Neste número, Projeto História volta-se para questões relativas à América Latina a partir de artigos e pesquisas realizados por especialistas na área, preliminarmente submetidos a um conselho editorial, que conta agora com a colaboração ampliada de investigadores latino-americanos, os quais vieram somar sua competência aos já integrantes advindos de países do continente europeu.
É inquestionável que o interesse e as demandas sociais por maiores conhecimentos sobre formações latino-americanas vêm aumentando substancialmente nos últimos anos. As razões desse interesse são de várias ordens, passando pela intensificação ou retomada de relações econômicas entre o Brasil e outros países da região, em especial do Cone Sul, o incentivo governamental à ampliação dessas interações, até o reconhecimento ou questionamento de nossa “latinidade” no bojo das reflexões sobre identidade nacional, a “brasilidade”.
Esse interesse por conhecimento sobre essas formações, que hoje se manifesta no meio acadêmico, assim como as demandas sociais que chegam a essas instituições, nos dão a medida do grau de desconhecimento sobre estas realidades que nos circundam, tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes. Apenas recentemente, os meios de comunicação de massa noticiam sobre esses povos, com tradições culturais tão ricas, enquanto ainda permanece essa ausência nos currículos do ensino básico. Ademais, em termos institucionais, nossa integração regional ainda é bastante incipiente, em que pesem as retomadas, diplomáticas ou não, dos últimos anos.
Por sua vez, as universidades demonstram ter ainda pouco acúmulo de subsídios para responder a essa crescente demanda, tanto em termos de pesquisas nacionais ou intercontinentais em desenvolvimento ou em termos de acervos que auxiliem tais reflexões, quanto em termos da intencionalidade ou possibilidades de difusão dos resultados dos estudos.
É nesse sentido que o Conselho Editorial do Projeto História optou por divulgar reflexões resultantes de pesquisas de especialistas relativas à América, priorizando, pela primeira vez, desde sua emergência, temas afetos à essa porção da humanidade. Não por acaso, a espinha dorsal que norteia o conjunto das reflexões dos autores e autoras que colaboram com este número expressa reflexões sobre as tensões, os projetos, acertos e descaminhos da necessária integração regional nas conflitivas circunstâncias internacionais, destacando-se deste universo as diversas máscaras que vêm caracterizando o intervencionismo norte-americano, a que se acresce a mundialização dos interesses imperialistas, sob a égide do que é reconhecido como globalização.
Em um passado não muito distante, a pouca importância econômica da América Latina – e por não se configurar como um foco de tensão presente no centro do cenário internacional – resultava em uma leitura formalista e homogênea da região, o que parece ter sido compartilhado por especialistas das mais diversas ordens, desde estadistas até acadêmicos de renome internacional.
Diversos fatores levam, atualmente, à mudança desse enfoque, a ponto de Abraham F. Lowenthal, um dos especialistas norte-americanos e referência de políticos de diversos países, ressaltar recentemente, em seu artigo “América Latina frente al cambio de siglo”, publicado no Journal of Democracy em abril de 2000, que “los países de América del Sur y especialmente los de la región del Mercosur, en contraste, están mucho más diversificados en materia de relaciones internacionales y regionales, tanto política como economicamente”, alertando que “los países del Cono Sur han estado cultivando estrechas relaciones comerciales, financieras y políticas con Europa y Ásia”. No mesmo sentido, o número 147 da Revista Española de Defensa, de 2000, ressalta que a
América Latina no existe. Numerosos medios de comunicación, agentes económicos y centros gubernamentales se comportan como si el vasto espacio entre el Río Grande y el cabo de Hornos tuviese suficiente homogeneidad para que esa denominación común demandase uma estrategia unificada en términos políticos, económicos y de seguridad.
Ora, essa preocupação em evidenciar a diversidade vigente nesta parte do continente leva a que, do ponto de vista analítico, ressurjam as abordagens sobre a questão dos estudos comparados.
