Almanaque do Brasil nos tempos da Independência | Jurandir Malerba
O livro “Almanaque do Brasil nos tempos da Independência” (2022) de Jurandir Malerba que ora se resenha é resultado de pesquisa de fôlego e dos trabalhos de décadas de estudos dessa temática; um presente para celebrar o duo centenário da Independência do Brasil (1822-2022). Lançado em formato de almanaque pela Editora Ática, contem 311 páginas e conta com o prefácio de Lilia Moritz Schwarcz e ilustrações de Cordeiro de Sá.
Malerba está na estrada há 30 anos estudando o século XIX e, mais especificamente, os processos da Independência do Brasil, formação da nação, chegada da Corte Portuguesa em 1808 em uma bibliografia que o autoriza a escrever sobre essa temática em formato de almanaque.
Jurandir Malerba é professor titular de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de livros como “Os brancos da lei” (1994), “O Brasil imperial (1808-1889), panorama da história do Brasil no século XIX”, (1999), “A corte no exílio” (2000) e “Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramentos do reino – Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil” (2020).
O livro ora resenhado procura inventariar os acontecimentos desde a expulsão da Corte Portuguesa por Napoleão Bonaparte entre os dias 25 e 27 de novembro de 1807 até a sua chegada ao Brasil em 1808. Assim, começa o processo de Independência, segundo Malerba, 14 anos antes de 1822 fechando na data de 13 de dezembro com a Guerra da Bahia e a expulsão do Exército português em sua tentativa de recolonização, com destaque para a soldada Maria Quitéria. Além desta personagem, o livro privilegia um número expressivo de referências à história das mulheres no Brasil (DEL PRIORE & BASSANEZI, 1997) que ganham cores e papéis de destaque na sociedade, ainda que altamente patriarcalista. Seja nos textos ou nas imagens as mulheres têm o devido protagonismo no “Almanaque”.
Assim, ao invés dos tradicionais capítulos elencados em um livro, o “Almanaque” apresenta o sumário valendo-se das datas que se configuram como um calendário, um marco temporal que regula o relógio da história, os tempos que duram o processo de Independência do Brasil, os quatorze anos (1808-1822).
“Almanaque” é escrito metodologicamente pelas histórias das vidas miúdas, vidas infames, como disse Foucault (2001); à moda de uma história a contrapelo, de Walter Benjamin (2012); também um tipo de história vista de baixo (SHARPE, 1992); operacionalizada pela vertente da “micro-história” (LEVI, 1992). É um livro que revela motins, rebeldias, lutas e contestações sem perder os personagens principais de uma história política na trama de um grande acontecimento de ruptura institucional.
Ao longo das suas 311 páginas, o “Almanaque” traz exatamente o mesmo número de imagens, em fotos ou desenhos, equivalendo a uma imagem por página distribuídas ao longo do livro. Outro ponto alto da obra são os quadros “o passado é presente” mostrando os processos de rupturas e continuidades históricas, principalmente em relação aos Direitos Humanos, revelando que este é sempre um campo de disputa e dialético; as elites proponentes das leis nos embates cotidianos com os marginalizados que pairam ao redor do sistema de produção, quer no século XIX, XX ou XXI.
Na “apresentação” do livro, Malerba nos explica os porquês de um “Almanaque” de história nos remetendo à própria historicidade desse tipo de publicação, tantas vezes reconhecido como gênero de estória em quadrinhos infantil, mas que foi largamente utilizado como meio de propaganda cumprindo algumas funções para além destas acima citadas como a de despertar a curiosidade de leigos em história, ou ainda amparar professore(a)s em suas aulas na educação básica ou superior. ‘“O ‘Almanaque do Brasil nos tempos da Independência’ já terá cumprido plenamente seu papel, porém, se servir para a formação de cidadãos e cidadãs mais atentos e fortes”’. (MALERBA, 2022, p.15).
No “Almanaque”, o dia de 7 setembro de 1822 não é celebrado como pompas e desfile cívico, mas tratado como uma data, quase que normal, dentro do processo desses quatorze anos escolhido por Malerba para explicar as tessituras da Independência (1808-1822). Pedro de Alcântara estava em São Paulo, próximo do córrego barrento, Ipiranga, dando água às mulas e à tropilha que o acompanhava no retorno de sua da viagem a Santos-SP. Em relação ao “grito” e o pretenso ouvir “das margens plácidas”, nenhum sujeito ouviu “o grito retumbante”, nada de povo heroico. Apenas o seu conselheiro, Padre Belchior, ouviu Pedro dizer à sua comitiva que acatava as Instruções da Corte do Rio de Janeiro, partidas de D. Leopoldina e José Bonifácio e, após se aconselhar com o padre, tomou a decisão de proclamar ali mesmo a separação política de Portugal.
