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Afropessimismo | Frank B. Wilderson III

Entre os aspectos extraordinários do livro Afropessimismo – e são muitos – está o modo particular como o texto, desobedecendo fronteiras genéricas e disciplinares, combina memorialismo, teoria, filosofia, poesia e análise cinematográfica. Conhecido por suas contribuições ao pensamento crítico negro nas obras Incognegro: A Memoir of Exile and Apartheid (2008) e Red, White & Black: Cinema and the Structure of US Antagonisms (2010), ao longo da última década, o autor, Frank B. Wilderson III, professor de Estudos Afro-Americanos na Universidade da California em Irvine, já vinha elaborando, em diálogo com pensadores negros estadunidenses como Jared Sexton, Saidiya Hartman, David Marriott, Patrice Douglass e Zakkiyah Imam Jackson, hipóteses críticas relacionadas ao termo “Afropessimismo”. Reunindo algumas dessas intuições, esse volume, publicado em inglês em 2020, no ano seguinte em português em cuidadosa tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas,1 deu nova forma e maior ambição às propostas teóricas, que aqui vão sendo apresentadas, capítulo a capítulo, em meio a reflexões sobre episódios variados de sua vida, incluindo a infância num bairro quase exclusivamente branco da cidade de Minneapolis, a relação conturbada com os pais durante essa etapa de formação, o período de cinco anos de atuação política na África do Sul, no final do regime do apartheid, quando, além de dar aulas, foi eleito para o Congresso Nacional Africano e participou de atividades clandestinas de resistência ao regime, e as crises de diferentes tipos vividas como estudante de pós-graduação em retórica e cinema na Universidade da California em Berkeley na virada do século.

Ainda que seja possível traçar um resumo cronológico como esse, o problema formal que atravessa o texto é justamente a dificuldade de elaborar uma narrativa que reconstrua a sequência de acontecimentos: primeiro isso, depois aquilo e, como resultado desses episódios, agora estou aqui. As primeiras páginas do livro descrevem um colapso psíquico vivido por Wilderson em Berkeley em 2000, sem que exista qualquer excepcionalidade que o explique: “você sabe que não pode chamar aquilo de loucura, porque a loucura presume uma mudança de clima, uma temporada de sanidade” – e isso não é possível dizer que houvera, antes da crise (p. 11). Nos capítulos do livro, essa dificuldade narrativa será associada, num movimento recorrente de ampliação do escopo, à história da escravidão, em particular à figura do Escravo (grafado em maiúscula, sinalizando que se trata de uma ideia ou fantasmagoria): só pode enlouquecer quem um dia soube o que era estar são, e o “tempo da sanidade não é uma temporalidade que o [Escravo] tenha conhecido um dia” (p. 351). No capítulo intitulado “O problema com os humanos”, num dos muitos trechos que ecoam Orlando Patterson e seu conceito de morte social, a dificuldade é colocada em outros termos:

Enquanto a relação humana com a violência é sempre contingente, disparada por suas transgressões contra as proibições regulatórias da ordem simbólica ou por mudanças macroeconômicas em seu contexto social, a relação do Escravo [the Slave´s relationship] com a violência não tem data para acabar, é gratuita, não tem razão nem limitador, é disparada por catalisadores pré-lógicos que não dependem de suas transgressões e não responde a mudanças históricas. Em resumo, a violência infligida ao povo negro não é resultado de transgressões simbólicas (p. 246, tradução modificada).

Apesar desses obstáculos, existe uma extensa tradição de relatos autobiográficos de intelectuais negros norte-americanos – tanto Frederick Douglass quanto W. E. B. Du Bois escreveriam não uma, mas três autobiografias –, como há também nos Estados Unidos um rico arquivo de narrativas escritas por ex-escravizados e ex-escravizadas. Muitos desses textos são comentados por Wilderson no livro, que alude ainda à importância decisiva da escrita híbrida de Frantz Fanon, disparadora de tantas obras posteriores. Contudo, em entrevista após a publicação deste Afropessimismo, Wilderson dirá que seu esforço por convencer a editora W. W. Norton a publicar seu livro foi auxiliado pela existência prévia do livro Argonautas, de Maggie Nelson, ao qual pôde se referir na negociação para indicar que o gênero de “autoteoria” já existia – e já havia sido praticado, complementa dando risada, por uma mulher branca, o que dava legitimidade e familiaridade ao seu projeto.2 Antes de entrar nos argumentos principais do livro, pode ser instrutivo permanecer por alguns momentos nesse riso bem- -humorado do autor, que entrecorta com frequência suas entrevistas sobre o livro. “Está bem, eu respondo, mas você estará presente no meu julgamento por sedição?”, brinca ao ser indagado sobre o que o teria motivado a escrever o livro.3 A outra entrevistadora, desta vez uma mulher negra (Jocelyn Burrell), reage à mesma interrogação com a indagação “E hoje, conversando aqui, só entre nós, você quer respostas honestas, não é? Não respostas da minha agência de relações públicas?”4 Burrell, entendendo o que estava em jogo, responde que ele está em boas mãos, mantendo em destaque a cena de interlocução ressaltada por Wilderson. Nesse caso como no livro, a aposta de Wilderson parece ser que, em determinadas circunstâncias, para certo público, falar abertamente sobre questões difíceis relacionadas ao sofrimento gerado pela antinegritude pode trazer alívio e distensão, se essa fala não tiver que diminuir a ira e a indignação provocadas pela experiência de viver sob o signo da violência. Algo é desbloqueado com a enunciação pública da raiva, algo que o riso sinaliza e, a depender do ouvinte, poderá também amenizar.

