Água: uma novela rural | João Paulo Borges Coelho
Água, uma novela rural é o décimo primeiro livro de João Paulo Borges Coelho (JPBC), nome que vem ganhando notoriedade tanto na literatura africana quanto nos estudos literários. Evidência neste sentido é a crescente produção crítica de sua obra, a exemplo do congresso intitulado: O cartógrafo da Memória: A poética de João Paulo Borges Coelho, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em julho de 2017, a publicação da coletânea de artigos: Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros (Editora Colibri, 2017) e o Dossiê: Passados antecipados, futuros empoeirados: os caminhos da ficção de João Paulo Borges Coelho, da Revista Mulemba (UFRJ, 2018) . Importa situar que os prêmios José Craveirinha da Literatura (2004) pelo romance As Visitas do Dr. Valdez, o Leya de romance histórico (2010) com O Olho de Hertzog contribuíram para o reconhecimento de sua obra literária composta por dois livros de contos, três novelas e sete romances.
Além de escritor, JPBC é historiador e professor no Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Sua produção acadêmica é constante, sendo sua tese de doutorado, até hoje, uma das principais referências no tocante aos processos de deslocamento na região de Tete1. Em outra ocasião, argumentei que o aprofundamento de sua contundente experiência acadêmica incentivou sua escrita literária pois foi precisamente em Tete, província central circundada pela Zâmbia, Zimbábue e Malaui, o cenário escolhido para sua primeira obra literária, As duas sombras do rio (2003), que versou sobre a guerra civil moçambicana (1976-1992)2. Contudo, vale ressaltar, que os dois espaços de produção textual, a literatura e a história, são para JPBC complementares, segundo suas próprias palavras: “Assumo-me como eu próprio, uno e indivisível, embora com as contradições e conflitos que, de uma maneira ou de outra, nos atravessam a todos. Não estou dentro do acadêmico ou do escritor, eles é que estão dentro de mim”3.
Explorando essa dupla habilidade alguns de seus romances históricos incluem no corpo do texto fontes documentais, a exemplo de Rainhas da Noite (2009), que aborda as relações entre os empregados domésticos e as mulheres dos engenheiros estrangeiros da antiga Carbonífera de Moçambique, hoje explorada pela brasileira Vale4. Já em Crônica da Rua 513.2 (2006) a estratégia é abordar o socialismo colocado em prática pelo governo pós-independente através de uma “intestina batalha” problematizada no cotidiano de transformações (e de permanências) de uma rua qualquer na capital Maputo, e as relações estabelecidas entre os novos e os antigos moradores, que tencionam a teoria e as muitas estratégias da aplicação prática do projeto marxista-leninista. Ou seja, trata-se de uma rua cujo microcosmo de virtudes e defeitos indicam que a história moçambicana pós-independência é plural, como toda história deve ser. Nesta direção, Elena Brugioni (2014) lembra que a proposta literária de JPBC questiona uma visão celebratória da história ao entrelaçar memórias e testemunhos individuais. Em Campos de Trânsito (2007), por exemplo, o autor toca em uma das feridas não cicatrizadas da história recente do país, o silêncio oficial sobre os campos de reeducação socialista criados pela Frente de Libertação de Moçambique entre 1975 e meados da década de 1980 5.
Infelizmente JPBC não é publicado no Brasil nos privando de uma literatura cuja narrativa discute com primazia a relação entre memória, história e política ampliando o que o autor chamou de “a grande fábula da libertação”6. Fábula na qual seriam escolhidos como detentores de uma memória oficial apenas aqueles cujas trajetórias estão diretamente ligadas a luta de libertação do país. Às gentes simples com suas “pequenas dignidades” seria relegado o papel de esquecimento histórico na construção da jovem nação. Como mencionou Achille Mbembe (2013) a construção de uma narrativa histórica oficial do estado pós-colonial é um dos elementos usados para legitimar sua hegemonia que procura ser, ao mesmo tempo: “narrativa, sistema simbólico e revelação”.7
Contudo, é no cotidiano de pessoas comuns em uma aldeia assolada pela falta do líquido mais valioso que (de) corre Água: Uma novela rural. Entre os personagens, os velhos Ryo e Laama passam os dias amarelos da seca a “esventrar a natureza para lhe ler, nas entranhas, os sinais” (p.12) no esforço de compreender porque tardam os dias verdes da chuva. Os dois tem opiniões divergentes sobre quase tudo, incluindo os desígnios da água, mas concordam na desconfiança frente as ações do engenheiro estrangeiro que ao se instalar na casa de cimento do antigo administrador português, simboliza a persistência histórica dos espaços de poder. A própria missão do estrangeiro parece ironizar a eficácia dos muitos projetos internacionais desenvolvidos em Moçambique. O engenheiro Wasser (água em alemão) deveria construir uma ponte, mas sem um rio para que ela atravessasse acabou por conduzir seus funcionários na construção de grandes furos na terra à procura de água, para com isso justificar sua presença.
