Agudás: os “brasileiros” do Benim | Milton Guran
Ao desembarcar pela primeira vez no Benim, país da África ocidental, em 1994, Milton Guran tinha o projeto de estudar a utilização da fotografia como instrumento de pesquisa nas ciências sociais. A escolha do objeto de estudo — comunidades de descendentes de traficantes negreiros e de ex-escravos retornados do Brasil, que continuavam a ser chamados brasileiros, ou agudás — resultou de sugestão que lhe foi feita quando preparava sua tese de doutoramento em antropologia num dos centros de estudos africanistas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, o da Vieille-Charité, em Marselha, na França.
Até então, Milton Guran trabalhara como fotojornalista; publicara textos sobre fotografia e comunicação; e realizara ampla documentação de grupos indígenas brasileiros exibida em vários países.
Aceitar a sugestão das comunidades agudás como objeto de estudo representava considerável desafio, o de dialogar com a bibliografia de prestigiados autores brasileiros (J. F. Almeida Prado, Gilberto Freyre, Mariano e Manuela Carneiro da Cunha) e com muitos trabalhos de autores beninenses, nigerianos, europeus e norte-americanos. E enfrentar a singu-laridade de os agudás já terem sido fotografados por Pierre Verger, que reproduzira suas fotos em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX, tese de doutoramento de Estado publicada na França em 1968 (Verger, 1987).
Agudás: os “brasileiros” do Benim transmite a impressão de que Milton Guran reverteu o que poderia constituir situação de desafio através de dois procedimentos: o de tirar explicitamente partido de extenso levan-tamento bibliográfico e o de buscar sua atualização com base em entrevistas e em correspondência trocada com integrantes da comunidade agudá; fazer etnografias de celebrações ocorridas recentemente e, portanto, também inéditas. Quer dizer, não completamente: há fotos de Pierre Verger das comemorações do Senhor do Bonfim e de apresentação da burrinha em Porto Novo, Daomé, em Fluxo e refluxo etc. Mas, nesse caso, não caberia falar em superposição. As fotos de folguedos e de ritu-ais religiosos de Milton Guran elucidam uma frase, a princípio quase enigmática, da ‘Apresentação’ de Alberto da Costa e Silva: “Milton Guran não repete Pierre Verger, também fotógrafo e scholar. Mas, na essência, o continua” (p. xii).
O livro tem uma pequena ‘Introdução’, onde é exposto seu objetivo central — o estudo do processo permanente de construção da identidade social agudá no Benim — e quatro capítulos, dos quais comentarei alguns aspectos, destacando o tratamento conferido a dois gêneros de imagens, retratos e etnografias visuais de celebrações.
Alguns historiadores, como J. F. de Almeida Prado, Maurício Goulart, Luiz Vianna Filho, Pierre Verger, Manolo Florentino, João Luís Fragoso e Luiz Felipe de Alencastro, enfatizam a especificidade política, econômica e social da intervenção luso-brasileira na África, que a diferencia da intervenção propriamente portuguesa. Com a brasilianização do tráfico negreiro, a partir de meados do século XVII, foi construído o Forte de São João Baptista da Ajuda, na costa da Mina, em 1680. Alencastro (2000, p. 16) ressalta que “a construção do forte foi uma iniciativa de comerciantes baianos, que pagaram todos os custos, inclusive os de manutenção. Além do que, ele se encontrava ligado administrativamente ao vice-rei do Brasil, de onde vinha a maior parte de sua guarnição.”
No século XVIII, de Salvador zarpavam os barcos que controlavam o tráfico negreiro na costa da Mina e, desde então, cresce o número de luso-brasileiros no golfo do Benim. Até o começo do século XIX, predomi-navam brancos entre os traficantes de escravos na região, mas, a partir da revolta dos malês na Bahia, em 1835, houve a chegada maciça (entre três a oito mil, segundo diferentes avaliações) de escravos libertos deportados ou retornados espontaneamente, vários deles tendo passado a exercer também a atividade de traficantes. Os descendentes dos luso-brasileiros e os dos antigos escravos vindos do Brasil são até hoje denominados “brasileiros”, ou agudás em línguas locais. A designação vem provavelmente da transformação da palavra “ajuda”, muito conhecida devido à existência do forte de Uidá, ou seja, o Forte de São João Baptista da Ajuda.
