América latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica | Manuel Antonio Garretón

O livro América Latina no século XXI é o resultado de uma série de debates acadêmicos que se iniciaram no seminário Rethinking development theories in Latin America: democratic governance, process of globalization and societal transformations, promovido em 1993 pela University of North Carolina. Esses debates foram retomados em encontros na Universidad de Salamanca e, posteriormente, nos congressos da Latin American Studies Association (LASA) – uma entidade internacional que tem como missão fomentar a discussão intelectual, a pesquisa, o ensino e a “participação cívica através da construção de redes sociais e de debate público”1. A primeira versão desta obra coletiva foi redigida pelo sociólogo Manuel Antonio Garretón (Universidad de Chile) e teve como base vários artigos publicados por ele em revistas acadêmicas. Os demais autores contribuíram com seções e parágrafos ao longo do texto e o cientista político Jonathan Hartlyn (University of North Carolina) coordenou a revisão final.

A obra é dividida em seis capítulos que procuram elaborar um “modelo geral” para a interpretação das transformações sociopolíticas e das tendências históricas da região. A princípio, os autores argumentam que os países latino-americanos estão se dirigindo, ainda que de forma irregular, a novas estruturas políticas e padrões de governança ligados fortemente às mudanças sociais que essas nações têm vivenciado nos últimos anos. Ou seja, ao contrário daqueles que procuram uma análise estrutural fundamentada em grandes paradigmas, os autores defendem um estudo das interrelações entre a economia, a política, a sociedade e a cultura através de hipóteses de médio alcance – capazes, segundo eles, de reagir à “excessiva generalização teórica” e aos modelos que pensavam a América Latina exclusivamente em torno de questões como “desenvolvimento”, “revolução”, “dependência”, “modernização” e “democratização”.

Para isso, todo o primeiro capítulo se volta para a discussão do conceito de matriz sociopolítica (MSP), uma ferramenta que, para os autores, permite uma análise mais integrada das interconexões entre o Estado, a política e as dimensões culturais e socioeconômicas da região. O conceito de MSP se fundamenta precisamente na idéia de que uma sociedade não se define apenas por sua economia, sua estrutura social, sua cultura ou sua política; mas pelo cruzamento de todas essas esferas. “A característica principal de qualquer matriz sociopolítica é a relativa interdependência de suas partes constitutivas – ou seja, o Estado, os partidos políticos e os diversos atores sociais –, retroalimentadas pela ideologia e pelas relações econômicas” (2007, p. 21). Com o conceito em mãos, os autores desenvolvem, no capítulo seguinte, a hipótese de que a MSP que mais prevaleceu na região entre 1930 e 1980 foi a matriz estatal-nacional-popular.

Na matriz dominante na América Latina, o Estado possuía um papel central na distribuição de recursos e na articulação das demandas sociais. Ou seja, aquela interdependência entre o Estado e o sistema de representação política se apresentava, nessa matriz, como uma verdadeira fusão de esferas. Segundo os autores, a política econômica da maioria dos países latino-americanos – basicamente fundamentada na industrialização por meio da substituição de importações e na forte intervenção do Estado na economia – surgiu a partir de uma “reação” ao isolamento internacional da região, e não de uma estratégia deliberada de desenvolvimento. De qualquer forma, a expectativa era que a industrialização trouxesse acumulação de riqueza, que seria distribuída através de programas governamentais.

Evidentemente, como notaram os autores, esse modelo de desenvolvimento não estaria completo sem uma dimensão ideológica. Na América Latina isso se efetivou, sobretudo, através da inclinação nacionalista que, no empenho de representar as diversas combinações culturais, legitimava a proteção dos interesses econômicos nacionais. A orientação nacionalista foi o elemento central das políticas dos Estados latino-americanos que, ao expressar uma identidade comum entre a população, buscavam fortalecer a lealdade ao governo e assegurar a disciplina perante a autoridade estatal. Como observam os autores, o nacionalismo se estendeu ao discurso político, ao sistema educativo e até mesmo às políticas de substituição de importações.

As transformações econômicas impulsionaram consideráveis mudanças na composição das classes sociais, de forma que, por um lado, a elite industrial se diferenciou dos exportadores agrícolas; e, por outro, os camponeses se transformaram em operários receptivos, por sua vez, ao recrutamento sindical e ao proselitismo partidário. Por isso, no que diz respeito ao regime político, as estruturas democráticas estiveram em permanente tensão com práticas autoritárias e semi-autoritárias. A espantosa velocidade das transformações sociais implicou em uma permanente desconfiança das oligarquias quanto à democracia e destruiu a crença das elites nos princípios liberais do gradualismo e das limitações do poder do Estado. Deste modo, à medida que a urbanização e a incorporação social de amplos setores da população se intensificavam, aumentavam a centralização do Estado e os mecanismos de controle sobre a sociedade civil, de forma que a democracia política jamais se consolidaria plenamente.

