PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2018. Resenha de: COACCI, Thiago. Como funciona a despatologização na prática? Revista Etudos Feministas, v.27, n.2, Florianópolis, 2019.
Muita tinta tem sido gasta sobre a (des)patologização das transexualidades (Guilherme ALMEIDA; Daniela MURTA, 2013; Berenice BENTO; Larissa PELÚCIO, 2012; Daniela MURTA, 2011; Amets SUESS, 2016). O assunto já foi tema de reuniões no Ministério da Saúde, de debates em várias universidades e foi discutido também na Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde 2008, a OMS iniciou o processo de reformulação de sua Classificação Internacional de Doenças, a CID. Esse documento orienta as práticas e as políticas de saúde em todo o mundo. Até a décima revisão, publicada em 1990, as formas de vida trans eram classificadas como uma patologia mental e traduzidas no diagnóstico F64.0 – transexualismo, dentre outros códigos similares. É essa classificação, em conjunto ao DSM, que tem orientado os documentos oficiais da política pública brasileira do processo transexualizador1.
Uma das principais demandas dos movimentos internacionais de pessoas trans era justamente a despatologização dessas experiências, isto é, sua retirada desses manuais e, principalmente, sua retirada do capítulo relativo aos transtornos mentais. Diversos grupos como o GATE* e a TGEU2 se mobilizaram para influir nesse processo. Participaram das reuniões, fizeram campanhas e mobilizações internacionais para sensibilizar as/os pesquisadoras/es e profissionais envolvidas no Grupo de Trabalho responsável por repensar as práticas de cuidado com essas pessoas. O desejo sempre foi pela despatologização, todavia, como Guilherme Almeida e Daniela Murta (2013) já chamavam atenção, fazendo coro a algumas organizações do movimento social, despatologizar não pode ser sinônimo de descuidar ou desassistir. A despatologização não poderia, nem deveria implicar perda de direito para essa população.
Em junho de 2018 a OMS publicou oficialmente a versão final do texto da décima primeira revisão a CID. Há alterações significativas na forma como esse documento representa as experiências trans, que já não se encontram mais topograficamente no capítulo de transtornos mentais. O nome do código também se alterou e não é mais utilizado o termo transexualismo, posto que agora é possível classificar como Incongruência de Gênero, dentro de um capítulo específico sobre Condições Relacionadas à Saúde Sexual (Thiago COACCI, 2018). O sentido concreto dessas mudanças ainda não é certo e está em disputa. Há quem anuncie alterações positivas radicais, mas há também quem interprete que mais uma vez a CID mudou sem mudar.
O mundo oficial, dos documentos e manuais é extremamente importante e influente, mas nem sempre funciona como um espelho para a prática. É sobre isso que Marco Aurélio Máximo Prado nos convida a pensar, não sobre a despatologização nos manuais, mas sobre a prática.
Ambulare é fruto das suas experiências no Centro de Referência para a Atenção Integral em Saúde Transespecífica (CRAIST), do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Após uma longa e frutífera trajetória acadêmica nos estudos de gênero e sexualidades, inclusive com diversas reflexões teóricas sobre a despatologização das transexualidades a partir da análise dos discursos psi* (Leonardo TENÓRIO; Marco PRADO, 2016a, TENÓRIO; PRADO 2016b), o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sentiu a necessidade de se reinventar e fazer algo que ainda não havia feito em sua experiência profissional: sair de seu gabinete, das salas de aula e se inserir no dia a dia de um ambulatório trans. Conseguiu um período sabático da UFMG e, por três meses, integrou a equipe do CRAIST, trabalhando no acolhimento dos usuários e usuárias do Centro.
O CRAIST se destaca no cenário nacional, pois é um dos serviços mais antigos ainda em funcionamento. Iniciado, em 2007, a partir do projeto Em Cima do Salto de Flávia Teixeira, antes mesmo da criação da política nacional do processo transexualizador. Se destaca ainda por buscar se pautar por um modelo de cuidado diferenciado, orientado pela despatologização, pelo reconhecimento e pela valorização das individualidades na trajetória de cada sujeito que adentra suas portas. É nesse contexto que Marco buscou se inserir.