Na ‘Introdução’, Milton Guran expõe a perspectiva relacional que adotou para estudar o que significa ser “brasileiro” no Benim, remetendo à consideração de Manuela Carneiro da Cunha (1985) sobre processos de construção de identidade: “o que se ganhou com os estudos sobre a etnicidade foi a noção precisa de que identidade é construída de maneira situacional e por contraste, ou seja, que ela constitui uma resposta política a uma determinada conjuntura, uma resposta articulada com as outras identidades envolvidas, com as quais forma um sistema”. No livro em análise, Milton Guran interessa-se efetivamente pelas estratégias de valorização de diferenças adotadas por ex-escravos retornados do Brasil como meio de sua reinserção social na África: “os antigos escravos — sejam de origem iorubá, fom, mina ou outras — só tinham em comum entre si o fato de terem sido escravos no Brasil, de falarem português, de terem ‘maneiras de branco’ e de se dizerem católicos. É então com os brancos, no caso os ‘brasileiros’ há muito estabelecidos na Costa, que eles vão se identificar e estabelecer alianças” (p. 9).
A importância política de luso-brasileiros desde o começo do século XIX pode ser avaliada pela posição que alcançou dom Francisco Felix da Silva, opulento traficante nascido na Bahia. Desentendimentos opondo o rei do Daomé a dom Francisco levaram-no ao cárcere, onde também se encontrava o príncipe e irmão caçula do rei. Os dois prisioneiros aliaram-se e a fuga de dom Francisco foi facilitada em troca de seu apoio à desti-tuição do rei. Como o príncipe conseguiu ascender ao trono com o nome de Guezo, a dom Francisco foi concedido o título de Chachá, a condição de vice-rei de Uidá e o monopólio sobre o tráfico de escravos no Daomé. A nova posição de dom Francisco levou à redefinição dos direitos dos brancos residentes na costa do Benim. Até então sob a autoridade de um governador africano, passaram à proteção do Chachá, que conseguiu lhes fossem concedidas terras, o que era até então vedado a estrangeiros.
Com o tempo, luso-brasileiros e ex-escravos retornados vieram a constituir um novo grupo econômico no reino do Daomé. Ainda durante o período do tráfico negreiro clandestino destinado ao continente americano, iniciou-se a transição de uma economia tendo por eixo a guerra e o tráfico para atividades voltadas à exportação de óleo de dendê, produzido com base em trabalho escravo. O novo negócio foi inicialmente controlado por agudás, até que, no final do século XIX, à presença crescente de casas comerciais somou-se a ocupação político-militar francesa da região.
No capítulo ‘Os brasileiros do Benim’ há uma série de biografias de negreiros luso-brasileiros, de ex-escravos retornados do Brasil e de seus descendentes. Além de oferecerem um amplo painel da história do Benim, estas biografias compõem-se de dois tipos de retratos: os que são extraídos dos depoimentos de negreiros, de autoridades coloniais inglesas e francesas, de viajantes e seus comentadores; pinturas e fotografias dos autobiografados. Este capítulo bastante longo, de quase cem páginas, poderia ter parte de sua matéria remetida a anexos, cedendo lugar a mapas que permitissem localizar os muitos territórios referidos — regiões, reinos, países, cidades — que, ainda por cima, mudam de estatuto e de nome ao longo do tempo.
Luxo e luxúria talvez sejam as duas palavras que melhor restituam os motivos da reação ambivalente de observadores europeus sobre os negreiros agudás. Falam da opulência, da refinada qualidade dos produtos importados que consumiam e ofereciam aos convivas, da quantidade de mulheres que os cercavam e de sua alentada descendência. Falam também do ruidoso espalhafato quando de suas aparições públicas. Ou em termos mais crus: “Estes homens não lêem jamais, escrevem raramente, sua alma é completamente envolvida pelos prazeres sensuais; em estado de semi-nudez, fumando continuamente, eles passam a maior parte de sua vida no harém” (Forbes, 1851).
Em vários aspectos, as impressões deixadas por estes observadores contrastam com as imagens dos retratos que agudás encomendaram, conservaram, até hoje exibem nas paredes de suas casas e reverenciam quando da realização de certos rituais. Para Milton Guran, as pinturas a óleo e, a partir dos anos 1870, as fotografias de membros das famílias “brasileiras” mais influentes (como as de Domingos José Martins, Francisco José de Medeiros, Francisco Olympio da Silva, Ignacio Paraíso e Sabino Vieyra) constituem importante dispositivo no processo de construção da identidade agudá. Em seus retratos, eles sempre aparecem vestidos à européia, afirmando sua condição de “civilizados” em oposição ao “primiti-vismo” e à “selvageria” de beninenses autóctones, ou seja, os que não viveram a condição de escravos no Brasil. Num segundo momento, estes retratos também contribuiriam para mostrar que os agudás já eram “evoluídos” antes que a colonização francesa tenha generalizado “maneiras de branco” entre a maioria da população.