Mas as tensões e limitações do modelo latino-americano de industrialização logo impuseram problemas cruciais às políticas de desenvolvimento regional. Um dos principais desafios era a patente falta de incentivos para criar e implementar novas tecnologias que promovessem maior eficiência. “Embora os cientistas latino-americanos produzissem inovações tecnológicas, a falta de competitividade das empresas no mercado local levava à inexistência de imperativos comerciais que incentivassem a sua comercialização” (2007, p. 29). Com a globalização – um espaço social unificado com relações assimétricas entre seus componentes, na definição dos autores – aquela matriz não encontrou mais as condições para se sustentar. Esse assunto é discutido no capítulo 3.

Na economia contemporânea, ressaltam os autores, a industrialização é definida por um sistema integrado de comércio e de produção globais que se estruturam em deslocamentos dinâmicos na própria localização geográfica dos cada vez mais fragmentados processos de fabricação. Em outras palavras, enquanto a internacionalização se referia à mera expansão das atividades econômicas entre as fronteiras nacionais, o novo contexto mundial implica em uma crescente integração funcional daquelas atividades internacionalmente dispersas. As finanças globais também passaram por um processo de acentuada integração, provocando, por conseqüência, um visível enfraquecimento da capacidade das instituições econômicas nacionais em administrálas – ou mesmo regulá-las. Além disso, sabendo que a inovação não foi uma forte tendência na América Latina, a região se submeteu a um poderoso processo de expansão tecnológica dirigido por privatizações e desregulamentações, sobretudo no ramo da informática e das telecomunicações. Ainda assim, os autores acreditam que as forças internacionais não deixaram de forçar uma reestruturação nos modelos de desenvolvimento da América Latina ao contribuir, a seu modo, na erosão da velha matriz sociopolítica estatal-nacional-popular e na reintegração da região na economia mundial. A questão é, sugerem os autores, se a criatividade latino-americana – que desfruta de reconhecimento mundial na cultura, nas artes e na literatura – poderá articular-se às novas estruturas comerciais nas áreas científica, industrial e médica. “Em outras palavras, o modelo de desenvolvimento da região pode se estruturas de tal forma que permita a exportação de patentes, em lugar de somente pagar royalties?” (2007, p. 45).

Ao enunciar, no capítulo 4, os desafios contemporâneos impostos pela mudança da matriz sociopolítica, os autores advertem que a América Latina “não têm enfrentado o seu futuro de forma consciente e está longe de definir um novo e efetivo modelo de desenvolvimento” (2007, p. 68). No que diz respeito à democratização política, eles argumentam que, embora pareça improvável uma nova onda de ditaduras militares na região, os processos de democracia atualmente vigentes são incompletos, guardam aspectos autoritários e contam com instituições não-representativas suportando atores sociais que inspiram desconfiança na sociedade civil. A região sofre as maiores desigualdades na distribuição de renda em comparação com outras regiões do globo e conta com altos índices de exclusão social. A crescente insegurança na vida urbana gera uma ansiedade contínua na classe média, criando para este segmento uma situação semelhante àquela que sempre afetou as classes populares. Além disso, a redução do Estado e a decepcionante decadência do sistema de ensino público ameaçam seriamente a mobilidade dos setores populares.

Neste contexto, há um considerável esforço político para redefinir o papel das políticas estatais. Para os autores, no que diz respeito ao comércio internacional, essas políticas têm se dividido em dois níveis: por um lado, as práticas protecionistas nos países avançados e, por outro, as estratégias de desenvolvimento nas nações atrasadas. Essa dinâmica sugere uma profunda reorientação dos planos econômicos da região, pois vemos que as decisões do Estado não deixaram de ter um importante impacto nas cadeias globais de bens de consumo. Nessa nova matriz, ao levar o Estado a se concentrar na criação das condições de infra-estrutura, os governos se apresentam como os principais facilitadores dessa dinâmica, sem, contudo, se comprometerem diretamente na produção – como ocorria na matriz estatal-nacional-popular. Além disso, os acordos comerciais ou os mercados comuns parecem, na visão dos autores, mais um sinal do afastamento daquela velha matriz. Em vez de restringir o investimento estrangeiro, um novo nacionalismo econômico passa a defender os interesses do país por meio de ações diplomáticas em tratados de livre-comércio.