Pouco a pouco, a partir de sua experiência de convívio com a equipe, com os usuários e as usuárias, Marco foi se tornando ambulare, esse personagem que dá nome ao livro e que rompe as fronteiras do humano e da individualidade e se funde com paredes, salas, macas, portas e pessoas. Esse corpo-lugar coletivo, habitado por tantas pessoas, é o sujeito que nos guia pelo livro em um texto que mistura diário de campo ficcionalizado, autoetnografia e um ensaio teórico, resultando em uma narrativa na fronteira do real e do ficcional, do acadêmico e do literário. Para setores mais tradicionais da academia, a escrita de Ambulare pode estranhar, mas se harmoniza bem na tradição feminista e queer que tem se recusado a traçar uma linha radical separando a teoria de outras formas de produção de conhecimento e que se faz presente nos textos de autoras tão distintas como Audre Lorde (2007) e a recente obra de Maggie Nelson (2017). Ambulare é Marco e ao mesmo tempo não é, é mais. É um devir ambulatório colocado em movimento pelos encontros, desencontros e afetos das vidas que ali habitam ou mesmo que apenas por ali passam. Marco jamais se torna ambulare por completo, mas a cada encontro segue diferindo.
A despatologização na prática do ambulare é o cuidado na perspectiva que não define ponto de partida, nem de chegada. É o processo contínuo e permanente de escuta, de desclassificação e desconstrução. Por mais que lutemos contra, as tramas do poder atravessam nossas vidas, formatam nosso ser e subjetividade. O olhar de Marco, mesmo que inadvertidamente, era guiado por essa lógica hiperclassificatória que fundamenta os diagnósticos. Não foram poucas as situações narradas em que Marco insistia em classificar, para logo em seguida ser deslocado pelas pessoas com quem interagia. Ao perguntar à Manuela e à Thania se sempre tiveram sexo lésbico, foi indagado pela primeira: “- como assim relações lésbicas? […] Não, eu tenho relações heterossexuais, não curto mulheres lésbicas, só transo [com] mulheres bissexuais ou heterossexuais” (Marco PRADO, 2018, p. 78). A forma como estava tradicionalmente acostumado a classificar as relações, pessoas, gêneros e até mesmo órgãos e práticas sexuais simplesmente não fazia sentido para muitas daquelas vivências. Ambulare não é o relato de uma experiência perfeita, sem erros e sem conflitos, mas da vivência do paradoxo, da convivência com incontáveis e permanentes conflitos, da ausência de soluções permanente, e principalmente da abertura para a escuta, para os afetos, para as (re)invenções momentâneas.
Arrisco dizer que a reflexão mais potente e inovadora do livro é a forma como a temporalidade é abordada, sendo um fio condutor dos relatos e reflexões. Os protocolos do processo transexualizador impõem uma temporalidade única a todas as pessoas que chegam até o serviço. Na lógica cisnormativa que orienta esses documentos oficiais, a temporalidade funciona como uma série de checkpoints e fronteiras. Como se, após dois anos de acompanhamento pela equipe interdisciplinar, magicamente a fada da maioridade transexual balançasse sua varinha de condão e tornasse a pessoa uma transexual verdadeira. Como se fosse possível definir um momento exato em que alguém transita de um gênero para o outro: ontem eu era homem, hoje sou mulher! Isso não funciona assim fora do mundo da formalidade dos documentos.
Ambulare traz uma reflexão fundamental sobre o tempo e a temporalidade para pensar a despatologização na prática. A temporalidade ganha um sentido único para cada vida que habita aquele espaço. O tempo de Bya era da urgência, das marcas de um passado que insistia em se fazer presente. Já Caio vivia outro tempo, programava iniciar a hormonização e outros procedimentos que pudessem alterar seu corpo após o término da faculdade. Roberta Close de Ininté precisou de anos para se preparar para chegar ao ambulare. Já Deborah chegou sem agendar, decidiu ali, na hora, que queria ser atendida. Despatologizar e desclassificar, na prática, mais do que não impor um ponto de partida e um de chegada, é também respeitar o tempo de cada itinerário individual. É compreender que algumas pessoas não podem esperar para agendar um atendimento daqui algumas semanas, não podem esperar para ver mudanças em seu corpo, outras não só podem, como desejam esperar. Se despatologizar não pode significar descuidar e desassistir, então, a temporalidade individual de cada pessoa que habita o ambulare deve ser levada em conta.