A ênfase da análise do único retrato do primeiro Chachá (p. 27), pintura a óleo encomendada por um de seus descendentes, recai em sua semelhança com a imagem de herói tendo cumprido seus feitos em contexto de todo alheio à costa ocidental da África. Trata-se da semelhança entre o retrato de dom Francisco Felix da Silva e o de Giuseppe Garibaldi, assinalada por Pierre Verger (1953).
Quanto a um retrato do Chachá II (p. 177), Gilberto Freyre atribui à composição da pintura a óleo — estante de livros, ao fundo, homem vestido à européia, com uma das mãos pousada na aba do paletó e outra sobre uma escrivaninha, “acariciando papéis, tinteiro e penas” — a “vontade de impressionar” a outros “brasileiros” e a eles mesmos, os que tinham vencido na África. Satisfariam assim seus desejos levados do Brasil, “como o de parecer com notários, ou médicos, ou burocratas”. Desde o final do século XVIII, estes personagens teriam “ganho prestígio suplantando capitães e sargentos de outrora; e isto permitia aos mulatos uma ascensão social mais rápida e mais fácil do que a carreira militar” (Freyre, 1962).
Como então interpretar os retratos frente às observações de europeus sobre negreiros agudás? Contrafações, peças de uma estratégia para marcar diferenças com outros setores da sociedade, empréstimos a imagens prestigiadas em outros contextos? Se o retrato, como afirma Milton Guran, é a “definição visual de um indivíduo, a imagem que escolheu para representá-lo pessoal e socialmente”, as imagens pictóricas e fotográficas dos agudás não deveriam ser tomadas como meras contrafações. Apesar das diferenças que marcam os contextos culturais, sociais e políticos do Benim do século XIX e o Brasil dos anos 1920-1940, caberia pensar em “imagens negociadas”, um “empreendimento de mão dupla, ou seja, de um lado, os reclamos e apelos dos retratados com vistas à modelagem de imagens ajustadas às suas necessidades de afirmação …; de outro lado, a oferta de procedimentos, soluções e linguagens por parte do retratista” (Miceli, 1996).
A “modelagem” não se faria no entanto ex nihilo. Os negreiros agudás, que atraíam para suas amplas residências as “mais belas mulheres da Costa”, também praticavam estratégias matrimoniais complexas: por um lado, visando criar alianças com chefes africanos tradicionais; por outro, casando-se e casando seus descendentes com membros de outras famílias agudás, a endogamia constituindo outra estratégia de fortalecimento de sua “comunidade”. No 2o capítulo, ‘A cultura brasileira visível e invisível’, Milton Guran mostra que ao vestir-se à européia correspondiam também outras práticas de “brancos” — comer com talheres, falar português, construir sobrados em alvenaria, dotar-se de móveis em madeira escul-pidos etc. — além de práticas econômicas complexas (registros de embarques de escravos; administração de barracões com milhares de escravos utilizados na plantação de dendezeiros; manutenção de múltiplas contabilidades com bancos e casas comerciais baianas), que matizam a imagem deixada pelos relatos de observadores europeus.
Nas fotos de descendentes de negreiros há uma espécie de descontração que contrasta com a tensa necessidade de representação dos “pioneiros”. Madame Achilles Béraud, uma das filhas de Francisco de Medeiros, aparece matronalmente com a filha Clotilde e marido, em foto que evoca o apoio da maioria da comunidade agudá à ocupação colonial francesa (p. 53). Mas, é sobretudo a foto de Agnès de Souza, neta de Isidoro de Souza, o Chachá II, com seu marido Kpoti, que melhor ilustra uma nonchalance admirável. Olham direta e ostensivamente para a câmera, pernas cruzadas, displicentes, altivos, quase insolentes (p. 178). Em 1949, a técnica fotográfica já não exigia mais a imobilidade da pose. De terno e gravata, numa paisagem de palmeiras mediterrâneas e carros em movi-mento, Eustache Prudêncio — ex-ministro, ex-embaixador, poeta reconhecido na França e no Benim — caminha em direção do fotógrafo e, pela primeira vez, há algo como um sorriso numa foto de agudá (p. 109).