No capítulo 5, os autores observam que a América Latina assiste ao surgimento de várias tendências em múltiplas, e às vezes contraditórias direções, que contêm simultaneamente alguns elementos residuais do antigo modelo justapostos a modelos emergentes, em um processo que dificulta a identificação de qual tendência será duradoura e quais são apenas sintomas temporários dessa transição. Hoje, não há muita divergência na constatação de que as políticas de ajuste cristalizadas no Consenso de Washington causaram graves aumentos nos índices de pobreza e desigualdade social. As elites que defendiam o neoliberalismo como “motor ideológico” do sistema acreditavam que se deveria aliviar o Estado das pressões pela resolução dos problemas econômicos e sociais, mas recorriam sempre à intervenção estatal para a implementação de modelos adequados aos seus objetivos. As crises financeiras e o crescimento do desemprego nos anos 1990 também desacreditaram a legitimidade neoliberal. Intelectuais, movimentos sociais e diversas organizações da sociedade civil criticam os efeitos culturais, sociais e políticos dos modelos em voga, mas não têm sido capazes de propor uma alternativa desenvolvida.

Ao analisar o papel das instituições políticas e do governo nessa mudança de matriz, os autores defendem uma modernização estratégica do Estado fundamentada na descentralização política, no redirecionamento de recursos estatais para as funções distributivas e no reforço do sentimento de “estaticidade” – ou seja, no conjunto de ações de institucionalização do sistema partidário que favoreça a percepção de que o Estado pertence à sociedade. Dificilmente, argumentam os autores, será possível o surgimento de um novo movimento social central que dê significado pleno à multiplicidade de demandas socioculturais dos países latino-americanos. Uma nova matriz precisa acomodar essa diversidade em um sistema interdependente de autonomia, tensão e interação entre eles, pois “uma política que ignora as necessidades sentidas pelos sujeitos é incapaz de enfrentar as demandas sociais” (2007, p. 121). Assim, os autores defendem que a política terá que se transformar nessa dimensão central que assegura a existência do Estado em um mundo globalizado e com sociedades fragmentadas.

Por fim, no capítulo 6, os autores propõem uma nova matriz sociopolítica “eticamente desejável”, na qual os países latino-americanos conquistassem maior autonomia em sua inserção à economia mundial, incentivassem a poupança e os investimentos locais, estabelecessem acordos consolidados de integração regional e estimulassem a diversificação econômica e a prudência fiscal. Nessa matriz, a democracia seria aceita pelo mercado; os movimentos sociais teriam capacidade de influenciar o regime; os projetos de modernidade combinariam racionalidade, subjetividade e memória histórica; e a sociedade civil se moveria em direção ao fortalecimento das identidades étnicas, de gênero, religiosas e culturais, até se tornar um contrapeso para as elites econômicas e políticas.

Através de um quadro comparativo entre a matriz “neoliberal estimulada pelo mercado”, a “ausência de matriz, marcada pela decomposição e tendências”, e essa matriz ideal “multicêntrica”, os autores procuram deixar claro, na tradição do Latin American Studies Association, que todo o esforço intelectual da obra é direcionado no sentido de demonstrar a possibilidade dessa última proposta política. Eles registram que, ainda que sua argumentação esteja construída com base na observação empírica, esta não deixa de conter suposições carregadas de valores normativos e de abraçar o desejo de que os resultados “melhorem a qualidade de vida e ampliem as possibilidades futuras das sociedades latino-americanas” (2007, p. 134).

Manuel Antonio Garretón, que recentemente foi laureado com o Premio Nacional de Humanidades y Ciencias Sociales, é considerado uma das principias vozes da sociologia no Chile. Sua obra procura discutir processos de democratização, Estado e sociedade, regimes autoritários, atores sociais, educação superior, reforma do Estado, políticas públicas e diversos outros temas relacionados a uma constelação de questões cruciais aos países latino-americanos. Uma das características mais acentuadas em sua prática acadêmica é precisamente a sua atuação em favor do desenvolvimento das Ciências Sociais no Chile, em particular, e na América Latina, em geral. Mais do que apenas uma especialidade acadêmica, sua sociologia procura firmar-se como uma prática socialmente engajada.

Assim, vemos que América Latina no século XXI pode ser interpretado como uma espécie de manifesto por uma nova utopia latino-americana, constituída por uma matriz sociopolítica ética, humanista, democrática e multicultural. Ao lado de um texto extremamente denso e enxuto, que, em 134 páginas de texto e mais 17 páginas de bibliografia, articula uma análise rigorosa da conjuntura sociopolítica regional a uma visão que não esconde certa subjetividade, a obra propõe um coerente projeto político de transformação social e de posicionamento da América Latina no mundo globalizado.

Nota

1 Latin American Studies Association.  Acesso em: 10 ago. 2008. [Tradução livre].


Resenhista

André Azevedo da Fonseca – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP – Franca/SP. E-mail: andre.azevedo@uniube.br


Referências desta Resenha

GARRETÓN, Manuel Antonio (Org.). América latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. Resenha de: FONSECA, André Azevedo da. História Revista. Goiânia, v.13, n.2, p. 567-572, jul./dez.2008. Acessar publicação original [DR]

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