Amazônia, modernidade e desenvolvimento / Territórios & Fronteiras / 2018

A floresta e o bioma amazônico têm sido alvo de atenção por diferentes motivos desde o século XVI. As razões pelas quais ela desperta o fascínio e interesse entre aqueles que compreendem suas dimensões variam nesse tempo largo, mas não diminuem de intensidade. Desde o fato de a floresta vir a ser batizada em referência às Amazonas, mulheres guerreiras da mitologia grega, passando pelo Mapinguari, até o El Dorado, relacionado às inesgotáveis riquezas de que essa floresta seria portadora, chegamos ao começo do século XXI ainda buscando um entendimento mais apurado sobre essa região tão complexa. Cabe lembrar que desde o século XVI, em relação à Amazônia temos buscado anexar, dominar, unificar e não aproximar, cooperar e unir (SANTOS, 1997, p19). O Estado Brasileiro, nos últimos 40 anos, investiu cerca de 6 bilhões de dólares / ano na Amazônia Legal (COY, 2005), mantendo as propostas similares àquelas lançadas por Golbery do Couto e Silva nos anos 1950, ainda embasadas no espírito da Guerra Fria, que consideravam a Amazônia como área vulnerável, vazia, incivilizada. O Estado Brasileiro criou uma malha tecno-política com o propósito de facilitar a apropriação física e político-econômica do território: redes de circulação rodoviária, de telecomunicações, urbana e agro-industrial. Incentivos fiscais e créditos a juros baixos visaram subsidiar o capital, incentivos a migração para o povoamento da região e formação de um mercado de trabalho. Projetos de colonização e superposição do território federal sobre os estaduais, alimentados por investimentos púbicos, priorizaram o grande empresário, a grande propriedade, o grande capital, desconsiderando as comunidades locais, os saberes e culturas locais. Não é preciso dizer que isso levou a enormes injustiças e violências contra indígenas, garimpeiros, posseiros, seringueiros, com resultados que se manifestam ainda hoje, após décadas de avanços sobre a floresta. A Amazônia contém 61% do território nacional, com 12% da população do Brasil e 6,5% do PIB e a segunda pior concentração de renda do país em 2017 (ficando à frente apenas do Nordeste), com um índice Gini de 0,544 (a média nacional foi de 0,549. Os dados são do IBGE). Entre 1970 e 1996 a taxa de urbanização na região, foi a maior do país (BECKER in COY, 2005). A questão do avanço da fronteira econômica não apenas social e política, mas também profundamente sociocultural e ecológica. Quanto ao desmatamento, a área total da floresta devastada aumentou para 650 mil km2 em 2003, ou 15,9% da área coberta pela floresta tropical (6.947 km2 de corte raso somente em 2017, de acordo com INPE). A taxa média de desmatamento bruto entre 1978 e 1988 foi de 21 mil km2. Entre 1988 e 1998, 16 mil km2. Entre agosto de 2002 e agosto de 2003, 23.750 km2, sendo 40% no MT e 30% no PA. Entre agosto de 2003 e agosto de 2004 entre 23.100 e 24.000 km2 (KOHLHEP in COY 2005).

Feitas essas breves considerações iniciais, que sevem de contexto e justificativa para o presente dossiê, temos a satisfação de mencionar a iniciativa de reunir no Seminário Internacional sobre Identidades, Relacionamentos e Linguagens Emergentes na Amazônia, que aconteceu na Assembleia Legislativa de Mato Grosso em agosto de 2018 – parte das atividades da rede internacional de pesquisa Agroculturas coordenada pela Universidade Federal de Mato Grosso e Cardiff University (mais informações em: www.agrocultures.org) – membros da comunidade científica e sociedade civil, incluindo representantes dos movimentos sociais e dos grupos sociais que vivem na e da floresta. O objetivo básico foi romper com a visão modernista e positivista de que nosso conhecimento é capaz de dar conta da complexidade desse lugar, como algo estático e quantitativamente mensurável, visou também uma aproximação entre os pressupostos racionalistas que embasam a epistemologia acadêmica e que tem marcado de forma indelével nossos olhares sobre os caminhos para o desenvolvimento e a modernização, e outras formas de saber e conhecer vigentes entre os pequenos proprietários, ou posseiros, que vivem do auto sustento, entre os povos indígenas que, nas palavras de Martins (2018), detém um saber essencial: “As populações indígenas são nossa Biblioteca Nacional, dessa parte da informação etnológica e cultural. A informação está aqui. Porque o que ainda há para descobrir, na área de humanas, está no Brasil, eventualmente em algum outro país, mas aqui em abundância.”

