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Alcântara: alma e história | Albani Ramos e Sebastião Moreira Duarte

A cidade de Alcântara, no Maranhão, é um playground literário onde escribas dos mais variados jaezes se exercitam, percorrendo, como numa prova de obstáculos, uma sucessão de lugares comuns cristalizados pela tradição. São marcos obrigatórios que se tem considerado como etapas inescapáveis a qualquer trabalho que se dedique à cidade, quer físicos (o pelourinho, os “palácios do Imperador”, as Igrejas e capelas, as ruínas), quer “imateriais” (a religiosidade peculiar, a cultura local, as “festas tradicionais” e uma certa forma decadentista de observar a trajetória da cidade no tempo). Aos olhos destes literatos, Alcântara oferece um percurso narrativo canônico que, à maneira de um mote clássico, tem estações obrigatórias e paradas predeterminadas, restando ao escritor se destacar pela forma como percorre esses trajetos. Há pontos em comum a quase todos estes atletas das letras: a perspectiva estrangeira, a ótica elitista e urbana e o fato de serem incapazes de superar os preconceitos que a tradição erigiu, noções inconscientes que lhes aparecem como sussurros das ruínas.

Retomemos aqui considerações fecundas presentes num texto essencial a todos os que desejam compreender o Maranhão: Alfredo Wagner Berno de Almeida demonstra que há cerca de 200 anos uma geração de intelectuais produziu a noção de que a região viveu tempos de fartura num passado distante e idílico, em vias de desaparecer, e que se vive num presente marcado pela ruína e decadência. Atrelada a essas representações da trajetória da região vem a ideia de que é necessário conceber e praticar medidas de recuperação, saneamento e regeneração, que reconduzam àquela mítica situação ideal do passado.

Esse fenômeno não é, aliás, exclusividade do Maranhão. O movimento nostálgico de se lamentar a perda de uma situação positiva situada num passado que ameaça desaparecer frente às mudanças do mundo, como lembra Marshall Berman, é um “lamento triste e amargo tão velho quanto a própria cultura”. No capítulo Decadência, em sua obra História e Memória, Jacques Le Goff mapeou a origem do termo e do conceito. A palavra decadência parece não ter existido entre gregos e romanos da Antiguidade – foi criação Idade Média – mas o conceito sim. Na Antiguidade, exprimia-se tal idéia pelo uso de termos concretos: falava-se em “deslize”, “queda”, “aniquilamento”. Hesíodo, no século VII a.C., registrou uma visão da cosmogonia vigente que espelhava uma visão decadentista do mundo. Em “O trabalho e os dias”, expôs a “deterioração da condição humana” por meio do mito da Era de Ouro: como resposta a uma provocação, as divindades lançaram a desgraça sobre a humanidade, fazendo desaparecer os tempos de saúde, fartura e bonança, semeando gerações progressivamente imperfeitas, pejando os homens de padecimentos. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, apontou a existência da vertente judaicocristã dessa visão pessimista do mundo atual em contraste com um passado ideal, afirmando que “a idéia da corrupção deste nosso mundo e da natureza, em consequência do Pecado e da Queda, acha-se implantada em todo o sentimento e pensamento cristãos, e deita claramente suas raízes nas Sagradas Escrituras”. O conceito de decadência, conclui Le Goff, ofereceu a diversas sociedades ao longo do tempo uma leitura da história onde se critica o presente em nome de valores realizados no passado. De todo modo, em suas palavras, “o flagrante caráter ideológico do conceito de decadência levou a historiografia contemporânea a abandoná-lo em benefício do conceito de crise”. No Brasil, conforme apontam diversos estudos, esse sentimento de nostalgia, essa “retórica da perda”, na expressão de José Reginaldo Santos Gonçalves, informou a fundação e a atuação dos órgãos governamentais responsáveis pela eleição e preservação do patrimônio histórico nacional. O singular no caso maranhense talvez seja a profundidade e a extensão que o decadentismo alcançou, bem como sua durabilidade no tempo. Como demonstrou o citado Alfredo Wagner, essa “ideologia da decadência” contaminou os discursos e as práticas de um enorme grupo de pessoas, na Província e mais tarde no Estado, impregnando a produção literária e intelectual, o pensamento e a atuação dos governantes e a própria mentalidade de vastas parcelas da população maranhense.

O livro aqui resenhado atesta a impressionante vitalidade de tal paradigma. Sebastião Moreira Duarte, responsável pelos textos que acompanham as fotografias de Albani Ramos no livro “Alcântara: alma e história”, revisitou as posições dos autores decadentistas. Com sua prosa licorosa, Duarte narra o apogeu e a decadência de Alcântara, num clima de perfeita nostalgia. Avisa, já no intróito, que Alcântara é “uma cidade do passado, que guarda em solidão o pudor de suas ruínas”, uma “Tróia brasileira” onde, em contraste com a “ludovicense Atenas”, impera a “melancolia indefinível, a saudade desolada, a precisa expressão do sentido da perda”. Para ele, “Alcântara vive de ser morta” (p. 12).

O autor reedita todas as citações obrigatórias, empregadas sucessivamente pelos autores tradicionais, para “demonstrar” a decadência: repete as palavras de Antônio Bernardino Pereira Lago, de Raimundo Gaioso, de Spix e Martius, que em suas passagens pela região no início do século XIX deixaram suas impressões sobre a situação local. Refaz=se o trajeto narrativo tradicional, que já fora trilhado por Jerônimo de Viveiros e Antônio Lopes: fala-se da “velha Tapuitapera”, da chegada dos franceses, da fundação da Vila e de outros eventos considerados importantes, presentes em praticamente todas as narrativas sobre a cidade. Em ambos os casos, tanto na citação das velhas fontes quanto na repetição dos caminhos trilhados pelos autores “clássicos”, Duarte remete às práticas literárias em voga no passado, em que os que escreviam buscavam revestir seus textos de autoridade por meio da associação com autores já consagrados e reconhecidos.