No “Almanaque”, a Princesa Dona Leopoldina ganha destaque ao ser representada numa pintura enfatizando o gênero e dando relevância à história das mulheres. Ademais, Malerba (2022, p. 270) se preocupa em trazer para o evento a imagem da “Sessão do Conselho de Ministros” que aconteceu no dia 02 de setembro de 1822, portanto, 05 cinco dias antes do “Grito do Ipiranga”. Enquanto D. Pedro I estava em Santos, a mulher Leopoldina já se reunia politica e estrategicamente com os Homens do Conselho para avisar a D. Pedro I que a Independência teria que ser feita.
A Princesa Leopoldina, com sua consciência política na participação da independência, ao se envolver com os “patriotas brasileiros” (REZZUTTI, 2017), sabia que após o dia 9 de janeiro – “Dia do Fico” – essa “ficada” teria lançado a pedra angular contra a Corte e não teria mais volta; ainda que austríaca e defensora ferrenha da monarquia acabou contribuindo com o projeto de nação para o Brasil e impondo no seu projeto de nação as suas ideias políticas.
Assim, a cor amarela estampada na bandeira brasileira do império, que muitos acreditam que representa a riqueza do Brasil, o ouro, se constitui, na verdade, num símbolo político; a cor é uma homenagem a Casa da Áustria, império monarquista e lar da Princesa Leopoldina. A cor verde faz homenagem à Casa de Bragança, Portugal. Uma curiosidade contida no almanaque é que até hoje essas cores – verde e amarela – se encontram colorindo a bandeira nacional que, a despeito da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, continua com as mesmas cores das velhas monarquias escravocrata, colonialista e patriarcal.
No “Almanaque”, Malerba faz a provocação para se revisitar o processo de Independência dando o devido destaque para a mulher D. Leopoldina, assim como um olhar melhor acurado para as cores da bandeira como um dos símbolos nacionais do império que se perpetua na República mantendo, assim, ligações com as tradições europeias e valores imperiais vigentes no século XIX que a história oficial, política, teima em manter.
Malerba destaca também a belíssima pintura de Pedro Américo “Independência ou morte” (1888), mas trazendo, também, outras duas obras que buscam representar aquele acontecimento, até mesmo porque Pedro Américo não viu aquela cena por ele pintada, pois fez o quadro sessenta e seis anos depois, em Florença (Itália), em 1888, quando ganhou um concurso de pintura sobre a melhor representação do “Grito do Ipiranga”.
“Almanaque” é representativo em sua cronologia ao trazer para o leitor, após o dia 7 de setembro, simbolicamente, a data de 12 de outubro, portanto, 35 dias após para ilustrar o quanto essa data é importante no processo de independência em que D. Pedro I é aclamado Imperador constitucional do Brasil, com o povo na praça presenciando o evento. Aqui é o ponto alto da obra, exatamente essa aparente lacuna que Malerba sorrateiramente deixa, lançando assim uma dúvida no seu leitor, um questionamento acerca dos dias que se sucederam ao “grito do Ipiranga” para nos lançar na bela imagem do Debret “Aclamação de Dom Pedro I no Campo de Santana” e “Coroação de Dom Pedro, Imperador do Brasil” (MALERBA, 2022, p. 276-277) cabendo ao (à) leitor (a) interpretar, analisar e refletir qual dia foi o mais importante para a chamada Independência do Brasil: 7 de setembro ou 12 de outubro?
Procedendo metodologicamente desta maneira, a data de 12 de outubro destacada por Malerba revela o sentimento da época que paira sobre a elite política de que a aclamação de D. Pedro I em sessão pública solene, na presença dos deputados constituintes e do povo, deve representar a queda de braços entre um possível poder despótico, Executivo, depois Moderador do futuro imperador contra as forças democráticas da jovem nação, pelo poder Legislativo. Embates estes que perpassaram por toda a trajetória que marcará a vida política do Regime imperial no chamado Parlamentarismo às avessas do Segundo Reinado, onde “o rei reina, mas não governa”.
Segundo Malerba (2022, p. 268): “O 7 de setembro foi uma construção das classes dirigentes no século XIX, que a estabeleceram como um mito fundador da nação”; seria essa a “Elite do atraso”, de acordo com Jessé Souza? (2017). Assim, o 7 de setembro não passa de mais um mito de criação que funda e cria heróis nacionais. Desta feita, o dia nacional de “7 de setembro” passou a ser a data representativa da nação fundamentado num rol de leis que tinha por função vigiar as condutas dos homens pobres livres que sem trabalho, educação e cidadania eram “marginais” do grande sistema monocultor, escravocrata, agroexportador, “Dos brancos da lei” (MALERBA, 1994).