A partir de um enfoque crítico, essa abordagem comparativa é retomada, neste número, pelo estudo de Lara Mancuso, que se pergunta se a história comparativa é uma linha de pesquisa. A partir de uma recopilação crítica dos trabalhos comparativos no campo da História da América Latina produzidos desde o final da década de 60 até aproximadamente 1980 e publicado na revista Latin American Research Review, essa historiadora destaca os principais temas, enfoques e omissões que emergem desse balanço e dá continuidade ao estudo, agora enfatizando a historiografia da década de 80. No interior dessa reflexão sobre a comparação enquanto preceito teórico, situa os riscos de se trabalhar com construtos subjetivos construídos, que podem resultar bastante esquemáticos, mas também identifica as possibilidades de se resgatarem aspectos distintivos das realidades não perceptíveis a não ser no processo de comparação.
Concomitantemente, outros colaboradores deste número do Projeto História destacam, no interior das discussões sobre a integração regional, a presença constante das pressões imperialistas, particularmente a norte-americana. Nesse sentido, o estudo do historiador Ricardo Souza Mendes é bastante esclarecedor sobre o pensamento dos analistas. A partir de um apanhado historiográfico sobre a política intervencionista norte-americana, destaca as perspectivas analíticas predominantes, assim como os marcos enunciadores desse imperialismo. Poder imperialista que hoje se evidencia nas relações internacionais lideradas pelos países hegemônicos, cada vez mais sob a tutela norte-americana, ante as quais o Brasil está determinado a se posicionar. E é sobre esses posicionamentos que o historiador Moniz Bandeira centra suas análises, confrontando as estratégias adotadas pelos dois últimos governos brasileiros em relação à agressiva política estadunidense de defesa de seus interesses, demonstrando as diferenças entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva na condução das políticas do Itamaraty, assim como na lógica das relações internacionais, conforme conduzida, primeiro, por Celso Lafer e, mais recentemente, por Celso Amorin e Samuel Pinheiro Guimarães.
No estudo da historiadora Emília Viotti da Costa, a integração regional constitui a preocupação principal, embora aqui voltado para as condições em que se articula um Mercado Comum Centro-Americano. Após um período de diminuição da dependência desse organismo em relação aos Estados Unidos – com a economia imposta pelas crises do petróleo e a irrupção de movimentos revolucionários que atingiram a região –, essa autora demonstra, com sua crítica marxista rigorosa, como a política econômica neoliberal, retomada sob a influência do “Consenso de Washington”, beneficiou alguns setores, mas aumentou as disparidades sociais, a vulnerabilidade da economia e fortaleceu a subordinação estrutural.
As tensões vigentes entre os parceiros na constituição do Mercosul desde sua gênese, conforme analisadas pela especialista argentina Carolina Crisório, como que dá continuidade às evidências acima apontadas, mas, agora, com ênfase na análise do difícil processo de integração produtiva, em meio à entrada das empresas estrangeiras, que passam a compartilhar com as nacionais os mercados internos e a burlar as barreiras tarifárias. Conforme salienta, é necessário observar que o Mercosul continua sendo um cenário de luta das grandes potências que, tradicionalmente, têm feito sentir sua influência na região: os Estados Unidos, a Alca e o Canadá, os países da União Européia e Japão, como também a remodelada Federação russa, Coréia do Sul e a pujante potência capitalista chinesa.
As lutas de classes que se manifestam nos mais diversos movimentos sociais expõem as contradições decorrentes dessa condição subordinada e induzida de fora, cujo desenvolvimento se configura como forma não clássica, particular de ser e ir sendo capitalismo, todavia incompleto e incompletável, que explicita o caráter restrito até mesmo da vigência dos preceitos liberais democráticos; daí a conotação autocrática que assume o Estado, tanto em tempos de “democracia”, como em tempos de guerra, com seus ciclos ditatoriais. Tal particularidade histórica-social releva sua radicalidade conservadora no texto em que Everardo de Andrade analisa o bonapartismo que se evidencia no golpe de 1964, na Bolívia. Seu texto busca aproximações e relações entre os golpes militares no Brasil e na Bolívia nesse período e, nesse sentido, relaciona os dois movimentos como desdobramentos de uma estratégia comum traçada, desde os EUA, para a América Latina, pós-revolução cubana de 1959 e aos primeiros sinais de crise econômica que se abate sobre o capitalismo nos anos precedentes. No caso da Bolívia, também são examinadas as raízes históricas do militarismo no país desde a Guerra do Chaco (1932- 1935) e a Revolução de 1952, assim como a resistência operária popular aos militares.