Duarte pinta com traços vivos a imagem idealizada que faz da antiga sociedade escravista imperial, responsável, em sua análise, por elevar a cidade ao seu “auge”. Sob as luzes vacilantes dos lampiões de gás (que a cidade, aliás, nunca teve), ele faz desfilar suas “caleças e palanquins vagarosos, sinhazinhas preguiçosas, barões de bolso e barriga estufados, mucamas empoadas, negros que se recusam juntar-se com negras de outras comarcas, clérigos fornicadores” (p. 13 e 16). Parafraseando Jerônimo de Viveiros, Duarte se queixa de saudades dos palanquins, das “cadeirinhas de arruar” que transformavam homens em animais de carga para deleite de umas poucas “sinhazinhas preguiçosas” e barões abastados. O autor lamenta também que os moradores atuais de Alcântara se recusem a assumir o papel que a cidade, um “palco fixo, cenário que não se renova” (p.12), parece exigir deles.

A atitude de Duarte repete uma representação da cidade de Alcântara que vem aparecendo continuamente nos trabalhos dos literatos, poetas, jornalistas e “historiadores” que dela fazem seu objeto. Constrói uma visão açucarada da sociedade escravista dos oitocentos, e elide, neste movimento, a violência, a opressão e a extrema concentração de riqueza experimentadas naquele período. Para uma leitura mais “realista” do cotidiano alcantarense oitocentista, deve-se procurar os cartórios e arquivos, devassar os autos cíveis e criminais, os códigos de posturas municipais; veja-se os testamentos e inventários deixados pelos senhores e senhoras de terras e escravos, onde famílias de pessoas escravizadas eram friamente apartadas entre os quinhões dos herdeiros. Na própria citação empregada pelo autor pode-se ver o caráter excludente daquela sociedade: Antônio Bernardino Pereira do Lago fala da existência de 60 casarões senhoriais numa cidade que abrigava 8000 almas. Com algumas simples operações matemáticas pode-se perceber que, para a maior parte da população, casarões eram realidades inatingíveis.

Por outro lado, enquanto contempla os “eleitos”, Duarte omite de sua narrativa, e dessa forma, da “história” de Alcântara, as trajetórias dos milhares de indivíduos que, a partir do que os autores clássicos consideram o “ponto final” da história da cidade, deram prosseguimento à vida dela. Os ex-escravos, caboclos, pobres livres, forros, enfim, os camponeses de Alcântara tornaram-se os novos senhores da cidade, assumindo a propriedade das terras, reorganizando as estruturas produtivas e sociais. A análise desse momento pós-latifundiário da história da cidade, aliás, tem sido feita não por historiadores, mas por antropólogos e cientistas sociais.

Duarte deixa de reconhecer a validade desse período tão fértil da trajetória da cidade, um momento, segundo ele, em que “já nada mais se esperava, e a cidade apenas respirava à base da produção material e simbólica, da maioria de sua população negra” (p.18). Desse marasmo a velha Tapuitapera só sairia graças à iniciativa saneadora – idéia, lembremos, inerente à concepção decadentista – de se instalar no território local uma Base de Lançamento de Foguetes. Alcântara tornava-se, assim, “a cidade que renasce para o espaço” (p. 18).

Com essa interpretação, Duarte fecha o circuito narrativo tradicional. Como a um Cristo, o autor conduziu a trajetória da cidade pelos “passos da paixão”: se aquele foi crucificado, morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos e ressuscitou ao terceiro dia, a cidade teve um passado de fausto, padeceu sob a decadência, mas renasceu graças às medidas de regeneração trazidas pelo governo e seus parceiros da iniciativa privada. Esquece-se o autor de considerar que as “medidas de regeneração” mimosamente descritas em sua obra, que começaram com a mercantilização das terras dos territórios étnicos na Baixada Maranhense nos anos 1970, e atingiram um ápice de ousadia com a desapropriação de mais da metade do território do município de Alcântara para a instalação da tão propalada Base – empreendimentos, note-se, realizados justamente na esteira da Ditadura Militar – provocaram uma das maiores tragédias humanas do Brasil dos últimos 50 anos, despejando dezenas de milhares de pessoas nas periferias de São Luís e cidades circunvizinhas, pondo em risco de destruição culturas centenárias. A enormidade dos prejuízos humanos rendeu um espinhoso processo judicial em que a população atingida litiga contra o Estado brasileiro em cortes internacionais.

O texto de Sebastião Moreira Duarte, enfim, repousa num já repisado berço de representações sobre a trajetória do Maranhão e de Alcântara. Ele encontra ressonância nos discursos emanados dos órgãos oficiais de cultura, e está presente nas narrativas oferecidas aos turistas que visitam a região; tais pessoas, quando retornam para seus locais de origem, certamente estarão levando consigo a idéia de que acabaram de visitar uma região decadente, um resto de tempos melhores que se foram. Vão sentir saudades da sinhá e do sinhô. O mesmo pode ser dito daqueles leitores que se deixarem convencer pelas belas palavras de Sebastião Moreira Duarte.


Resenhista

Daniel Rincon Caires – Especialista em História Pesquisador do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM.


Referências desta Resenha

RAMOS, Albani; DUARTE, Sebastião Moreira. Alcântara: alma e história. São Luís: Instituto Geia, 2011. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v.7, n. 14, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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