As perguntas devolvidas às entrevistadoras nesses exemplos também chamam a atenção para a preocupação constante, presente no livro de diferentes maneiras, com as condições de possibilidade de suas propostas teórico-políticas. A consideração, em público, de formas radicais de transformação social, depende da existência de um público concreto disposto a pelo menos escutar a especulação. Wilderson apontará várias vezes que sua reflexão surge de uma abertura criada pelo movimento Black Lives Matter, que definira como foco de sua atuação a denúncia da relação persistente entre antinegritude e morte. Ainda que as demandas feitas pelo movimento não sejam idênticas às encontradas na especulação teórica do livro, esta não existiria sem aquela, sustenta Wilderson. Assim, embora textos afropessimistas se mostrem céticos em relação a teorias tradicionais de emancipação e desconfiem de macrorrelatos de progresso social (daí uma das fontes do pessimismo), e embora sejam comuns no livro de Wilderson as referências à necessidade de acabar com o mundo, sendo indissociáveis e interdependentes mundo e antinegritude, o autor insiste que não tem qualquer interesse especial em simplesmente criticar os movimentos sociais, inclusive os reformistas, pois neles ocorrem cálculos de outra ordem, cálculos que são sempre difíceis de avaliar e equacionar, como quando se trata, por exemplo, de organizar uma mobilização pelo direito à moradia.

Por outro lado, e até para ser coerente com o reconhecimento da especificidade de seu lugar de enunciação como professor, teórico e escritor, Wilderson se recusa a aceitar como limite para o pensamento aquilo que se apresenta como senso comum, exigindo de antemão a renúncia da ousadia imaginativa e definindo como ponto de partida aquilo que poderia ser o ponto final de um exercício de análise e negociação, inclusive após considerações de ordem prática e política. Recusando a naturalização da conciliação, da moderação e do gradualismo, sobretudo no caso da especulação filosófica, reivindica que a alusão à práxis e à concretude da política nas ruas não deve servir para circunscrever a ousadia do pensamento e interromper gestos críticos arriscados antes mesmo que eles terminem de ser elaborados.

Nesse sentido, por mais que a referência ao “pessimismo” seja incontornável, estando presente já no nome que identifica a teoria, aquilo que o Afropessimismo busca pensar é extraordinariamente ambicioso, uma interrogação crítica que só se tornou possível após um esforço de imaginação coletiva, envolvendo um grupo de pensadoras e pensadores em diálogo com diferentes vertentes do pensamento crítico negro e com o ativismo político. Em comum, entre essas correntes, havia o desafio de pensar um mundo sem a antinegritude, um mundo que não dependesse do racismo como elemento estruturante. Ao exigir nada menos que uma mudança de paradigma, o Afropessimismo define como insuficientemente exigentes, imaginativas e críticas todas as correntes que se abstém de colocar para si, como tarefa essencial, o fim da antinegritude (estão incluídos aí humanismo, marxismo, feminismo…). Pois a sugestão não é, afinal, que o racismo é uma realidade sublime, uma essência inamovível que atravessa todos os tempos. A ideia é que ele é o fundamento de um paradigma histórico que não se sustenta sem ele. Nesse sentido, Afropessimismo não é o contrário de otimismo, nem seriam excludentes Afropessimismo e Afrofuturismo.5 Outro gênero que poderia ser acrescentado aos já mencionados para descrever a estrutura do livro é o do relato de uma conversão, a que ocorre com a descoberta do Afropessimismo, essa lente cuja diferença o livro tratará de delinear. Num dos episódios referidos, uma conversa com um amigo palestino revela que para ele não havia humilhação mais profunda do que ser revistado por um soldado israelense que fosse um judeu etíope. Segundo Wilderson, nesse instante a terra cede, como se naquele momento se abrisse um abismo sob seus pés:

Eu me vi diante da descoberta de que, no inconsciente coletivo, os insurgentes palestinos têm mais em comum com o Estado e com a sociedade civil israelenses do que com os negros. O que eles compartilham é um consenso, em grande medida subconsciente, de que a negritude é um locus de abjeção (p. 21).

