América latina no século XIX: tramas, telas e textos | Maria Lígia Coelho Prado
Não existe historiador que se preze que jamais tenha tomado contato com as obras de Bloch, Thompson, Duby, somente para citar alguns, independentemente da área de atuação ou do objeto de estudo de sua especialidade. Isto se dá não apenas por serem autores ditos “clássicos”, mas, sobretudo, por tratar-se de textos cuja leitura permite discutir, transcendendo a problemática proposta, a própria disciplina histórica. O livro da Profa. Maria Lígia Prado, sem ter a pretensão de ser um “clássico”, convida o leitor à analise de diferentes possibilidades de abordagem para a história. Apesar da delimitação sugerida pelo título, não se trata de um livro restrito aos latino-americanistas. Pelo contrário, interessa a todos que buscam refletir sobre a escrita da história, com ênfase sobre a (nova) história política e os imaginários sociais. Utilizando o recurso da análise comparativa, Maria Lígia Prado tece a trama do século XIX latino-americano abrindo mão de uma narrativa cronológica, ao promover uma separação temática dos ensaios, sem, no entanto, abandonar, no enredo subjacente, os marcos temáticos da história latino-americana. Assim, o livro começa com a guerra de independência e termina com a discussão dos projetos de identidade nacional, passando por propostas de independência frustradas, por projetos pós-independência, pela consolidação de instituições, pela literatura e vida cultural e, ainda, pela consolidação do Estado Nacional. Em cada um desses tópicos houve a escolha de um foco privilegiado para a análise.
O recurso da história comparativa, articulado com a (nova) história política, é muito bem explorado com o estudo de exemplos de alguns países, que, ao serem inter-relacionados, contemplam uma discussão mais global sobre a América Latina. A proposta da autora é seu livro sirva também para pensar o Brasil no século XX, já que, afinal, a história brasileira não fica à parte dos projetos e da luta política desenvolvidos no século XIX na América Latina. O discurso liberal, responsável pelos projetos nacionais das independências, sempre foi marcado pela exclusão dos setores populares — abrindo o flanco para o florescimento do autoritarismo — e sempre buscou compreender a realidade latino-americana, em maior ou menor escala, a partir da adaptação de modelos europeus.
No primeiro ensaio (A participação das mulheres nas lutas pela independência política da América Latina), a imagem tradicional de uma luta independentista é esfacelada com a inclusão das mulheres enquanto sujeitos políticos extremamente ativos, que, assim como os homens, participaram de todas as formas de luta, assumiram tal escolha e, na maioria das vezes, pagaram essa opção com a vida. As histórias oficiais, ao transformarem-nas em mitos nacionais, despolitizaram tal participação: “foram mulheres rebeldes, insubordinadas, agindo fora das regras e das normas, que ganharam respeitabilidade, transformadas em modelos de esposa e mãe, glorificadas por todas as virtudes cristãs intimamente trançadas com as virtudes patrióticas. […] Os biógrafos retiraram-nas do espaço público, onde efetivamente se deu sua atuação política, e recolheram-nas ao espaço privado, já consagrado como ‘o lugar da mulher’”(p. 51). Essa passagem é bastante ilustrativa das possibilidades postas por uma (nova) história política que procura analisar os excluídos dos projetos sociais vencedores, não mais na tentativa de elaboração de uma “história dos vencidos”, porém na busca da compreensão mais ampla da história, da política, dos movimentos sociais, enfim, da sociedade. Nesse sentido, o embate político não ocorre apenas no espaço convencional — a participação das mulheres como atores históricos não se dá apenas no lar, por exemplo —, mas em todos os campos, como na imprensa, na luta armada etc.
O ensaio seguinte (Sonhos e desilusões nas independências hispano-americanas) dedica-se aos projetos forjados na luta independentista, os quais tomarão um duro choque de realidade no processo de construção de uma nova ordem política. A metodologia comparativa sobressai tanto na análise mais detida dos “sonhos” de Francisco José Caldas (Colômbia), Miguel Hidalgo e José Maria Morelos (México) como nas “desilusões” de Carlos María de Bustamente (México), Bernardo de Monteagudo (Argentina), Antonio José de Irisarri (Chile) e mesmo de Simon Bolívar. A independência torna-se uma frustração porque teve desenlace diferente do previsto pelos líderes, que não souberam compreender os problemas políticos do Novo Mundo. O autoritarismo, como proposta política, deixa sua marca indelével na história latino-americana, criando uma nova ordem de exclusão para os “de baixo”, que “teriam de se organizar, lutar, sofrer e morrer para alcançar seus objetivos. Não foram as lutas de independência que mudaram sua vida.” (p. 73).
