ao grupo de amigos no Rio de Janeiro ou mesmo no formato de crônicas. Esse último recurso literário tornou-se um instrumento de educação religiosa e formação política para o povo de sua arquidiocese. As crônicas alimentaram a agenda central do programa diário “Um olhar sobre a Cidade”, transmitido por quase 10 anos e reprisado por mais outros tantos, pela Rádio Olinda, emissora da arquidiocese. Os pesquisadores dão conta de que foram produzidas pelo Dom mais de 2,5 mil crônicas, com a finalidade formativa, focando o compromisso da fé cristã na sociedade, assim, “não dizer apenas das pessoas em sua realidade mais imediata, mas, partindo dela, esboçar o que poderia ser uma outra realidade, plena de possibilidades, da criatura humana”. VI O estilo literário empregado busca o desencadeamento de reflexões no âmbito social e pessoal, com foco na fé cristã e um modelo de igreja comprometida com a superação das injustiças e da omissão do cristão, frente aos problemas da cidade. O texto serve então como espaço para discussão dos problemas e injustiças sociais, expressa uma posição política, além de explicitar “sua compreensão da religião e de como ela deveria dialogar com o mundo contemporâneo, chegando a evidenciar suas reflexões acerca de um plano mais pessoal, tais como as atitudes e sentimentos que devemos ter e assumir conosco e para com o mundo”. VII A abordagem dos temas pelo Don parece ter um fundamento metodológico que foi amplamente utilizado pelo movimento da teologia da libertação no Brasil no final da década de 1970 até início dos anos1990. Trata-se do método Ver, Julgar, Agir e Celebrar. Esse método foi lançado oficialmente em 15 de maio de 1961, na encíclica Mater et Magistra, publicado pelo Papa João Paulo II. O método se desenvolve em três distintos momentos: “Primeiro, o ‘estudo da situação’ concreta; segundo, a ‘apreciação da mesma à luz desses princípios e diretrizes’; terceiro, o ‘exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama’. VIII

A força de Dom Helder com artista foi além de sua arquidiocese e do Brasil. Duas valiosas obras artísticas desenvolvidas na última fase de sua vida revelam como seu posicionamento cultural e político encantou o mundo: a missa dos quilombos e a sinfonia dos dois mundos.

Em primeiro lugar a Missa dos Quilombos, gravada no Recife em 1982, que veiculou “concepções de reconhecimento das diferenças e processo de equidade, sobretudo a partir de questões étnicos sociais” IX, permitiu a Dom Helder denunciar, de modo artístico, a continuidade da história da escravidão, do racismo e como o preconceito continua no Brasil. Trata-se de um posicionamento de natureza religiosa, de uma Igreja próxima aos pobres, e aos excluídos. Mas significa, sobretudo, uma posição política em torno do modelo de sociedade sonhada, transmitida em uma linguagem artística qualificada.

Em segundo, a sinfonia dos dois mundos, que reflete um posicionamento teológico, político e social, discurso difundido em suas viagens internacionais, em relação aos conflitos entre países industrializados e aqueles que apenas exportam produtos primários, os chamados países do terceiro mundo. Inspirado no ambiente internacional da Conferência de Badung ocorrida em 1955 na Indonésia, evento que representou um grito dos povos de cor, Dom Helder propôs uma Badung Cristão, no sentido de sensibilizar o mundo em torno das mudanças estruturais que causam opressão a maior parte da humanidade. Assim, liderou um diálogo entre os seus pares e “propôs que os bispos dos cinco continentes, de modo coordenado, buscassem promover o diálogo entre os dois mundos – desenvolvido e subdesenvolvido.” X. A sinfonia, iniciada em 1979, foi apresentada em três continentes, percorreu quatorze países e realizou 48 execuções. Em sua essência continua absolutamente atual, pois canta ideias em torno de um projeto de mudanças na relação a países ricos e países pobres, bem como a responsabilização dos ricos em relação ao processo de empobrecimento do chamado terceiro mundo.

