PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo EDUSP; Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração – EDUSC, 1999 (Ensaios Latino-Americanos; 4). Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.23, p. 234-238, jul., 2000.
Dois são os campos em torno dos quais Maria Ligia Coelho Prado centra suas reflexões em “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos”: a história da cultura e das idéias políticas. Surgida em 1999 — em edição esmerada e muito bem ilustrada — numa publicação conjunta das Editoras da Universidade de São Paulo e da Universidade do Sagrado Coração, a obra reúne — revistos e ampliados — um conjunto de textos que foram apresentados pela autora como tese de livre docência ao Departamento de História da Universidade de São Paulo. Se cada um deles representa uma abordagem sobre uma América multifacética, em conjunto eles constituem um esforço de entendimento das peculiaridades deste universo que é o continente latino-americano.
Centrada no século XIX, a obra percorre diversos temas e questões — que, de fato, entrelaçam-se — fundamentais para a compreensão de um período crucial da história do continente e das nações que o compõem. E, ainda, o faz buscando, em alguns ensaios, fugir aos limites nacionais e propondo, através da história comparada, pensar semelhanças e diferenças entre o Brasil de colonização lusa e os Estados Unidos de colonização anglo-saxônica, em relação aos países americanos de colonização hispânica. Como questões importantes para pensar o século e o espaço em questão, a autora escolheu temáticas que vão das relações entre Universidade, Estado e Igreja à construção das identidades nacionais, do papel dos intelectuais latino-americanos nos debates de sua época sobre a democracia e a participação popular no processo político, ao âmbito do feminino, expresso, tanto na sua participação nas lutas pela independência, quanto no universo de suas leituras no XIX.
Os dois primeiros capítulos do livro retomam um tema capital da primeira historiografia latino-americana: o momento da independência em relação do domínio espanhol. Propõem a eles, contudo, um tratamento que se distancia da produção mais tradicional, ocupada fortemente em exaltar a atuação dos líderes das guerras de emancipação.
No primeiro, “A participação das mulheres nas lutas pela independência política na América Latina”, a autora lembra que, apesar da intensa renovação teórico-metodológica da historiografia contemporânea, a participação feminina nas história da independência da América Latina é território ainda pouco ou nada explorado. Desta forma, e “revertendo a perspectiva de alheamento da mulher das coisas públicas” preocupa-se em desvendar o papel desempenhado por elas nos eventos em questão. Falando da sua participação como mensageiras, como soldado nos exércitos camponeses, ou das suas atividades acompanhando as jornadas das tropas — cozinhando, costurando ou lavando —, das ricas criollas de famílias tradicionais ou de mulheres pobres ou mestiças, o texto de Maria Ligia Prado evidencia a necessidade de uma maior consideração por parte da historiografia da presença feminina num universo que tradicionalmente é percebido como especificamente masculino. Igualmente esclarecedor é o seu alerta para que esta reavaliação não incorra na perspectiva reducionista que, quando reservou-lhe algum papel nesta história, circunscreveu-o de forma a enquadrá-lo não “no espaço público onde efetivamente deu-se sua atuação política”, mas a recolhendo ao circuito do espaço privado, “já consagrado como ‘o lugar da mulher’ “.
Já em “Sonhos e Desilusões nas Independências Hispano-Americanas”, percorrem-se os caminhos do pensamento e da prática políticorevolucionária do colombiano Francisco José de Caldas e do mexicano Miguel Hidalgo y Costilla. O primeiro, postulando uma nova concepção de ciência que questionava os pressupostos escolásticos nos quais se baseara o conhecimento no período colonial, assumiu também uma posição política que o levou a abraçar a causa da independência e, em nome dela, perder a vida. O segundo, levou esta posição ao extremo de conduzir uma insurreição popular que mobilizou as massas em um movimento que fez tremerem as bases do domínio colonial no México. No entanto, “tempos de transformação trazem em si grandes esperanças e sua outra face, as inevitáveis frustrações”, lembra a autora, ao passar a discutir as posições crescentemente autoritárias e conservadoras que foram sendo assumidas por muitos dos que, à época da independência, haviam-se guiado pelas doutrinas liberais. Desta forma ela nos faz acompanhar o movimento pelo qual — no período posterior às guerras de emancipação — aqueles que as tinham iniciado reivindicando a liberdade, passaram a advogar em nome da autoridade.