Novamente a autora recorre à comparação ao abordar, no terceiro ensaio (Mora e Echeverría: duas visões da questão da soberania popular), as idéias de Estebán Echeverría (Argentina) e José María Luis Mora (México). Propostas liberais, cujo discurso da exclusão dos setores populares merece ser entendido, como tão bem demonstra Maria Lígia Prado, no contexto em que se deram, em uma situação de duro embate político com as posições conservadoras. Para ela “o texto de Echeverría, como os escritos de Mora, respondiam às questões políticas colocadas em pauta pela situação histórica de seus países e estavam plenamente adequados à ‘realidade’ da América Latina” (p. 90). Como sugestão de reflexão a autora propõe que se investiguem os motivos pelos quais as classes populares não conseguiram fazer frente — a despeito de inúmeras rebeliões e levantes — aos projetos excludentes implementados pelos setores vencedores.
De acordo com a trama de eventos escolhida, o ensaio seguinte (Universidade, Estado e Igreja na América Latina) une a análise da (nova) história política com a história das instituições e das idéias, discutindo a consolidação (ou não) de um tipo de instituição que sempre ocupou um papel central nos debates sobre a educação. O recurso da comparação novamente foi utilizado, com a eleição do Chile, México e Brasil. Neste último exemplo há uma defasagem temporal que avança a discussão para o século XX sem que isso, no entanto, represente uma incongruência metodológica, pois a comparação, neste caso, está se dando pela análise de momentos históricos semelhantes — a consolidação das bases de um novo sistema de educação superior — e não por uma cronologia no sentido estrito. A tônica geral, mais uma vez, é o candente embate sobre as universidades, que tem como pano de fundo a exclusão (em maior ou menor grau) dos setores populares. Aos conservadores coube o papel de defender a universidade colonial, onde ela existia vinculada à Igreja. Os liberais, por sua vez, se empenharam ao máximo em destruir essa instituição, na tentativa de implementar um novo sistema educacional. Os maiores êxitos destes últimos acabaram por se traduzir na tardia criação de universidades católicas, ou mesmo na extinção das existentes. Mais uma vez, a idéia da autora de que o livro sirva para discutir o Brasil mais contemporâneo se faz presente, já que, a meu ver, muito do debate acerca da crise da universidade brasileira hoje tem suas raízes no século XIX, assim como muitos dos argumentos evocados. Os exemplos de fechamento e criação de universidades em nome de uma democratização dessa instituição e do ensino (que continuou excluindo os setores populares), alegando a necessidade de preparação de mão-de-obra mais qualificada para a construção nacional, muito se assemelha ao atual debate brasileiro.
Com o quinto ensaio do livro (Lendo novelas no Brasil Joanino) Maria Lígia Prado insere de vez o Brasil na discussão sobre a América Latina, procurando entender parte da complexa rede que envolve a análise de práticas de leitura pelo historiador. A matriz metodológica (e não teórica, diga-se de passagem), neste caso, não poderia ser outra senão Roger Chartier. A autora envereda pela análise da impressão régia, dos mecanismos de censura, da escolha das obras, da venda, do público, das práticas de leitura, das temáticas e dos valores morais das novelas publicadas etc. Novamente o tema da exclusão é analisado quando é feita a discussão de um público leitor feminino. A despeito de uma grande pluralidade de textos publicados — no que se refere à moral e ao comportamento das mulheres — e a despeito de critérios nem sempre coerentes e uniformes de escolha das obras pela impressão régia, Maria Lígia Prado consegue identificar traços comuns nesta bibliografia, no que diz respeito às atitudes das heroínas: “seres frágeis à beira do pecado, que deveriam abandonar a sedução dos sentidos e entregar-se à condução da razão” (p. 143). Ao final do texto a autora brinda o leitor com um resumo de cada novela do período. Apesar de o livro não ter proposto essa questão, indagações sobre uma eventual comparação entre a narrativa construída para essas heroínas e a narrativa idealizada das heroínas nacionais estudadas no primeiro ensaio formaram-se logo na mente deste leitor.