O tema das revoluções também se faz presente na crítica que o historiador cubano Hernán Venegas faz à historiografia das lutas ocorridas em seu país em fins do século XIX. Esse autor questiona tanto as vertentes que vinculam todo este processo a uma “visão limitada à abordagem capitalista-colonial, em que teria predonimado o ‘medo negro’ concernenteà revolução haitiana, quanto a historiografia que afirma ter sido o regime escravocrata um obstáculo para que fosse concebida, conspirada e atuada a favor da independência conforme ocorria em outras localidades da região, concluindo, dessa maneira, como tal processo de independização ocorre no interior de um movimento hispano-americano reinante, fortemente arraigado na ideologia liberal”. De qualquer forma, o sistema oligárquico que assume a dominação nesse país diretamente vinculado aos interesses norte-americanos entrará em crise em 1933, mais uma vez, em decorrência da crise internacional de 30. Crise que acirra as políticas protecionistas norte-americanas, o que significou, entre outras medidas, ampliar a exploração sobre a economia cubana. Tal contexto é resgatado por José Mao Jr., ao analisar como as lutas de 1933 ocorridas em Cuba explicitam não apenas a interferência norte-americana, mas também como transformam profundamente aquela sociedade, pela consolidação, não apenas das principais correntes político-ideológicas, mas também das principais formas de luta que se manifestarão na Revolução dirigida por Fidel Castro duas décadas depois.
A crítica à historiografia tradicional sobre essas relações entre brancos e nações nativas encontra-se no artigo de Heloisa Reichel. A autora aborda a interação estabelecida entre índios e brancos no processo de construção do Estado independente, centrado na província de Buenos Aires na primeira metade do XIX. Criticando a historiografia de caráter liberal e a que se funda no “materialismo histórico”, considera que ambos apresentam uma versão simplificada dessa sociedade nesse período. Sem negar a dominação que os governos exerceram, suas pesquisas evidenciam que a expansão territorial foi realizada a partir de negociações com os indígenas e não apenas através do confisco de terras e extermínio da população que as habitava.
O processo de negociação entre as populações nativas e os espanhóis ganha uma outra conotação, no estudo realizado por Adelaida Sagarra, da Universidade de Burgos. Analisando a atuação das lideranças de ambos os lados, mediadas pela presença feminina, demonstra como o ideal da coroa espanhola daquele início do século XV nem sempre foi alcançado. Segundo seus estudos, a predominância de um “olhar sobre o outro”, a partir dos referencias próprios de cada cultura, resultou na violência do processo de colonização.
Tal cenário de lutas, recuos e avanços não é primazia do período contemporâneo e, para nos lembrar disso, o texto do professor de Letras, Juarez Ambires, traz o resultado de suas pesquisas sobre os embates entre os colonos escravagistas portugueses e os missionários inacianos, expressos nas disputas pela formulação da legislação sobre a configuração social do indígena. Sua documentação revela como, no fim do século XVII, os inacianos vêm o índio como força de trabalho, embora tenham estabelecido com eles relações mais humanitárias que os colonos. A dimensão mais profunda da subsunção dos nativos à cultura européia é analisada por Fernando Londoño, em suas pesquisas sobre a cultura dos mexicas. Seu inventário dos incontáveis objetos desses povos extrai das representações fixadas pelos europeus o sentido original que possuíam, revelando assim os fundamentos da complexa forma do ser social dessas sociedades. Lendo através das descrições desqualificadoras, demonizadoras e criminalizadoras registradas pelos europeus, que reduziam a simples mercadoria todo o conhecimento desses povos – acumulado em sua arquitetura, utensílios, artes, roupas, na ciência, educação –, Londoño dá visibilidade à riqueza cultural que passou a ser submetida ao esquecimento e à transfiguração. Concomitantemente, obtém-se a compreensão dos interesses dos colonizadores com a leitura do artigo de Ivone Dias Avelino, cuja pesquisa resgata os avanços e recuos no processo decisório que configurou a Reforma Burbônica, liderada por Carlos III de Espanha. Seu artigo demonstra como esse monarca, pressionado, por um lado, pela dinâmica capitalista internacional e, por outro, pelos ideais da Ilustração – particularmente a espanhola com formação francesa – e ainda pela elite crioula que se fortalecia com as contravenções mercantis, institui o “comércio livre”, que, rompendo a ordem da dinastia anterior em todos os setores do tráfico ultramarino, integra este país ao capitalismo europeu com sua forma mercantil.