Na análise do processo de construção da identidade social agudá, Milton Guran destaca ainda a prática do catolicismo como sendo o instrumento “mais eficaz, no mesmo nível que a representação de si, entre os meios empregados pelos antigos escravos retornados para estabelecer fronteiras nítidas face às sociedades locais” (p. 90). Um missionário católico informava, em 1864, que “na língua dos naturais”, as palavras “brancos” e “cristão” são sinônimos de “senhor” e de “livre”, enquanto que “negro” e “pagão” equivalem a servidor, escravo. No Daomé, principalmente, chama-se de branco todos os cristãos, ainda que sejam negros como o ébano (Borghero, 1864).
lguns retratos, fotos de grupos, evocam a prática do catolicismo. Em fotografia do conselho paroquial da Catedral de Notre-Dame des Apôtres, dos anos 1930, há pose convencional: duas carreiras de homens sentados e de pé; dois missionários brancos ocupando posição central em cada fila, ladeados de homens negros de diferentes idades vestidos à européia, um deles com uniforme militar colonial francês (p. 95). Pela legenda, sabe-se que figura na foto o presidente da Irmandade Brasileira Bom Jesus do Bonfim, de Porto Novo, o que sugere a convivência das velhas instituições do catolicismo baiano e o das missões francesas.
Uma segunda foto liga-se a outra convenção, a da foto de casamento, em que os noivos deixam a igreja sob o olhar de parentes e convidados, desta vez em Paris, no ano de 1974 (p. 77). Embora trate-se de casamento católico, a foto permite também abordar outra confissão religiosa trazida do Brasil pelos escravos retornados. O noivo, o dr. Noel Paraíso, além de primeiro médico cardiologista beninense, é descendente de Ignacio Souleiman Paraíso, que foi figura-referência para os antigos escravos islamizados. O projeto de construção da grande mesquita de Porto Novo (p. 110), a partir de 1913, deveu-se à sua iniciativa. As relações entre muçulmanos autóctones e escravos retornados do Brasil foram, no entanto, sempre marcadas por conflitos envolvendo desde a desconfiança acerca da sinceridade de sua devoção até o fato de haver muçulmanos e católicos numa mesma família: “Os ‘brasileiros’ muçulmanos e católicos eram portanto mais unidos pelas suas afinidades culturais do que separados por suas convicções religiosas” (p. 97).
‘A identidade em ação’, 30 capítulo, reúne etnografias das celebrações de Nosso Senhor do Bonfim; apresentações da burrinha, folguedo semelhante ao bumba-meu-boi; e da entronização do Chachá VIII. Neste capítulo, as fotografias são de Milton Guran e têm caráter narrativo, sugerindo seqüências espaço-temporais. Estas imagens ampliam a galeria de tipos sociais e de lugares tratados no livro. Quase todos os agudás antes retratados pertenciam à elite “brasileira”. As etnografias revelam uma “comunidade” estratificada, relações entre grupos que, ocupando diversas posições sociais, participam de manifestações diferentes de afirmação da identidade cultural “brasileira”. Embora anteriormente referidos, só com estas etnografias aparecem imagens de chefes e cultos religiosos africanos tradicionais.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a influência dos “brasileiros” começara a declinar e, com a independência, em 1960, a tendência se acentuou: “os agudás, que já eram tradicionalmente considerados estrangeiros, foram assimilados pelos beninenses aos franceses como colonizadores”. Karin Urbain da Silva, cônsul honorário do Brasil, em Porto Novo, afirma que, até 1972, “houve um acerto de contas com os ‘brasileiros'”. Segundo Milton Guran, o cônsul refere-se ao “regime marxista do general Kérekou, quando os agudás foram discriminados e, dessa vez, assimilados à burguesia”. Certos “brasileiros” sustentam que foram então praticamente banidos da vida pública, vítimas da “fúria anticolonialista que tentou igualmente eliminar as chefias tradicionais” (p. 274).
A partir de 1989, o “processo de democratização” do Benim foi acompanhado de um movimento de “revalorização das chefias tradicionais, bem como dos cultos vodus e demais manifestações religiosas” (p. 274). A situação evocada parece semelhante a que viveram outros países africanos desde os anos 1980: o fortalecimento de tendências favoráveis à adoção de políticas econômicas neoliberais, ao pluripartidarismo e ao apoio a práticas culturais tradicionais. Nesta nova conjuntura, foram adotadas normas de administração burocrática tanto para a gestão da festa de Nosso Senhor do Bonfim e das apresentações da burrinha, quanto para as relações internas à família De Souza e, particularmente, da escolha de seu dirigente, o Chachá. Com as chefias tradicionais revalorizadas, buscou-se superar obstáculos que inviabilizavam a designação de um novo Chachá e o restabelecimento de alianças simbólicas visando reforçar o poder dos agudás. As etnografias deste capítulo comportam quase sempre duas vertentes. Comemorações são movidas por atos de devoção, pelo gosto de dançar e cantar, pelos prazeres de práticas de sociabilidade, mas podem também constituir encenações para ampliar a repercussão de projetos políticos.