Maria Lígia Prado promove, em Para ler o Facundo de Sarmiento, uma competente análise de uma das obras políticas mais significativas da Argentina e da América Latina. Metodologicamente, esse ensaio liga-se tanto ao da análise das idéias políticas de Mora e Echeverría como ao das novelas joaninas. Em minha opinião, é o texto que melhor sintetiza a proposta do livro, sendo capaz de suscitar a discussão acerca dos debates de consolidação de um projeto nacional ao lado de uma análise de cunho cultural mais aprofundada, com destaque à história da produção, circulação e recepção dessas idéias. A força de Facundo auxilia a análise na medida em que esse é o texto-índice do autor; é a fonte, por excelência, para a discussão das idéias de Sarmiento. As múltiplas versões/edições da obra ao longo do tempo, bem detalhadas por Maria Lígia Prado, também auxiliam a compreensão da interrelação entre obra e contexto, ainda mais quando nos recorda que a primeira publicação se deu na forma de folhetim em jornal chileno, quando do exílio do autor. Apesar de o foco estar em Sarmiento e em sua obra maior, o contexto geral da América Latina jamais é esquecido pela autora, que teceu diversos pontos de contato da temática geral com diferentes países, entre eles o Brasil. A discussão dos projetos políticos liberais para a América Latina — que, apesar do embate com o conservadorismo, mantém a ordem da exclusão — retorna ao cenário, trazendo consigo a temática do autoritarismo.
No último ensaio (Natureza e identidade nacional nas Américas), Maria Lígia Prado mostra, utilizando novamente o recurso da história comparativa, como concepções semelhantes acerca da relação entre o homem e a natureza desembocam em projetos políticos diferenciados. Os artistas norte-americanos da Escola do Rio Hudson enfatizaram a grandiosidade dos elementos naturais, ajudando a formulação de um projeto otimista. Por outro lado, no mesmo período, a produção artística argentina não apresentou, com tanto ímpeto, a grandiosidade natural e impulsionou projetos políticos opostos. Os mesmos temas — “a natureza selvagem, a solidão das planícies, as grandes extensões de terra vazias em que o homem entra em contato com a natureza” (p. 215) —, e as correspondentes representações pictóricas, redundaram em interpretações diversas sobre a sociedade: “enquanto o norte-americano retira desse encontro a esperança de um futuro radioso […], o argentino entende esse contato como produtor do despotismo, da ausência da res publica e da transformação do gaúcho em bárbaro” (p. 215). Seguindo a trilha de Baczko, esse texto defende que do mesmo modo que o imaginário pode transformar a sociedade, ele é capaz de produzir relações, modos de registro e memória, como, por exemplo, representações pictóricas; e estas formas de registro, por sua vez, são também transformadoras. Sob a ótica das representações sociais, tais registros não podem mais ser considerados como uma totalidade, passível de leituras universalizantes; ao contrário, devem ser entendidos na sua relação íntima com os elementos simbólicos da sociedade que os produziu.
O livro América latina no século XIX: tramas, telas e textos, em seu conjunto, também mostra que, assim como as representações pictóricas aludidas acima, os discursos políticos, os projetos de universidade, as “novelas para senhoras” etc. são produtos de uma sociedade e, como tais, são também vetores de transformação desta sociedade. Estes objetos, do mesmo modo que as ações políticas a eles relacionadas, também não são passíveis de leituras universalizantes pelo historiador e devem ser entendidos à luz do contexto em que ocorreram. No caso da discussão dos projetos nacionais latino-americanos, esse contexto não pode ser restrito aos limites das fronteiras nacionais, o que é mais ou menos aceito pelos historiadores brasileiros no que se refere à América Hispânica. As inter-relações colocadas por Maria Lígia Prado evidenciam que os pontos de contato entre a América Hispânica e a História do Brasil são profundos e complexos, impulsionando um vasto campo de pesquisa, que necessita cada vez mais ser ampliado. A metodologia comparativa e o lado do referencial teórico da (nova) história política — exemplarmente utilizados no livro — podem fornecer o suporte necessário para tal tarefa.
Resenhista
André Porto Ancona Lopez – Doutor e Mestre em História Social pela Fflch-USP; Especialista em arquivos pelo Ieb-USP; Professor do Departamento de História da Universidade Estadual Maringá; apalopez@uol.com.br; http://sites.uol.com.br/tipologia/
Referências desta Resenha
PRADO, Maria Lígia Coelho. América latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp; Bauru: Edusc, 1999. Resenha de: LOPEZ, André Porto Ancona. Diálogos. Maringá, v.6, n.1, 197-201, 2002. Acessar publicação original [DR]