Pretendeu-se, nas atividades do seminário, explorar um entendimento diferenciado do que chamamos fronteira agro-cultural e isso não será possível sem romper com o que Santos (1998), chamou de “territórios verticais”, em outras palavras, com o olhar de fora, portador de um entendimento estreito de ciência. Os resultados do evento apontaram para a necessidade do desenvolvimento de novas solidariedades, aproximando o global do local, o argumento acadêmico-reducionista do conhecimento empírico, vivido e criativo, propondo e defendendo um sistema de relações que atue em benefício do maior número de envolvidos, baseado nas possibilidades reais desse momento histórico e da diversidade geográfica. Por fim, pretendeu-se encontrar caminhos para outras modalidades de desenvolvimento e relacionamento social que, em lugar de traçar fronteiras separando uns dos outros, produza os efeitos acima mencionados, seja uma proposta de solidariedade orgânica, de aproximação dos diferentes saberes, que nos leve ao entendimento uns dos outros, caminho necessário para a construção de uma nação, esse fenômeno obscuro (MORIN, 1965, p.73), mas ainda necessário.

Como forma de registro desses resultados alcançados no Seminário Internacional, foi proposto pelos participantes a organização desse dossiê que ora se apresenta. Dentre os artigos, abrindo as discussões, temos o texto “O lugar dos historiadores no século XXI ou reflexões sobre o fim da historiografia”, uma reflexão teórica acerca do papel e das funções da História e dos historiadores nas sociedades ocidentais contemporâneas, que nessas primeiras décadas do século XXI, atravessam momentos de grande transformação. O autor afirma ser esse processo o resultado de um conjunto de mudanças que marcam o que se configura como a superação da Modernidade e afirma ainda que os historiadores estão perdendo a batalha pela construção da consciência histórica. Qual o lugar da História nesse processo (político) de construção de uma nova consciência ambiental? Como os historiadores podem contribuir para a aproximação (cultural) entre os povos da floresta e os habitantes dos grandes centros urbanos nacionais, para quem esse universo é desconhecido? No artigo intitulado “Centralidade da Fronteira: Ensaio sobre a Origem e Evolução de Fronteiras Socioespaciais” o autor trata acerca da produção de fronteiras como fundamentais para a circulação e acumulação de capital. Aborda a perenidade da emergência de novas fronteiras não apenas como demanda por minerais, terras ou outros recursos, ou porque as fronteiras representam novas oportunidades de mercado, mas crucialmente porque a fronteira opera como compensação pela saturação das relações capitalistas existentes nas áreas centrais. Ainda segundo o autor, na fronteira, a sequência convencional de tempo e espaço é suspensa e reconfigurada, permitindo a descompressão de tensões e contradições. Consequentemente, as fronteiras espaciais funcionam como um espelho, onde as características mais básicas e explícitas do capitalismo estão vivamente expostas e esse poderia ser um caminho viável para compreendermos a incorporação econômica e territorial da região Amazônica e às perspectivas de resistência política. Dirigindo nossas atenções para os primeiros séculos de ocupação europeia nessa região, temos o artigo “Política e administração na Amazônia colonial: regimentos e instruções para o governo das capitanias do Pará e do Maranhão (séculos XVII e XVIII)” que analisa três documentos importantes sobre a Amazônia: Regimento dos Capitães-mores do Pará (1669), no Regimento entregue ao capitão-mor Baltazar Fernandes (1682) e no Registro da instrução que ficou ao Governador do Maranhão (1751). Em todos, é possível entrever a organização político-administrativa e da governação nas capitanias do Pará e do Maranhão e algumas das suas dinâmicas administrativas internas, nos séculos XVII e XVIII. Saltando para o início do século XX, temos “Quando os seringueiros falam: o trabalho nos seringais e convocações para os combates pela posse do Acre no início do século XX.”. Nesse artigo o autor discute as falas dos seringueiros sobre como chegaram ao vale do rio Acre e de que maneira tomaram parte nas lutas pela posse dessas terras elaborando uma análise narrativa cujo fim é explorar um experimento da micro História. O autor fez uso das fichas historiográficas elaboradas pelo Instituto Histórico e Geográfico do Acre, que foram confrontadas com fontes complementares tais como relatórios governamentais, séries estatísticas e jornais. Segundo o autor, pretendeu-se ampliar os campos de investigações historiográficas sobre uma parte significativa da Amazônia brasileira. Avançando para meados do século XX, temos “Políticas públicas do governo federal no estado do Pará no tempo presente: da SPVEA à Nova República”, nesse trabalho o autor, fazendo uso de fontes oficiais, historiográficas e hemerográficas, traçou uma linha de análise que atravessou, praticamente, a segunda metade do século. Os estudos daquilo que o autor denomina de História regional, análise dos discursos e fontes orais, pretendem contribuir nos estudos sobre os impactos das políticas públicas do governo federal e empresas públicas e privadas no estado do Pará, desde a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), passando pelos governos militares (1964-1985) e chegando até a Nova República. As análises dos chamados projetos de colonização aparecem no artigo: “Terra da Promissão: recolonização e natureza na história amazônica.”. nele, o autor busca analisar os projetos de colonização que aconteceram durante o século XIX, em especial na região Bragantina do Pará e, mais recentemente, os projetos de infraestrutura do governo Médici (1969-74). Nessa abordagem comparativa foca-se a construção dos discursos usados nos projetos oficiais de colonização, nos relatos de cronistas, nas propagandas migratórias e em textos jornalísticos, com ênfase na ideia de desenvolvimento e pioneirismo. O artigo “Combates Cosmológicos pelo Direito do Rio na Amazônia Oriental”. Fazendo uso da História Oral, o autor colhe relatos dos moradores da Vila de Umarizal, município de Baião banhado pelo Rio Tocantins, e de moradores da Vila de Santa Isabel, no baixo Araguaia, município de Palestina do Pará, analisando as memórias desses camponeses, ribeirinhos e comunidades quilombolas, elaborando uma crítica cosmológica dos grandes projetos, bem como da produção de quadros compreensivos sobre os processos de ocupação e conformação territorial do Pará. Fechando o dossiê temos o artigo: Amazônia Meridional: Relações Sociedade e Meio ambiente. Impactos Econômicos, Sociais e Ambientais. Nele o autor dirige seu foco para uma análise que busca pontos possíveis de convergência entre aspectos desse complexo processo de reocupação da Amazônia que envolvem, por exemplo, as relações entre os migrantes e a floresta, a busca por uma forma de crescer economicamente e os conflitos entre essas atividades (agropecuárias), a floresta e seus moradores.