Dessa maneira, Ambulare se junta à rica literatura sobre o processo transexualizador e a (des)patologização da transexualidade em um momento crucial de mudanças na CID. Independente do resultado da disputa de sentidos que está em processo, seja de uma concretização da despatologização ou da permanência dessa sob novos signos, Ambulare nos mostra que esses manuais não nos impedem de inserir a despatologização na prática de um ambulatório trans, sem abrir mão da assistência e do cuidado. Pode, assim, contribuir para reorientar as práticas de atenção à saúde transespecífica pelo Brasil.
Apesar das inegáveis contribuições do livro, o que sabemos sobre esses serviços ainda é contado principalmente a partir da perspectiva de pessoas cis que pesquisam e/ou trabalham nas equipes de atendimento. Sabemos o que é a despatologização na prática ambulare, mas o que essas pessoas trans que ali transitam e habitam teriam a dizer? O campo de estudos se beneficiaria bastante se em um futuro próximo tivéssemos mais textos, assim como os de Viviane Vergueiro (2015), que ousam trabalhar numa perspectiva da autoetnografia e refletir, em primeira pessoa, sobre como é ser uma pessoa trans e habitar esses espaços dos ambulatórios.
Referências
ALMEIDA, Guilherme; MURTA, Daniela. “Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil”. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 14, p. 380-407, ago. 2013. [ Links ]
BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. “Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 559-568, ago. 2012. [ Links ]
LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Berkeley, CA: Crossing Press, 2007. [ Links ]
COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. 2018. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. [ Links ]
MURTA, Daniela. Os desafios da despatologização da transexualidade: reflexões sobre a assistência a transexuais no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. [ Links ]
NELSON, Maggie. Argonautas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. [ Links ]
PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2018. [ Links ]
SUESS, Amets. Transitar por los géneros es un derecho. Recorridos por la perspectiva de despatologización. 2016. 868 f. Tese (Doutorado) – Universidad de Granada. Departamento de Antropología Social, Granada. [ Links ]
TENÓRIO, Leonardo; PRADO, Marco Aurélio Máximo. “As contradições da patologização das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma”. Revista Periódicus, v. 1, n. 5, p. 41-55, 16 jul. 2016a. [ Links ]
TENÓRIO, Leonardo; PRADO, Marco Aurélio Máximo. “Os impactos e contradições da patologização das transidentidades e argumento para a mudança de paradigma”. In: VAL, Alexandre Costa; GOMES, Gabriela; DIAS, Fernando (Org.). Multiplicando os gêneros nas práticas em saúde. Ouro Preto: Editora UFOP, 2016b. p. 130-148. [ Links ]
VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências. Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. [ Links ]
Notas
1 Processo transexualizador é o nome escolhido para a política pública de atenção à saúde específica para travestis, mulheres transexuais e homens trans. Tal política oferece uma ampla gama de serviços e procedimentos tanto na atenção básica quanto especializada, sendo os mais conhecidos a hormonioterapia e a cirurgia de transgenitalização. Atualmente é regulamentado pela Portaria MS/GM nº 2803 de 19 de Novembro de 2013 e possui dez serviços de referência habilitados distribuídos pelo país, sendo que alguns serviços ofertam apenas a atenção no âmbito ambulatorial (acompanhamento clínico, psicoterapia, hormonioterapia) e outros nos âmbitos ambulatorial e hospitalar (realização de cirurgias e acompanhamentos pré e pós-operatório). Para mais informações, ver: BRASIL. Ministério da Saúde. Processo Transexualizador no SUS. Publicado: Segunda, 03 de Julho de 2017, 18h12 Última atualização em Terça, 24 de Julho de 2018, 17h41. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/atencao-especializada-e-hospitalar/especialidades/processo-transexualizador-no-sus. Acesso em: 23/03/2019.
2 GATE* (Global Action for Trans Equality) e TGEU (Transgender Europe) são duas organizações internacionais de direitos das pessoas trans e intersex. Ambas atuam principalmente pressionando diferentes organismos internacionais, como a ONU, e participaram ativamente do processo de revisão da CID. Para mais informações, ver os respectivos sites. GATE: https://transactivists.org/ e TGEU: https://tgeu.org. Acessos em: 23/03/2019.
Thiago Coacci – Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2011), mestre (2014) e doutor (2018) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente atua como professor substituto do Departamento de Ciência Política da UFMG e é pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM/UFMG). Seus trabalhos se dedicam a analisar as conexões entre os movimentos sociais, a produção de conhecimento e a política (institucional e não institucional), com um foco específico para os movimentos sociais de pessoas trans, LGBTI e feministas. E-mail: thiagocoacci@gmail.com
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