Dois intelectuais liberais — o argentino Esteban Echeverría e o mexicano José María Luis Mora — são o objeto de análise do terceiro capítulo da obra, em que se analisa suas particulares concepções de democracia e soberania popular, uma vez que justificavam a exclusão dos setores populares da arena política. O ensaio acompanha a reflexão dos dois pensadores sobre os significados das liberdades e da soberania popular, avaliando em que medida a mesma estava condicionada pelas contingentes situações políticas vivenciadas em seus países. Se suas trajetórias pessoais realizam-se por caminhos diferentes, esclarece-nos a autora — Echeverría que fez parte da Geração de 37 não viveu para ver o fim do domínio rosista na Argentina, enquanto que Mora exerceu intensa atividade política tendo participado do governo liberal de Valentín Gómez Farías —, ambos convergem em, a par de sua defesa dos pressupostos da liberdade e da soberania popular, propor mecanismos legais para evitar uma concreta e perigosa participação dos setores populares. Estes seriam desqualificados como sujeitos políticos em favor dos ilustrados que saberiam melhor guiar-se pelo império da razão. Sobre o pensamento e preocupações de ambos, a autora afirma que estavam em consonância com “a situação histórica de seus países e (…) plenamente adequados à realidade latino-americana”, para concluir fecundamente que não se deve concordar com “certas interpretações que separam (…) de um lado , o ‘purismo’ dos pressupostos liberais e democráticos e, de outro ‘a crua e violenta realidade latino-americana’ “.
Na América Espanhola viveu-se, no período pós-independência, uma época de intenso debate entre os defensores da manutenção da universidade colonial e aqueles que propugnavam pela sua extinção, uma vez que viam-na como baluarte do atraso e do domínio da Igreja. Estes últimos propunham que, em substituição aos antigos estabelecimentos de ensino, fossem criadas novas instituições, alicerçadas nos princípios liberais. Este é o objeto do quarto artigo da obra — “Universidade , Estado e Igreja na América Latina”— em que aborda-se o tema das universidades desde o século XIX, tomando-as a partir do campo da história das instituições e das idéias “que devem ser pensadas dentro de um certo contexto sócio-político”. Desta forma, propõe-se a autora a acompanhar, em países diferentes, formas distintas de pensar o tema, elencando o Chile e o México como campo de análise, segundo as especificidades sócio-políticas dos dois países. Por fim, ela aborda o Brasil, em que a primeira universidade surge já em pleno século XX para avaliar como as relações entre Estado, Igreja e Universidade aparecem compondo um quadro em que estão entrelaçados o universo político-ideológico, as lutas sociais e as soluções educacionais propostas.
“Lendo Novelas no Brasil Joanino” estuda textos inscritos neste gênero literário publicados pela Imprensa Régia no Brasil entre 1810 e 1818. A autora propõe-se aí, a analisar a possível “existência, neste período, de um público feminino, provável leitor desses livros, e falar das restrições impostas pela censura oficial à seleção dos textos impressos”. O trabalho de Maria Ligia Prado, porém, não só traça respostas para tais questões, como remete os leitores a outras e igualmente importantes indagações, e que se ligam à história das práticas de leitura. A autora identifica aí, a tensão central de toda história da leitura, entre concepções que postulam a absoluta eficácia do texto (ligadas ao campo de sua produção), ou as que percebem-na como uma prática criativa que inventa conteúdos e significados particulares, não redutíveis às intenções de autores, editores ou censores. Assim, conduzindo-nos ao universo das publicações destinadas às mulheres leitoras do Brasil Joanino, Maria Ligia Prado nos remete, também, aos paradigmas de leitura predominantes neste período e lugar, aos diferentes “modos de ler”, com seus gestos próprios e seus usos particulares do livro. Temas estes, indispensáveis para pensar-se em como os textos escritos, as “novelas para mulheres” neste caso, puderam ser apreendidos, compreendidos e manipulados.