Ao descrever os desfiles de celebração de Nosso Senhor do Bonfim, Milton Guran afirma que lembram “momentos do carnaval brasileiro”, mas de tempos passados. As fotos mostram mulheres de várias idades vestidas com roupas compridas, de braços encobertos até o cotovelo e homens de calça, camisa e gravata. O cantar, o dançar e o tocar pandeiro fazem-se com grande pudor em relação ao corpo. A coreografia limita-se à constituição de duas filas que avançam paralelamente dançando o “samba” e portando lanternas (pp. 137-41). Nas imagens de visitas a casas de “brasileiros”, aparecem dois tipos de motivações: receber donativos e reverenciar a memória de um antigo patrono do folguedo da burrinha ( pp. 141-43).
A sugestão de um lugar onde o tempo parou acentua-se com as fotos da missa (pp. 148-50): os personagens — por suas roupas e sua atitude de digno recolhimento — e o próprio estandarte são os mesmos que Pierre Verger fotografara há mais de trinta anos. Em 1996, no entanto, já não houve apenas uma, mas duas missas, repercutindo tensões surgidas com a desagregação da Irmandade Brasileira Bom Jesus do Bonfim e a criação de uma Association des Ressortissants Brésiliens, presidida pelo já referido cônsul honorário do Brasil e empresário mais rico de Porto Novo. Abandonar a denominação irmandade correspondeu a inovações que não foram do agrado de todos. A criação de uma segunda Association des Ressortissants Brésiliens — Bourian teria refletido a insatisfação com o enfraquecimento das práticas de ajuda mútua, que iam de par com o sustento da instituição através de cotizações. O financiamento dos festejos pelo empresário estaria criando dependência clientelística, em detrimento da rede de relações pessoais que, ao longo dos preparativos das celebrações, constituíam momentos de afirmação coletiva da identidade “brasileira“.
Quanto à bourian — o folguedo da burrinha em sotaque local — também começa a ser atravessado por disputas e a passar por transformações. A burrinha é o fecho das celebrações do Bonfim, mas, nos últimos anos, constituíram-se grupos de bourian profissionalizados em várias cidades do Benim. Apresentam-se em celebrações familiares e em hotéis, o que talvez lhes destine futuro estatuto de atração turística. A etnografia visual da burrinha compõe-se de registros que vão de ensaio em pátio interno de uma residência (pp. 159-61) a duas apresentações públicas do folguedo, em que se vê o contraste entre personagens, figurinos e coreografia da burrinha organizada por cada uma das Association des Ressortissants Brésiliens (pp. 164-72).
Aos poucos configura-se uma nova imagem da “comunidade brasileira”. Às mudanças atingindo manifestações religiosas e folguedos, acrescentam-se conflitos dentro do próprio núcleo da elite agudá1 e a persistência de práticas religiosas animistas, que são significativamente referidas quando evocam-se suspeitas de vinganças e assassinatos por envenenamento. As fotos que acompanham a descrição do templo do Dagun (pp. 205-8), o vodu da família De Souza, mostram espaços recobertos com louvações ao primeiro Chachá entrelaçadas, através de linhas sinuosas de folhagens, a pinturas de serpentes e elefantes, animais simbolizando seu poder. Frente ao templo, a figura longilínea do Dah Dagun Nonchéokon (p. 210), chefe do culto que, com seus filhos pequenos, transmite a calma tranqüilidade que, diz-se, o vodu Dagun assegura quando vela pela saúde de crianças.
Os Chachás foram inicialmente designados pelos reis do Daomé, mas, a partir da dominação colonial francesa, a própria família De Souza passou a nomear seu chefe. Mais recentemente, no entanto, conflitos entre facções impossibilitaram o processo de sucessão. Só em 1989, com a regulamen-tação formal das relações entre membros da família — através da criação de um Conselho Supranacional Benim-Togo e da Union de la Famille De Souza, entidade jurídica sob a forma de associação sem fins lucrativos — é que Honoré Feliciano Julião De Souza, abastado empresário estabelecido no Togo, foi escolhido Chachá VIII.
