Amazônia, fronteiras e diversidades | Escritas do Tempo | 2021

Quais ventos são esses que trazem esse dossiê sobre a Amazônia na Revista Escritas do Tempo? São ventos que sopram o vigor e o frescor da produção do conhecimento histórico produzido nos programas de pós-graduação em História espalhados pela região amazônica! Sem dúvida este número da revista que apresentamos amplia um processo iniciado há algumas décadas atrás com a criação de programas de mestrado e depois de doutorado na UFPA e UFAM.

Hoje os programas de pós-graduação em História estão em inúmeras universidades públicas do outrora chamado Vale Amazônico, como é o caso da UNIFAP, da UNIFESSPA e da UFMA (que integra a região de abrangência da Amazônia Legal). O processo em questão impacta, de maneira decisiva, num conhecimento histórico sobre o passado amazônico que está a todo o momento sendo debatido e revisto, conectando experiências dos diversos centros produtores do saber histórico. Por essa razão esse dossiê celebra exatamente esse momento vivido por todos nós.

Nosso pensamento sobre a Amazônia se constituiu historicamente pelas marcas do projeto colonial luso-espanhol. Desde o século XVII, a Amazônia, nomeada sob a insígnia do Estado do Maranhão e Grão-Pará, foi colocada como apartada do Estado do Brasil. Um lugar para se conquistar, uma fronteira no sentido militar do termo, como aquilo que “não é”, ou daquilo que “ainda vai ser”… a expansão. Este é o argumento básico, desde então, para estabelecer um outro de tipo de exploração colonial, pautada no extrativismo predatório dos ecossistemas, no morticínio e na escravidão dos povos originários, habitantes das florestas, matas, campos, baixadas e ribeiras.

Tal constructo colonial, do “lugar de fora” do Brasil e da extração máxima de riqueza, como se fossem despojos de uma conquista bélica, mantém sua força simbólica, mas também carrega consigo fragilidades e tensões às quais é preciso analisar, expor, desnaturalizar. É mister para os historiadores e demais cientistas sociais desvelar o caráter impositivo das categorias do colonizador-explorador e a impostura da monumentalização das suas ações, muitas vezes, historiograficamente consagradas.

Nesse sentido, é imprescindível buscar reconstruir nossas representações sobre a Amazônia, se de fato desejamos colocá-la no centro do destino nacional e do equilíbrio climático global. E isso passa certamente pelo exercício de uma pesquisa social que esteja seriamente comprometida em tentar ouvir os povos que habitam os territórios amazônicos. Reconfigurar nossas representações depende fundamentalmente de nos deixarmos impactar por esses lugares, seus saberes, suas histórias de resistências… é desarmar-se de nosso instrumental teórico forjado “de fora”, abolindo as hierarquias epistemológicas para nutrir-se das categorias e representações das pessoas que com-vivem com as Amazônias.

Assim sendo, povos e culturas, com suas formas e visões de mundo, produzem manifestações e caminhos de análise múltiplos. Seja no campo da História ou das demais Ciências Sociais, em crescente movimento de ampliar horizontes sobre as Amazônias, intelectuais têm se debruçado em análises sobre relações que permeiam sentidos e ênfases distintas. Em interfaces de tempos e espaços, desde concepções coletivas, comunitárias ou grupais, produzindo e transmitindo e culturas e saberes, em distintas linguagens, materialidades e espiritualidades, sujeitos históricos emergem em narrativas inovadoras sobre a região.

Janaina Valéria Pinto Camilo, em “Paisagens e gentes da fronteira”: povoamento e urbanização da Amazônia (séculos XVII e XVIII) apresenta reflexões de pesquisa realizada sobre a construção da fronteira amazônica, especificamente, a Capitania do Grão-Pará e Maranhão, entre os séculos XVII e XVIII, quando das viagens de exploração e demarcação previstas, neste último caso, pelo Tratado de Madri (1750 a 1761). Utilizando-se de mapas e plantas arquitetônicas produzidas por engenheiros militares e padres matemáticos e, também, correspondências trocadas entre o Governador Francisco Xavier Mendonça Furtado com o Marquês de Pombal e com administradores das vilas da capitania, a autora do texto explora elementos dessas fontes quanto às demandas em torno de construções religiosas e civis.