Nossa expectativa é a de que as reflexões aqui apresentadas proporcionem novas pesquisa, apontem caminhos para pensar a Amazônia e seu papel no desenvolvimento nacional, sem que isso venha a implicar em prejuízos aos seus moradores, destruição dos recursos naturais ali presentes e integração, entendida como relação horizontal e plural, entre os diferentes grupos de interesse envolvidos nesses processos. O debate sobre desenvolvimento, conservação ambiental, igualdade socioeconômica e política, entre outros temas, tem relevância universal e é certamente necessário em todos os cantos do mundo. Ainda mais que nesse começo de século vemos com inquietação a perda acelerada de diversas conquistas que pareciam consolidadas há décadas, tal como o respeito interpessoal, a diversidade sociocultural, bases mais sustentáveis de produção e consumo, e justiça social e ambiental. A violência crescente e as tendências eleitorais recentes suscitam profundas e desconfortáveis dúvidas sobre a direção do progresso e do jogo democrático. Nesse sentido, dadas suas particularidades e demandas específicas, mas também sua riqueza sociocultural e sócio ecológica, os processos em curso na Amazônia representam um capítulo muito importante da história e geografia contemporâneas. As populações da região percebem e articulam tal complexidade de modo muito agudo e perspicaz, fazendo uso de uma maravilhosa pluralidade linguística e narrativa. Portanto, cabe também aos pesquisadores abrirem olhos e ouvidos, conversar com todos ao redor, interrogar passado, presente e futuro, e fazer aquilo que deve ser sua tarefa primordial: repensar crítica e responsavelmente o mundo de forma a colaborar na sua transformação, buscando justiça e prosperidade plenas.

Referências

COY, M. e KLINGLER, M. Frentes pioneiras em transformação: o eixo da BR-163 e os desafios socioambientais. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol.7, n.1, abril 2014. Disponível em: http: / / www.ppghis.com / territorios&fronteiras / index.php / v03n02 / issue / view / 14 / showToc [Data de consulta em 21 jun 2014].

COY, Martin e KOHLHEPP, Gerd (Coord). Amazônia Sustentável. Desenvolvimento sustentável entre políticas públicas, estratégias inovadoras e experiências locais. Rio de Janeiro / Tübinger: Garamond / Geographischen Instituts der Universität Tübinger, 2005.

FREITAS, M., FREITAS, M.C.S., IORIS, A.A.R. e CASTRO Jr., W.E. Amazônia. Chiado Editora: Lisboa, 2017.

IORIS, A. A.R. Agribusiness and the Neoliberal Food System in Brazil: Frontiers and Fissures of Agro-neoliberalism. Routledge: London, 2017.

MARTINS, J.S. Entrevista. UOL Notícias. Disponível em: https: / / noticias.uol.com.br / politica / ultimas-noticias / 2018 / 02 / 10 / foi-o-poder-quedesviou-lula-diz-o-sociologo-jose-de-souza-martins.htm Acesso em 15 fev. 2018.

MORIN, E. L’introduction à la politique de l’homme. Seuil: Paris, 1965.

SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SCARLATO, F.C.; ARROYO, M. Fim de século e globalização. São Paulo: HUCITEC, 1997.

SANTOS, M.; SOUZA, M.A.; SILVEIRA, M.L. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: HUCITEC, 1998.

Vitale Joanoni Neto – Professor do Departamento de História, coordenador do Programa de Pós-Graduação em História e coordenador do Núcleo de Pesquisa em História.

Antonio A. R. Ioris – Professor (senior lecturer) na Escola de Geografia e Planejamento e diretor do programa de pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade de Cardiff, Reino Unido.


IORIS, Antonio A. R.; JOANONI NETO, Vitale. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.11, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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