Ao longo destes últimos séculos, esses nativos se viram transformados gradualmente em camponeses, que, no atual mundo globalizado, adquirem nova visibilidade nas diversas formas de lutas que vêm promovendo e através das quais se denotam suas formas identitárias. Do ideário que resgata essa reafirmação da “condição indígena” nas lutas camponesas, Zilda Iokoy extrai as formulações de José Carlos Mariátequi, demonstrando como este autor manteve presente, em suas propostas políticas e em seu conceito de revolução, os preceitos de coletividade, reciprocidade e circularidade dos tempos, centrais na cultura das comunidades indígenas/camponesas.
Condição indígena que se reafirma e adquire visibilidade neste número da revista, com a entrevista concedida por Evo Morales a Ramon Casas Vilarino, onze meses antes do pleito eleitoral no qual sairia como candidato à presidência. Sua fala revela os principais pontos de sua campanha e o ideário de defesa dos interesses populares que os fundam, na busca de uma inversão nas políticas neoliberais implementadas nos últimos vinte anos. Questionando a democracia política como estrutura orgânica e efetiva das relações societárias constitutivas do povo boliviano, propõe um movimento de refundação da Bolívia baseado em valores componentes da cultura andina, que ele denomina socialismo comunitário, baseado na reciprocidade que permita ao povo usufruir das riquezas naturais, particularmente pela recuperação da propriedade do petróleo e do gás. Embora esse candidato à presidência no próximo pleito eleitoral reconheça que a dinâmica de seu país tenha aspectos distintivos dos demais povos latino-americanos, apresenta-nos sua proposta de integração regional, que ele denomina revolução cultural, ou seja, a constituição de uma grande família latino-americana, além da particular articulação com Hugo Chávez e Fidel Castro.
Observa-se que o substrato conceitual que emerge neste último conjunto de autores é o concernente à cultura, de onde a pertinência da tradução do texto de Stuart Hall, elaborada por Helen Hughes e Yara Khoury, o que possibilita ao leitor o acesso a uma precisa reflexão teórica sobre essa temática. Neste artigo, o autor de Da Diáspora: identidades e mediações culturais resgata estudos desenvolvidos no Centro de Estudos Culturais (Centre for Cultural Studies), tanto sobre a temática da cultura de forma geral, quanto sobre as formas diversificadas de manifestações sobre raça e etnicidade e seus múltiplos componentes racistas vigentes na cultura inglesa. Após situar o estrangulamento que norteou tais estudos nos meios acadêmicos em um passado recente, aponta as possibilidades de análises que as novas abordagens sobre cultura têm propiciado, não apenas ao meio acadêmico, mas ao público em geral, interessado no entendimento da realidade social contemporânea, pois tal temática integra disciplinas em pesquisas interdisciplinares, provocando mudanças em suas fronteiras.
Com a mesma preocupação, voltada à centralidade da cultura, mas em uma perspectiva distinta e polêmica, a historiadora Eliane Cristina de Fleck, a partir de documentação colonial que revela distintas práticas vivenciadas em contatos interculturais, traz à luz uma reflexão sobre a historiografia que analisa as emoções enquanto partes componentes de um processo social de interação entre os seres humanos e seu ambiente social, e que busca traduzir a subjetividade e os sentimentos em materialidades nas quais se recriam culturas.
Esperamos que a apresentação deste número do Projeto História contribua para o avanço do conhecimento acadêmico e sirva para catalizar uma colaboração contínua dos pesquisadores que já participaram de sua elaboração, aos quais agradecemos. Esperamos, ainda, atrair a comunidade mais ampla de intelectuais para um debate aberto, assim como que incentive as discussões entre estudantes e docentes, visando sua melhor compreensão social de nossa realidade histórica.
Organizadores
Antonio Rago Filho – Editor científico.
Vera Lúcia Vieira – Editora científica
Referências desta apresentação
RAGO FILHO, Antonio; VIEIRA, Vera Lúcia. Apresentação. Projeto História. São Paulo, v.31, ago./ dez. 2005. Acessar publicação original [DR]
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