Nesses contextos de Amazônias coloniais, as autoras Maria Clara Sales Carneiro Sampaio e Marta Lima Alves, em Contribuições sobre fugas escravas e formação de quilombos na confluência dos rios Araguaia e Tocantins (Marabá, séculos XVIII-XIX) discutem agência e resistência escrava na região de confluência dos rios Araguaia e Tocantins (que abriga a cidade de Marabá), no Sudeste paraense, entre meados do século XVIII e no século XIX. Dimensionando focos de encontros e presenças de escravizadas e escravizados nas florestas e nos rios amazônicos, trazem elementos de vários contextos da escravidão nas províncias do Maranhão, Grão-Pará e Goiás.

Através de uma investigação a respeito do Colégio Santa Rosa, sua fundação e o perfil dos seus estudantes, Milton Pereira Lima, no artigo O Colégio Santa Rosa na dinâmica da “Educação-pacificação” do Araguaia Paraense, a partir de Revista Cayapós e Carajás/ Memória Dominicana (1902-1952), enfatiza aspectos dessa instituição criada por padres dominicanos do Araguaia Paraense, tornando-se um marco educacional na fronteira do Araguaia Paraense. Tal instituição escolar e com viés religioso atendia crianças indígenas de variados grupos étnicos e moradores do território de Conceição do Araguaia. Conforme destaca o autor, tal escola tinha como objetivo uma educação de perfil elementar para formar cidadãos cristãos, mas dado o contexto de sua inserção e atuação, acabou por impactar nos grupos indígenas araguaianos.

Do ódio nasce a coragem: a dinâmica do massacre como vingança, de Emanuel Pacheco de Souza analisa o massacre de uma aldeia Gamela ocorrido nos anos 1920 em Penalva/MA, conhecido como o massacre dos Gamelas, registrado em “Terra Queimada”, livro de memórias de Bento Mendes, primo do autor do massacre. Diferentes aspectos da vida nos sertões maranhenses articulam-se a noções de vingança, honra e justiça, embasando a análise desenvolvida pelo autor.

Trazendo à tona a narrativa sobre a freira espanhola Mercedes de Budallés Diez, as autoras Vasni de Almeida e Janildes Curcino Sarêdas escrevem “A Escrava Livre”: construção de identidade de uma religiosa feminista, numa abordagem sobre essa mulher e sua identidade de religiosa e feminista em uma sociedade ainda bastante “arraigada pelo machismo dominante dentro das estruturas religiosas do catolicismo no Brasil”. Mercedes de Budallés Diez, uma freira espanhola, vive no Brasil desde 1976, e teve uma forte atuação na Diocese de Porto Nacional, no estado do Tocantins.

Elizânia Sousa do Nascimento teceu A Porta da Amazônia é Aqui! Desenvolvimento e educação no governo José Sarney no Maranhão (1966-1970), abordando uma rede discursiva organizada pelo governo de José Sarney que possuía no desenvolvimento seu ponto central de apoio. Com ideais de desenvolvimento e educação, o Programa de governo do Maranhão Novo foi criado e nesse artigo é analisado pela autora, com ênfase nas seguintes ações: O Projeto João de Barro, a Televisão Educativa do Maranhão – TVE/MA e o Projeto Bandeirante.

No âmbito também educacional, mas em contexto universitário e do presente, as autoras Maria Cristina Macedo Alencar, Jheyciele Naira dos Santos e Karla Leandro Rascke evidenciam a experiência de um Programa de Ensino na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Escrevendo O Programa de Apoio ao Estudante Quilombola (PAEQUI) como Política de Permanência numa Universidade da Amazônia (UNIFESSPA-PA), em linhas de narrativa interdisciplinar, o trabalho foca a experiência de realização do PAEQUI, que constitui uma política preocupada com a permanência de estudantes quilombolas ingressantes na Unifesspa via Processo Seletivo Específico Indígena e Quilombola (PSIQ). A partir de fontes documentais, notas de campo, relatórios parciais e finais produzidos pelas discentes apoiadoras e pelas coordenadoras, o texto permite visualizar avanços e desafios na implementação dessa política de permanência voltada para os estudantes quilombolas na instituição.

Reflexões sobre a alteridade na expressão poética de Charles Trocate, Gilson Penalva e Airton de Souza Oliveira, em reflexões sobre alteridade, centram-se na obra Conversa com louças, do poeta amazônida Charles Trocate. Os autores destacam os discursos coloniais que intentaram criar um pensamento homogêneo dentro das Amazônias e, como a expressão poética trocatiana, produzida na Amazônia Oriental foi aos poucos contribuindo para desconstruir esse processo.