Antes disso, antes de ter se tornado afropessimista, Wilderson acreditara que seu sofrimento era análogo ao dos palestinos.

Se antes Wilderson se via como “um humano degradado”, conclui depois que na verdade

era a contraparte da Humanidade. A Humanidade olhava para mim quando estava insegura de si. Eu permitia que a Humanidade dissesse, com um suspiro de alívio existencial: “Pelo menos não somos ele” (p. 22).

Por isso, por ocupar esse lugar dentro e fora da humanidade, como necessária, por contraste, para a existência da humanidade, a negritude se torna, mais do que uma aporia, uma meta-aporia, e o Afropessimismo elabora uma metateoria que “interroga a lógica tácita e presumida do marxismo, do pós-colonialismo, da psicanálise e do feminismo”, e o faz “num nível mais alto de abstração” (pp. 23-24).

A recusa da analogia entre o racismo antinegro e outras formas de opressão – a misoginia, a exploração do trabalho, a heteronormatividade, o racismo contra não negros, a discriminação de imigrantes – é apontada em várias leituras do livro Afropessimismo como sua parte mais desoladora. A distinção parece importante, no entanto, por permitir destacar o custo das comparações, alianças sociais e coalizões políticas, como a diluição das demandas específicas dos movimentos sociais negros e a dificuldade de abordar a dimensão do horror da violência antinegra. Em movimento contrário, Wilderson procurará estudar as diferenças entre as gramáticas dos sofrimentos de diferentes grupos oprimidos e as particularidades das retóricas utilizadas para justificar cada forma de violência. Não são idênticas, sugere o autor, as ansiedades fóbicas da antinegritude e as do antissemitismo, da LGBTfobia, da misoginia e do colonialismo, e essas diferenças são importantes política e epistemologicamente. Na relação colonial, por exemplo, é relevante que a motivação do conflito seja a disputa por um território, o que permite que se imagine a superação desse estado de coisas, numa inversão em que os colonizados não deixariam de ser fundamentalmente aquilo que já eram (palestinos, indianos, vietnamitas etc.). Não é o caso da escravidão, cujo fim precisa ser a destruição da categoria do Escravo. Nesse sentido, a escravidão é um passado traumático que não tem como ser ressignificado; é uma dinâmica sem relação que não tem como levar à síntese entre escravizado/a e escravizador/a. Seria obsceno argumentar que algo do polo do escravizador deveria ser preservado numa superação (dialética) da escravidão.

Já no caso específico da oposição entre trabalhador e capitalista, a humanidade do primeiro não é negada durante o confronto. Já com a escravização o que se perde não é a posse da mais-valia, algo que uma transformação da sociedade poderia recuperar, mas uma ontologia, ou seja, a própria possibilidade de ser. Assim, enquanto o proletário se pergunta a cada dia quanto terá que produzir, preocupado com questões relacionadas à exploração de seu trabalho, “o escravizado acorda de manhã pensando, O que estes humanos vão fazer com a minha carne?” (p. 340). É, escreve Wilderson, “uma dinâmica de ansiedade [a hydraulics of anxiety] muito diferente da exploração e da alienação”, levando a uma forma de terror mais profunda do que aquela vivida pelo proletariado (p. 340).

O questionamento da analogização será crucial também para o passo seguinte, que é a elaboração da hipótese de que o conflito fundamental da modernidade não é a diferença sexual ou o confronto entre as classes, em críticas diretas ao feminismo e ao marxismo, mas a tensão entre o Humano e o Escravo. É essa oposição que sustenta a palavra Humano, de modo que a humanidade só se torna legível por meio da distinção irreconciliável entre ela e a negritude. Mais do que entrar numa “Olimpíada de opressões”, expressão sarcástica que costuma aparecer nesses debates e que é comentada por Wilderson, interessa entender a diferença que faz pensar uma ou outra situação como exemplar, e, portanto, como o paradigma a ser utilizado para a análise da sociedade toda. (Num segundo momento, seria importante refletir sobre a ausência da escravidão como questão fundamental para boa parte do pensamento crítico europeu, esse arquivo que é a base de algumas de nossas tradições disciplinares.)