O sexto ensaio, “Para ler o Facundo de Sarmiento” detém-se sobre um dos textos basilares do pensamento político latino-americano e referência fundamental do pensamento argentino. Obra polêmica, matriz de incontáveis e apaixonadas discussões, “Facundo ou Civilização e Barbárie”, foi publicado pela primeira vez em 1845. Sobre ela, a autora preocupou-se em localizar a produção da obra em sua época, analisar suas partes constitutivas e oferecer um quadro dos principais temas e debates que o livro suscitou e tem suscitado. Desta forma, avalia como imbricadas na dicotomia apresentada por Sarmiento entre civilização e barbárie — encontram-se as propostas do autor para um projeto político alternativo para a Argentina, projeto este calcado nos supostos da doutrina liberal e no unitarismo.
E, indo além da análise desta antinomia que é a faceta mais conhecida da obra, Maria Ligia Prado recupera a produção historiográfica mais recente, apontando outras tantas leituras possíveis. Estas podem deter-se, por exemplo, na análise do livro de Sarmiento como representação dos interesses de determinados segmentos sociais da Argentina da época, ou preocupar-se com outras franjas do texto, suas “sutilezas e ambigüidades”, como chama a autora. É assim que o campo, locus da barbárie, é também o espaço do heroísmo, “envolvido em certa pureza e integração com a natureza que a civilização teria, contraditoriamente, que destruir”. Ou ainda a avaliação sobre a aproximação de Sarmiento com o mundo da tradição oral, uma vez que, embora partidário convicto da importância da educação letrada, foi com depoimentos deste tipo que ele construiu suas considerações sobre a vida dos caudilhos.
Enquanto Sarmiento pensa a natureza argentina sob o signo da negatividade — espaço selvagem que cerca e oprime, lugar por excelência da barbárie — escritores e pintores norte-americanos percebiam-na, na metade do século XIX, como fonte cultural e moral e como base da auto-estima nacional. Esta perspectiva particular sobre a wilderness e sua articulação com a construção da identidade e do nacionalismo norte-americano, é o tema de “Natureza e Identidade Nacional nas Américas”. Neste ensaio, a autora analisa a construção de um repertório de imagens nacionais nos Estados Unidos, calcados na força regeneradora da sua natureza — jovem, vigorosa e pura — em contraste com o desgastado mundo europeu; natureza vista sob o signo da positividade, e em benéfica comunhão com seus habitantes e suas instituições.
Assim, enquanto para Sarmiento a solidão dos vastos espaços vazios, que colocam o homem em contato com a natureza, implica na ausência de respublica e favorece o despotismo e a barbárie, Frederick Jackson Turner revolucionava a historiografia norte-americana do período, propondo que era da free land das florestas que brotava a democracia. Ali onde Sarmiento encontrava um fator de dificuldade para os gaúchos organizarem-se como sociedade civil, Turner via a possibilidade de brotar um individualismo que era promotor da democracia. A fronteira, ponto de encontro entre a civilização e a wilderness, é para ele um espaço regenerador, traduzindo-se em renascimento e rejuvenescimento.
Explorando as construções do imaginário americano, Maria Ligia Prado analisa também neste ensaio, o diálogo travado entre os textos escritos e o repertório iconográfico, especialmente o da chamada Escola do Rio Hudson, cuja perspectiva sobre a natureza norte-americana era igualmente edulcoradora. Emergem daí cenários de paisagens intocadas, de uma natureza não-domesticada, que igualmente contribuíram para a elaboração da identidade nacional. Era, assevera, “uma arte nacionalista, que pretendia afirmar que a natureza atingira sua forma mais pura e elevada nos Estados Unidos”.
Com uma narrativa que consegue ser fluente sem fugir, em nenhum momento, do rigor científico e da erudição, nem incidir na simplificação dos conceitos, “AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XIX. Tramas, Telas e Textos” é uma preciosa via de acesso a uma época particularmente importante do universo latino-americano. Expressão da maturidade intelectual de sua autora, a obra nasceu clássica e percurso obrigatório para todos que pretenderem entender este universo, em — nas palavras da autora — suas tramas, telas e textos.
Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, RS.
[DR]
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