Também o casal formado por Érvio, meteorologista que passa suas horas enfadonhas a medir possíveis gotas que não caem, e Maara uma lavadeira no rio seco, tecem sua história em torno do impasse entre o rural que padece de água e a cidade onde a água corre livremente das torneiras. No meio deles se posiciona Laago, um sujeito que emigrou para o país vizinho e voltou com ideias importadas a despeito de Praado, um pastor cismado que segue à procura de água para seguir pastoreando seus animais. A água dá liga a trama e mesmo a escolha dos pequenos carreiros (picadas), tortos ou retos, longos ou curtos, que levam ao rio são representados como caminhos que conduzem aos sonhos, transbordam sentimentos como raiva, inveja, irritação, ou indicam situações cotidianas como a pressa, formando uma geografia rural das subjetividades em torno da água.
Além de nomear personagens como Ryo, Laama, Laago, Maara, Wasser, a água é também um personagem, aliás a protagonista maior, cuja força vai ganhando fôlego no decorrer dos 144 capítulos. Das iniciais poças que sobraram do rio seco, a água passa a ser congelada e transformada em pedra para o whisky do alemão, fervida para fazer chá e enganar a fome dos camponeses, doada pelo secretário do partido em seu jogo político ou ainda transformada em uma hidra destruidora e questionadora, que:
Chega de rompante com fome de tudo, alisando os argumentos que existiam nesse espaço, lavando as palavras de ordem e a lógica que nos diziam única e verdadeira, ou de qualquer forma irrevogável, afogando as orientações da mesma maneira fazendo mergulhar os tais legítimos empenhamentos e as ditas mentiras, nobrezas e artimanhas dos que se pensam donos da história (p.334)
A água, cuja falta assola constantemente Moçambique (a despeito do país possuir a quarta maior hidrelétrica da África-Cahora Bassa) e cujo excesso provoca desastrosas cheias é um elemento central da vida dos moçambicanos e já foi tema de pesquisa de JPBC8 . A novela, assim como a vida real, oscila entre os desiquilíbrios causados pelas secas e cheias, pela água que “alisa”, “lava” e “afoga” em um meio rural cada vez mais circundado pelos barulhos da dita modernidade como o críí críí do celular de Maara e o vrrrrrr, vrrrrrrr dos muitos caminhões e máquinas que o autor faz questão de representar.
Como afirmou o crítico literário moçambicano Francisco Noa (2015) as literaturas africanas têm a singularidade de produzir um indissolúvel diálogo com o meio em que emergem e Água parece ser um exemplo nesse sentido. Contribui para essa ligação, as marcantes transformações pelos quais passaram (e vem passando) os países africanos em menos de um século. No caso de Moçambique, que vivenciou a colonialismo (fins do século XIX-1975), o socialismo pós-independência (1975-1986), a guerra civil (1976- 1992), além de um atual e brutal neoliberalismo, a literatura apresenta-se, também, como um espaço em que as relações de poder são situadas, sobretudo na subversão das ordens discursivas dominantes. Portanto, tais literaturas acabaram por fazer da escrita não somente um ato cultural, mas também político.