A última série de etnografias do livro compreende episódios relativos à entronização do Chachá VIII. As fotos traduzem a preocupação com o controle de uma encenação complexa exigindo desde invenção de cerimonial; reconstituições de antigos rituais até a confecção de figurinos “brasileiros”, aliás reatualizados com a difusão da novela televisiva Escrava Isaura. As práticas rituais sucessivas ligam-se a diferentes tradições: bençãos pelas tassinons (tias mais idosas, em língua mina), espécie de sacerdotisas; ato de devoção diante do túmulo de dom Francisco Felix De Souza, a quem se deu de beber e de comer; missa solene rezada por dois bispos e oito padres pertencentes à família De Souza; cumprimentos por altas autoridades civis do Benim, pelo representante da delegação diplomática brasileira junto ao Togo e membros da família De Souza vindos da Nigéria, da Costa do Marfim, do Senegal e da França (pp. 235-45).
Quando as celebrações passam para as ruas de Uidá, a festa é dos pobres. Reaparece a mesma coreografia limitada a filas paralelas, como na celebração do Bonfim, mas dessa vez com mascarados figurando brancos. Há a presença de personagens da burrinha; faixas de louvação ao “ancestral” dom Francisco e mulheres vestidas à ocidental, sempre com muito decoro, dançando “samba”. Mas, na proximidade do carro de teto aberto em que desfilava o Chachá VIII, o cerimonial volta a primar pela improvisação: as filas são apenas compostas de mulheres vestidas “à brasileira” e, depois delas, mulheres fantasiadas de amazonas, lembrando a guarda pessoal do rei de Abomé (pp. 248-53).
Há mais de um século, o rei de Abomé não tem mais poderes na administração do Estado, mantendo, no entanto, a condição de chefe dos cultos aos vodus reunidos por seus ancestrais e de símbolo maior da identidade fom, etnia majoritária no Benim. Antes e depois de sua entroni-zação como Chachá VIII, Honoré De Souza visitou o rei de Abomé, visando renovar simbolicamente o pacto que ligara o rei Guezo e dom Francisco Felix De Souza, fundamento do poder político inicial dos agudás. Nas fotos registrando estas visitas, vêem-se as únicas imagens da elite africana tradicional. O rei seminu portando calota, colares adornando o tronco obeso e o filtro de prata que encobre seu nariz faz pensar nos persona-gens que escandalizavam os obervadores europeus do século XIX (pp. 218, 220, 259). Outras imagens, no entanto, como a dos ministros do rei prosternardos em homenagem ao Chachá VIII (p. 258), sugerem uma sóbria solenidade contrastando com o que permanece factício nas celebrações da elite agudá. Depois de entronizado, ao Chachá VIII foram outorgados os atributos de poder: uma bengala esculpida e um grande pára-sol, símbolo de nobreza e autoridade. No enquadramento destas fotos estão sempre presentes câmeras de televisão, lembrando que alianças políticas se estão refazendo intencionalmente ao vivo, para o espectador.
Numa última foto, Agoli-Agbo, atual rei de Abomé, despede-se cordialmente do Chachá VIII, que já se vai embora em seu elegante automóvel. A imagem sugere o fim de um capítulo, de uma história que não pára, como provam as mudanças recentes em instituições da “comunidade brasileira”, e a contínua reelaboração da identidade social dos agudás do Benim.
Nota
1 Disputas no interior da comunidade “brasileira” anteriormente mencionadas diziam respeito a ex-escravos africanos de luso-brasileiros e de escravos retornados do Brasil, que reivindicavam seu pleno pertencimento à família agudá, inclusive por lhes ter sido atribuído o sobrenome de seus antigos proprietários.
Referências
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BORGHERO, Francisco 1864 ‘Relation sur l’établissement des missions dans le vicariat apostolique du Dahomey’. Annales de la Propagation de la Foi, 36.
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VERGEr, Pierre 1987 Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo, Corrupio.
VERGER, Pierre (Fatumbi) 1953 ‘Influence du Brésil au Golfe du Bénin’. Les Afro-Américains — mémoires de l’Institut Français de l’Afrique Noire, 27, pp. 11-101.
Resenhista
Ana Maria Galano – E-mail: amgalano@openlink.com.br
Referências desta Resenha
GURAN, Milton. Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Resenha de: GALANO, Ana Maria. Identidade, retratos e etnografia visual. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.7, n.3, nov. 2000/fev. 2001. Acessar publicação original [DR]