Estudar os primórdios do século XIX e o seu processo de Independência é enxergar nele rupturas e continuidades, avanços e estagnações; é problematizar as maneiras como se construiu um tipo de nação aqui na América, refletir sobre as possibilidades que aqueles atores políticos tiveram naquele momento para erigir um país democrático, com amplos direitos e deveres, com um projeto de educação pública para todos e todas, sufrágio universal. Rever o processo de Independência do Brasil nesses quatorze anos que Malerba nos traz é olhar para a nossa própria imagem de brasileiro e brasileira para tentar compreender o nosso ethos, nossa imagem, quem somos e porque somos assim; é como olhar num espelho e ver nosso reflexo de povo brasileiro. Sobretudo, o “Almanaque” nos faz refletir o que vem depois da Independência que é a construção da identidade nacional e nos desafia a tentar compreender as “peças de um mosaico” (JANCSÓ; PIMENTA, 2000). Por isso, “Almanaque” é um livro sobre nós mesmos, devemos lê-lo como uma obra “biográfica”.
“Almanaque”, em sua fiel metodologia decolonialista e antipatriarcal, nos traz a imagem da personagem de Maria Quitéria, baiana que se alistou no Exército para expulsar os colonialistas portugueses que teimavam em recolonizar o Brasil. Em um insight de grande pesquisador, Malerba talvez tenha lançado aí uma ótima tese: por que não usar essa personagem: mulher, feminista, avant la lettre, resistente, combativa, destemida, nordestina (MALERBA, 2022, p.278) quiçá a verdadeira face da independência do povo brasileiro em relação às forças colonialistas e imperialistas e que venham do nordeste, das mulheres, pois “a história continua…
Por tudo isso, o livro “Almanaque” é leitura imprescindível àqueles (as) que desejam conhecer melhor o processo de Independência do Brasil que neste ano (2022) completa duzentos anos; o lançamento dessa obra certamente marcará essa data como livro didático, pedagógico, lúdico sem perder em momento algum seu caráter científico como é dever de um bom livro de História sendo este o “Almanaque do Brasil nos tempos da Independência”. É livro recomendado a estudantes e professores (as) de história e amantes da História do Brasil em geral.
Referências
DEL PRIORI, Mary. A carne e o sangue: A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos. e-book Kindle. Rocco Digital. 2004.
DEL PRIORE, Mary (org.) & BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. São Paulo. Contexto/Ed. UNESP. 1997.
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. (org. e trad.) de João Barrento. Belo Horizonte. Autêntica Editora. 2012.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001.
FLORES, Moacyr. Cartas de Leopoldina. Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul, p.1-9. Setembro. 2008.
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico: ou apontamentos para o estudo da identidade nacional. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 2000.
LEVI, G. Sobre a micro-história. In: BURKE, P. A escrita de história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP. 1992.
MALERBA, Jurandir. Almanaque do Brasil nos tempos da Independência. São Paulo: Ática, 2022.
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808- 1821). São Paulo: Cia. das Letras. 2000.
MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramentos do reino. Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: FGV. 2020.
MALERBA, Jurandir. O Brasil imperial (1808-1889), panorama da história do Brasil no século XIX. Maringá: Editora da UEM. 1999.
MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei. Maringá: Editora da UEM. 1994.
REZZUTTI, Paulo Marcelo. D. Leopoldina, a história não contada: A mulher que arquitetou a independência do Brasil. Rio de Janeiro: Le Ya, 2017.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato. São Paulo: Ed. Leya. 2017.
SHARPE, J. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter. A escrita de história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP. 1992.
Resenhista
Eduardo Martins – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2001). Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2003). Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2008). Pós-doutorado pela Universidade Federal da Grande Dourados (2018). Professor efetivo na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Adjunto 3 – 2022) – Campus de Nova Andradina/MS. ORCID iD: 0000-0001-5345-1188. E-mail: e.martins@ufms.br
Referências desta Resenha
MALERBA, Jurandir. Almanaque do Brasil nos tempos da Independência. São Paulo: Editora Ática, 2022. Resenha de: MARTINS, Eduardo. A Independência do Brasil em Almanaque (1808-1823). Aedos. Porto Alegre, v. 15, n. 33, p. 310-314, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR]