CAMARGO, Daisy de. Alegrias engarrafadas: os álcoois e a embriaguez na cidade de São Paulo no final do século XIX e começo do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 220p. Resenha de: BOTARO, Luis Gustavo Martins. Faces da História, Assis, v.1, n.2, p.223-228, jul./dez., 2014.
Nos últimos anos têm crescido o número de pesquisas e trabalhos acadêmicos que envolvem a cidade e o espaço urbano enquanto objeto de reflexão1. Sob diversos aspectos, as cidades são discutidas enquanto pano de fundo de disputas políticas, relações sociais e culturais em distintos momentos históricos. Entre essas diferentes perspectivas de análise, há de se destacar o enfoque sob uma abordagem cultural, por meio das representações criadas sobre o urbano, despertando a atenção dos pesquisadores. Sendo assim, a pesquisa de doutorado da historiadora Daisy de Camargo, publicada, em livro, em 2012, aborda os espaços, materiais e práticas da embriaguez da cidade de São Paulo na virada do século XIX para o século XX. A pesquisa perpassa as transformações e reformas urbanas da cidade naquele período que atingem, também, o cotidiano, modos e costumes da população.
Seu objetivo geral é compreender o consumo de bebidas alcoólicas na cidade de São Paulo, os espaços onde as mesmas eram consumidas, as relações sociais nesses locais, os gestos e práticas da embriaguez. As analogias desses espaços e práticas com as propostas e reformas urbanas para a cidade de São Paulo: a emergência de uma nova dinâmica urbana que ganha vida com as transformações urbanas desejadas de um lado e, por outro, as interferências e controle dos espaços onde se comercializava e consumia as bebidas alcoólicas, no cotidiano e nas práticas daqueles que frequentavam esses locais da embriaguez.
Daisy de Camargo, atualmente, dedicou-se à história material e das sensibilidades. Produziu seu texto a partir do gênero narrativo, mas sem abandonar os conceitos e a linguagem acadêmica. Tratou sobre as reformas urbanas da cidade de São Paulo na virada do século, tema muito explorado pelos pesquisadores. Contudo, o diferencial de sua obra são os personagens e as fontes com os quais ela dialogou.
Leitora de Walter Benjamin e de Baudelaire, a autora destaca que o trabalho do historiador é selecionar os cacos do passado e, nesse processo, exercer uma ressignificação do mesmo. Esse processo se dá a partir do cruzamento de distintos registros históricos, ou seja, a partir da seleção de símbolos elaborados por homens num determinado tempo histórico. Para representar suas experiências, o historiador estabelece um diálogo dele com os “trapos” do passado e, nesse processo, reelabora-o e ressignifica-o. A autora também utiliza, como aporte metodológico, a micro-história, proposta por Carlo Ginzburg, visto que, ao tratar sobre os “retalhos” do passado, os dados marginais são considerados reveladores e permitem levar a um quadro histórico mais profundo (CAMARGO, 2012, p.16).
Para composição desses vestígios do passado, a autora utilizou uma gama heterogênea de fontes históricas. Vale ressaltar os documentos produzidos por instituições do Estado como: relatórios dos chefes da polícia, inquéritos policiais, inventários de bens post-mortem, plantas das cidades e dos espaços em que se comercializava e se consumia bebidas alcoólicas. Camargo também utilizou, em seu trabalho, os romances de memorialistas, jornais da época, imagens como pinturas, fotografias e caricaturas.
Com as fontes e a metodologia definida, Daisy de Camargo dividiu o seu trabalho em duas partes: num primeiro momento, a autora elencou os espaços de venda e consumo das bebidas alcoólicas, como os armazéns de secos e molhados, as tabernas e quiosques. Mapeando todos os locais onde se encontravam tais estabelecimentos, como, por exemplo, a Rua Esperança, um dos principais pontos de embriaguez, posteriormente “engolido” pelas reformas urbanas da cidade de São Paulo. Numa segunda etapa, a autora retratou os agentes sociais da ebriedade, a perseguição aos seus costumes e a restrição à embriaguez, bem como algumas imagens que possibilitam uma leitura crítica sobre suas práticas.
Um dos objetivos de Daisy de Camargo foi escrever uma história material da embriaguez, na cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. Sendo assim, a partir de inventários post-mortem, a autora conseguiu reconstruir os espaços das tavernas: a variedade de tipos de bebidas para diferentes ocasiões, os distintos objetos para o consumo de álcool, copos de tamanhos variado sendo cada qual para um tipo específico de bebida. Ainda sobre os materiais que compõe um espaço da ebriedade e sociabilidade, Camargo destacou os móveis (como o balcão, mesas, cadeiras e bancos) que podem ser, constantemente, rearranjados segundo os interesses de cada grupo e a ocasião. Além de espaços para a venda e consumo de álcool, Daisy de Camargo ressalta que, em alguns casos, tavernas eram, também, locais de produção de bebidas, fazendo alusão a alguns materiais e produtos descritos nos inventários, como pequenos alambiques e rótulos de bebidas.
Baseada nos registros de memorialistas, nos códigos de postura e na imprensa paulista, a autora identificou que, em meados de 1850, já havia uma preocupação das autoridades públicas na fiscalização das tavernas e tascas da cidade de São Paulo. Segundo a autora estes locais eram representados como ambientes sem as condições mínimas de higiene, espaços de baixa moralidade, de vícios e da embriaguez, frequentado por gente de toda sorte, entendidos enquanto desqualificados (CAMARGO, 2012, p. 58-65).
Uma das consequências da fiscalização sobre as tavernas e tascas da cidade de São Paulo, por exemplo, foi o “desaparecimento” nos almanaques de tais estabelecimentos comerciais, ou seja, a categoria de “tavernas” ou “fábricas e destilação”2. Entretanto, não significava um desaparecimento efetivo, devido à perseguição, mas a mudança da designação que o caracterizava, passando a ser denominado por “armazéns de secos e molhados”. A fiscalização e atenção do poder público, nos anos subsequentes, ganhou ainda mais força, concomitante com os ideais de higiene, moralidade, racionalidade, modernidade e progresso desejados pela elite para toda a sociedade paulistana.
Entre os últimos anos do século XIX e início do século XX, a perseguição às tavernas e tascas na cidade de São Paulo desencadeou a construção de outros espaços para a venda e consumo de álcool. Dentre eles, os quiosques, de propriedade, em sua maioria, de imigrantes ou descendentes de portugueses3. Construído de estruturas pré-fabricadas e importado da Europa, esses estabelecimentos, inicialmente, eram símbolos da modernidade, por sua padronização e identificação com os quiosques da cidade de Paris (CAMARGO, 2012, p. 74-75). Entendido, pela autora, como espaço de lazer, os quiosques eram frequentados por negros forros e brancos pobres e seus hábitos não eram compatíveis com as condutas discutidas e que passariam a ser incorporadas no espaço urbano.
Devido ao número de reclamações nos jornais, frente a tais locais do prazer e sociabilidade, bem como a fiscalização movida pelos ideais modernizadores dos espaços e costumes, os quiosques desapareceram com as reformas urbanas dirigidas pelos prefeitos Antônio Prado e Barão de Duprat. Nesse processo, no lugar desses espaços da embriaguez, ergueram-se cafés luxuosos, restaurantes, lojas e vitrines com suas novidades, num movimento de cosmopolitismo da cidade. Assim sendo, foi possível apontar o desaparecimento desses espaços de baixa moralidade no centro da cidade, assim como aqueles que os frequentavam. A autora considerou que os quiosques no Brasil foram um exemplo da ressignificação da modernização urbana: enquanto na Paris de Haussmann os quiosques foram símbolos da modernidade, no Brasil, devido a anterior perseguição às tavernas, tornaram-se locais de venda, consumo de álcool e da sociabilidade daqueles marginalizados na sociedade.
Daisy Camargo apontou outro espaço de sociabilidade, venda e consumo de álcoois no início do século XX: os cabarés. A autora analisou esses espaços por meio do romance Madame Pommery, de Hilário Tácito, escrito nas primeiras décadas do século XX. Diferente da rusticidade das tascas e tavernas, os cabarés eram locais luxuosos, ornamentados, um misto de restaurante, hotel e bar. Gerenciados, em sua maioria, por mulheres, esses locais eram frequentados por coronéis vindos do interior, que encontravam diversão nos jogos de azar, o prazer no consumo de bebidas alcoólicas e nas prostitutas que ali frequentavam (CAMARGO, 2012, p. 86). Consumia-se, além das bebidas comuns das tavernas, o haxixe, a cocaína e a champanhe, esta, por sua vez, entendida como uma bebida do ser urbano que se pretendia civilizado e interligado à cultura francesa.
De acordo com a autora, os cabarés que emergiam no centro da cidade, enquanto manifestação de outras formas de embriaguez e prazer eram “traduções do luxo das tavernas” (CAMARGO, 2012, p. 87), mas que não deixaram de ser perseguidos devido à conduta daqueles que os frequentavam, sendo visto como um espaço do vício e da imoralidade. Esses locais também sofreram as consequências das reformas colocadas em prática nas primeiras décadas do século XX, desaparecendo para que em seu lugar se constituísse o alargamento das ruas e a construção de prédios públicos, teatros, praças, cafés, restaurantes luxuosos, ou seja, espaços condizentes com os anseios da elite. Para a autora, além do desaparecimento dos cabarés, tascas e tavernas do centro da cidade, esse fenômeno era acompanhado da exclusão daqueles que frequentavam tais espaços, um controle do Poder Público em relação ao prazer, aos costumes e práticas de determinados segmentos ainda mais marginalizados da sociedade, que buscavam, a sua maneira, resistir e buscar seus espaços num ambiente em constante transformação.
Por meio de processos criminais, a autora conseguiu identificar as apreensões que tinham como justificativa a embriaguez. Na maioria dos casos, os “infratores” eram brancos pobres, estudantes, imigrantes pobres e negros, que além de serem acusados de embriaguez, logo, eram associados a “vadiagem” (CAMARGO, 2012, p. 96-102; 132-133). Para os homens das leis, com formação em Direito, a embriaguez era associada à vadiagem, sendo que o ébrio era classificado como um perigo social, com propensão a cometer delitos, a tumultuar a ordem pública e a falta de interesse ao trabalho, na contramão do que era desejado.
Todavia, nos testemunhos daqueles que eram aprendidos, em sua maioria, afirmavam exercer algum tipo de atividade, como lavadeiras e carregadores de bagagem nas estações de trem, por exemplo. Segundo Daisy de Camargo, havia um desprezo do poder público e da sociedade sobre aqueles que exerciam trabalhos informais, sem normas e regras pré-estabelecidas, considerados, assim, vadios aqueles que não se sujeitavam ao expediente convencional.
O conhecimento racional, baseado nos preceitos da ciência, que dominavam as instituições públicas do Brasil e da cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX, transformou o ébrio num personagem da anticonduta. Os pensamentos sobre a saúde e a moral, discutidos por sanitaristas e pelos homens das leis, defendiam a necessidade de conscientização e disciplinarização das camadas mais pobres da sociedade, para criar bons hábitos e educação sanitária, nesse sentido, passaram a associar o uso do álcool com a degeneração física e moral. Segundo a autora, observa-se uma transformação na figura do ébrio, antes representado por aquele, que sob os efeitos do álcool, tinha atitudes engraçadas, com as vestimentas desarrumadas, postura inclinada, com tom de voz elevado e altas gargalhadas, passando a ser entendido enquanto indivíduo que pode vir a cometer delitos, que se tornou uma desgraça à família e ameaça aos padrões que a sociedade buscava consolidar. Cria-se, portanto, uma nova doença: o alcoolismo, difundido pela medicina e que relacionava a bebida à imoralidade, à degeneração física e moral.
O movimento de proibição do uso de álcool, por ações de conscientização da população, por meio de panfletos, educação sanitária e prisões foi entendido, pela autora, como um controle e cuidado do indivíduo, buscando o cuidado com a toda a sociedade. A regulação do uso do álcool está associada a um controle anímico do corpo, numa ânsia de orientação dos sentidos sobre o argumento da defesa do coletivo.
Em suma, Daisy de Camargo faz uma relação entre as reformas urbanas da cidade de São Paulo, que iniciaram ainda no período imperial, mas que ganharam ímpeto com o governo republicano e os espaços de venda e consumo de álcool. Por meio de uma variedade de fontes históricas, a autora alcançou as experiências, as práticas de consumo, a organização interior e a sociabilidade nas tavernas, cabarés e quiosques da cidade. Cada qual com uma temporalidade e experiência de seu tempo, enfrentavam e resistiam aos ideais que acompanhavam a virada do século, sob os preceitos da Medicina, Engenharia e do Direito.
Portanto, a autora, além de conseguir perpassar pela história social e material da ingestão de álcoois, conseguiu reconstruir as práticas do consumo, a perseguição e controle do indivíduo e suas formas de prazer e diversão que, por sua vez, não estavam em consonância com os valores e princípios desejados para a cidade que se modernizava.
Com uma narrativa fluida e envolvente, Daisy de Camargo propõe uma análise consistente sobre um tema bastante discutido na historiografia: a modernização da cidade de São Paulo. Dentro da perspectiva da história cultural e social, a autora abordou o assunto a partir da questão da embriaguez e do prazer, por meio de uma variedade de fontes que possibilitou dar voz a personagens marginalizados, o que tornou o trabalho ainda mais sólido e ímpar. Um livro importante e necessário àqueles que buscam novas questões e fontes para lidar com a história das cidades e dos modos de vida urbano.
Notas
1 Podemos destacar aqui alguns trabalhos, como: Nicolau Sevenko (1992), Sidney Chalhoub (1996), Sandra Pesavento (2002), Fransérgio Follis (2004), Heloísa Barbuy (2006), Marshall Berman (2007).
2 Designação encontrada pela autora sobre aqueles estabelecimentos que produziam/comercializavam bebidas alcoólicas nos almanaques sobre os estabelecimentos comerciais e industriais da cidade de São Paulo entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX (CAMARGO, 2012, p. 44- 55; 64-65).
3 A autora analisa duas tavernas em específico, nos capítulos 1 e 2, que por sua vez, são de propriedade de portugueses.
Referências BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São Paulo: UNESP, 2004.
PESAVENTO, Sandra. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2ª Edição. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frenéticos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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