Este livro nos dá a possibilidade de compreender aspectos pouco conhecidos de Dom Helder Câmara, tais como a amplitude de suas ideias, a perspectiva política de suas ações, sua percepção em torno do papel da cultura, da literatura, do cinema e da arte na formação da consciência crítica da pessoa humana. Não se rendeu aos limites de seu tempo, resistiu à pressões do regime ditatorial militar no Brasil, que o taxavam de “bispo vermelho”. Não se intimidou com a resistência dentro da própria igreja, ao contrário, construiu um valioso espaço de diálogo com o mundo, utilizando-se de instrumentos fundamentais de resistência, através da cultura (arte, literatura, música, poesia, cinema), tornou-se conhecido não só no Brasil, mas, sobretudo em grandes centros cultuais da Europa e a América Central.

O texto, no seu conjunto, foi organizado de tal modo que o leitor não percebe grandes repetições. Ao contrário, apresenta uma singular sintonia que considera uma perspectiva histórica necessária para compreensão dos relatos e suas respectivas análises. Ressente-se, no entanto, da falta de registro fotográfico, a inclusão de imagens que pudessem evidenciar outros elementos da vida cultural e dos passos nesse universo dados pelo arcebispo. As fontes referenciadas dão asas para novas pesquisas, permitindo assim outras leituras e diferentes achados no sentido de avançar na compreensão da atualidade e do valor da complexa obra, acerca do legado de Dom Helder Câmara. Trata-se de uma singular contribuição especializada e corrobora para qualificar ainda mais o conjunto de obras em torno da atuação de Dom Helder Câmara.


Notas

II Gilbraz de Souza Aragão. Docente da UNICAP e Autor do Prefácio. (CABRAL, N. D. de A. & PINA NETA, L. (Orgs). Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus. A relação de Dom Helder com as artes. Ed. Bagaço. Recife, 2018. p. 10)

III CHAVES, J. A. O cronista da cidade sonhada. In: CABRAIL e PINA NETA. Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus: A relação de Dom Helder Câmara com as artes. Edições Bagaço. Recife, 2018. p. 9.

IV Gilbraz de Souza Aragão. Docente da UNICAP e Autor do Prefácio. (CABRAIL e PINA NETA, 2018. p. 12)

V Gilbraz de Souza Aragão. Docente da UNICAP. Citado em CABRAIL e PINA NETA, 2018. p. 105.

VI (CHAVES, 2018. p. 143).

VII (CHAVES, 2018. p. 147).

VIII (INSTITUTUS HUMANITAS UNISINUS, 2011).

IX (PESSOA; ANDRADE; SILVA DE ANDRADE, 2018. P. 239)

X (PESSOA, ANDRADE e SILVA DE ANDRADE, 2018. p. 263-264).


Referências

CABRAL, N. D. de A. & PINA NETA, L. (Orgs). Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus. A relação de Dom Helder com as artes. Ed. Bagaço. Recife, 2018.

CHAVES, J. A. O cronista da cidade sonhada. In: CABRAIL e PINA NETA. Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus: A relação de Dom Helder Câmara com as artes. Edições Bagaço. Recife, 2018.

INSTITUTUS HUMANITAS UNISINUS. Ver, julgar e agir: 50 anos de prática social católica. 2011. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/43514-ver-julgare-agir-50-anos-de-pratica-social-catolica. Acessado em: 10.04.2021.

PESSOA, S.; ANDRADE, P. e SILVA DE ANDRADE, C. Voz dos tambores: A música da missa dos quilombos. In: CABRAIL e PINA NETA. Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus: A relação de Dom Helder Câmara com as artes. Edições Bagaço. Recife, 2018.


Resenhista

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues – Doutor em Educação pela UFPE (2009). Professor Associado da Universidade de Pernambuco, membro do colegiado do Programa de Mestrado Profissional em Educação da UPE, pesquisador da área de gestão e políticas públicas em educação. Membro da Acadêmia Pernambucana de Educação e Cultura. Pró-reitor de Graduação da Universidade de Pernambuco (2015-.2018). Pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade de Pernambuco (2019- 2021).


Referências desta Resenha

CABRAL, N. D. de A.; PINA NETA, L. (Orgs). Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus. A relação de Dom Helder com as artes. Recife: Ed. Bagaço, 2018. Resenha de: RODRIGUES, Luiz Alberto Ribeiro. Arte, Política e Fé em Dom Helder Câmara. Cadernos do Tempo Presente. São Cristóvão, v. 13, n. 02, p. 95-98, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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