Finalmente, através do curso da água, esse elemento que “não tem forma fixa, tem a forma que os objetos que abraça lhe quiserem dar” (p.23) JPBC representa as transformações, mas também indica as permanências já que “o correr do rio é uma memória” (p.241). Ou seja, a leitura de Água é uma forma de se aproximar das atuais contradições da sociedade moçambicana, sem o “peso” de um texto acadêmico, mas produzido por um notável acadêmico que afirma encarar tanto a história como a literatura enquanto “narrativas de intuição” 9
Notas
1 JPBC também participou do projeto “Tete – a luta armada pela independência”, do Arquivo Histórico de Moçambique (1983-1985), publicando dois livros e dois artigos e do projeto Estudo da Dinâmica de Reassentamento de Deslocados de Guerra na zona de Zumbo/Bawa (Tete),
2 GALLO, Fernanda. A pesquisa em Tete como ponte entre os ofícios de historiador e escritor. Revista Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 10, Número 18, p.123-137, jan.-jun. 2018.
3 SANTOS, Ana Patrícia Peixinho Vicente. Entrevista a João Paulo Borges Coelho Navegações, v. 4, n. 1, p. 107-109, jan./jun. 2011
4 Em 2007, a mineradora Vale assinou o contrato que lhe concedeu 24.000 hectares, por um período de 25 anos (renováveis por mais 25), de onde serão extraídos cerca de 22 milhões de toneladas de carvão por ano no então denominado Projeto de Carvão Moatize (PCN). Em 2009, a empresa deslocou 1250 famílias que habitavam em cima das jazidas de carvão.
5 Ver: THOMAZ, Omar. “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista. Revista de antropologia, v..51, USP, 2008.
6 COELHO, João Paulo Borges. Abrir a fábula: Questões da política do passado em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106, 2015
7 MBEMBE, Achille. África Insubmissa. Cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Coleção Reler África. Edições Pedago, Portugal, 2013.
8 Ver: COELHO, João Paulo Borges. Estado, Comunidades e Calamidades Naturais no Moçambique Rural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Semear outras soluções: Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004.
9 CHAVES, Rita. Entrevista com João Paulo Borges Coelho. Via Atlântica, nº 16, dez/2009.
Referências
BRUGIONI, Elena. Narrando o índico: contrapontos entre paradigmas críticos e representações: João Paulo Borges Coelho e M.G. Vassanji. Revista Lusófona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies. Vol. 2, n.1, 2014, pp. 35-53.
CHAVES, Rita. Entrevista com João Paulo Borges Coelho. Via Atlântica, nº 16, dez/2009.
COELHO, João Paulo Borges. Protected Villages and Communal Villages in the Mozambican Province of Tete (1968-1982): A History of State Resettlement Policies, Development and War. Tese de PhD, Universidade de Bradford. Departamento de Estudos Económicos e Sociais, 1993.
___________________________Estado, Comunidades e Calamidades Naturais no Moçambique Rural. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Semear outras soluções: Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004
____________________________Campos de Trânsito. Lisboa: Editora Caminho, 2007.
___________________________ Crónica da rua 513.2. Lisboa: Caminho, 2006
___________________________Rainhas da Noite. Lisboa: Editora, 2014.
___________________________ Abrir a fábula: Questões da política do passado em Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106, 2015
GALLO, Fernanda. A pesquisa em Tete como ponte entre os ofícios de historiador e escritor. Revista Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 10, Número 18, p.123-137, jan.-jun. 2018
MBEMBE, Achille. África Insubmissa. Cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Coleção Reler África. Edições Pedago, Portugal, 2013.
NOA, Francisco. Perto do Fragmento, a totalidade: Olhares sobre a literatura e o mundo. São Paulo: Kapulana, 2015
SANTOS, Ana Patrícia Peixinho Vicente. Entrevista a João Paulo Borges Coelho Navegações, v. 4, n. 1, p. 107- 109, jan./jun. 2011
THOMAZ, Omar. “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista. Revista de antropologia, v..51, USP, 2008.
Resenhista
Fernanda Bianca Gonçalves Gallo – Doutora em Antropologia Social – UNICAMP. E-mail: fedoca_gallo@hotmail.com
Referências desta Resenha
COELHO, João Paulo Borges. Água: uma novela rural. Lisboa: Caminho, 2016. Resenha de: GALLO, Fernanda Bianca Gonçalves. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.01, n.01, p. 178 – 181, out.2018/março.2019. Acessar publicação original [DR]