David Junior de Souza Silva e Danielle Balieiro dos Santos, autores de O Tempo Estrutural da Comunidade de Santa Luzia do Maruanum, Amapá: vivências de temporalidades possíveis, trouxeram o tempo social como tema de abordagem, em contextos/espaços/temporais cuja organização sociocultural e manifestações simbólicas se estruturam em valores etnicamente singulares. Estudando a comunidade Santa Luzia do Maruanum, contestam as concepções universalizadoras presentes nas atuais teorizações eurocêntricas sobre o tempo. A metodologia empregada na abordagem foi a etnografia junto à comunidade. O tempo social, na interpretação dos estudiosos, é comunitário e feito por um tempo de trabalho, um tempo familiar, um tempo religioso, e um tempo de lazer cotidiano e festivo extracotidiano.

Em seu artigo Holocausto ecológico em Itaipu e na Amazônia: trabalhadores(as), ditadura e conflito agrário do Sul ao Norte do Brasil, Cátia Franciele Sanfelice de Paula problematiza a relação entre a Itaipu Binacional, a ditadura militar e a questão agrária na Amazônia, destacando problemas decorridos da desapropriação de trabalhadores e trabalhadoras por parte da estatal. Com base em documentação de imprensa e registros produzidos pelo Serviço Nacional de Inteligência da ditadura militar, SNI, que tratam, em especial, dos conflitos no Acre e em Rondônia, a autora discute mudanças provocadas pelas relações sociais capitalistas materializadas na construção da Hidrelétrica de Itaipu e nos projetos de “colonização” na região Norte do país.

No âmbito da seção de artigos livres, temos três contribuições, sendo uma delas de Fred Maciel, com o artigo Entre um passado pioneiro e um destino de progresso: construção de um projeto político-intelectual no interior do Paraná, que expõe perspectivas político-intelectuais a partir da trajetória biográfica de Francisco Irineu Brzezinski, figura pública atuante no interior do Paraná nos anos de 1970 e 1980. Com base em entrevista, obras ensaísticas, pronunciamentos e artigos publicados na imprensa, atas, ofícios e projetos de lei produzidos pelo personagem, em enriquecedor arsenal documental, o autor traz aspectos da constituição das elites e da história dos intelectuais da região.

Ruan Carlos Mendes e Rogério Maciel, em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial: analisando livros didáticos de História, discutem como os livros didáticos de História trazem o patrimônio cultural ou, deixam de abordá-lo. A partir da experiência de uma oficina sobre o tema, com alunos de graduação, diferentes visões foram sendo apontadas e uma das percepções centrais é de que os livros didáticos não conceituam a Educação Patrimonial. Também é notável a pouca abordagem sobre patrimônio cultural que sirva de suporte aos professores para o desenvolvimento dessa discussão.

Composto por 10 (dez) artigos temáticos vinculados ao Dossiê “Amazônia, Fronteiras e Diversidades” e por 3 (três) artigos da seção Livre, esse número da Revista Escritas do Tempo apresenta contribuições para a História, as Ciências Humanas e Sociais. Agradecemos a cada autor e autora que integrou essa proposta, envidando esforços para a concretização desse número. Oportunamente, agradecemos à Escritas do Tempo e seus editores pelo espaço e pelo trabalho. Enfim, eis que convidamos a todos e a todas para a leitura!


Organizadores

Karla Leandro Rascke – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), nós-graduação em Sociologia (UFMA/ Imperatriz-MA), do Mestrado Profissional em Ensino de História (UFMA/ São Luís-MA) e do curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia (UFMA/ImperatrizMA)

Paulo Marcelo Cambraia da Costa – Docente da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Atua na graduação e na pós-graduação comoa graduação e na pós-graduação. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Presidente da Comissão Permanente para Diversidade, Heteroidentificação e Etnicidade da Unifesspa. Editora da Revista Escritas do Tempo

Rogério de Carvalho Veras – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. É professor do Programa de P professor de História da Amazônia. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordena o Grupo de Estudos Coloniais Amazônicos (GESCAM) e compõem o Comitê Editorial da Revista Fronteiras & Debates (publicação do colegiado de História da UNIFAP)


Referências desta apresentação

RASCKE, Karla Leandro; VERAS, Rogério de Carvalho; COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Apresentação. Escritas do Tempo. Pará, v. 3, n. 7, p. 3-7, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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