Há consequências em cascata para essas operações mentais que o livro realiza. Elas significam, por exemplo, que já não é possível dizer algo como “Um dia todos seremos considerados humanos, sem distinção de raça, gênero, classe ou sexualidade”; nem é plausível postular como horizonte, reformista ou revolucionário, o Humano, uma vez que nessa ideia já está presente, como contraponto, o Escravo. A metateoria, aquilo que a teoria afropessimista diz a respeito do todo – em suma, que o mundo depende da violência racista –, leva necessariamente à interrogação do discurso do melhoramento progressivo, que encara como dispensável e acidental e, portanto, como sacrificável, um aspecto da sociedade que é na verdade essencial e indispensável (a antinegritude). Essa esperança é ilusória, pois se livrar da morte social não significaria que do outro lado haveria uma existência humana plena. Significa, para Wilderson, algo mais catastrófico, mas também potencialmente mais renovador: que não haverá existência humana, porque já não haverá humanos. (E, com tudo o que já foi dito, resta claro que esse fim do humano não seria algo a ser lamentado.) Em outras palavras, recuperando uma construção sintática que demonstra tanto a assombrosa capacidade de síntese de Wilderson quanto sua ousadia intelectual, no imaginário da antinegritude, o contrário de negro não é branco, mas humano (p. 272).6 Conclui-se, com isso, que, enquanto a destruição de outras formas de opressão levaria à destruição de partes do mundo, o fim da antinegritude seria a destruição de todo o mundo.

Na análise de Wilderson, outro elemento necessário para entender a antinegritude é seu pertencimento à esfera do desejo e do prazer. Recuperando mais uma vez Orlando Patterson, além da obra do historiador David Eltis, o livro descreve uma “economia libidinal” na qual não existem formas de violência que sejam consideradas cruéis demais e não há explicações que dariam “sentido político ou econômico à violência que posiciona e pune a negritude” (p. 246). Não é que a violência e o racismo não possam trazer benesses (ganho financeiro etc.), mas que violência e racismo continuam mesmo quando já não interessam economicamente. A hipótese nesse caso é que a economia política, entendida como um conjunto de interesses materiais, não explica o que é próprio da violência antinegro, que, além de uma tecnologia de controle construída para garantir a supremacia política e econômica dos brancos, é também uma fantasia. A violência não se esgota em algum objetivo específico, como se fosse apenas um meio para atingir uma meta; o gozo está na própria violência. (Aqui é mais difícil, a meu ver, sustentar que se trata de algo inteiramente distinto das violências da misoginia e da heteronormatividade, que também não conhecem limites e também se baseiam numa fantasia fóbica.)

Retomando o fio de sua leitura crítica do marxismo, Wilderson insistirá que a antinegritude revela as limitações de uma análise focada exclusivamente na economia, na qual a escravidão seria um capítulo na história do capitalismo.

O que os marxistas fazem com a escravidão é tentar mostrar como a violência está conectada à produção, e isso significa que eles não pensam de fato na violência da escravidão de forma abrangente. A violência da morte social (escravidão) é, na verdade, subtendida à produção da saúde psíquica de todos aqueles que não são escravos, algo que não pode ser literalmente mercantilizado ou ponderado em uma balança real (p. 254).

O caráter excessivo da violência antinegra irá abalar até a lógica causal da narração, interditando a possibilidade de explicar a violência como consequência de uma ação prévia, resposta a um ato (tirar um pente do bolso, falar alto demais, ficar em silêncio: qualquer coisa pode disparar a violência).

Como se pode notar, boa parte das inquietações de Wilderson poderia ser pensada em diálogo com alguns dos principais debates dentro da tradição do pensamento crítico negro, não só nos Estados Unidos, mas também no Caribe e no Brasil. E entre estudiosos brasileiros já se veem avaliações das propostas do Afropessimismo, como em intervenções recentes de Osmundo Pinho, Denise Ferreira da Silva, João Costa Vargas, Jaime Alves, Alan Kardec Pereira, Kênia Freitas, José Messias e Jota Mombaça. Eu chamaria a atenção, em particular, para o livro Cativeiro: Antinegritude e ancestralidade, no qual, em diálogo com a bibliografia afropessimista, Osmundo Pinho, concentrando-se na figura do ancestral e no espaço e conceito de quilombo, argumenta que existem outras formas de negação da escravidão que não envolvem uma projeção ao futuro.7 No quilombo, afinal, o fim do mundo da escravidão já aconteceu.

Além disso, é comum encontrar, em resposta a textos ligados ao Afropessimismo, quatro objeções principais: 1. a alegação de que não dão ênfase suficiente aos modos de resistência e resiliência demonstrados por aqueles que combateram e sobreviveram à escravidão; 2. a crítica à falta de atenção ao período pré-escravidão, em particular à história africana; 3. a centralidade da experiência norte-americana nas descrições da negritude e da antinegritude, tratando-as como normativas e desconsiderando diferenças importantes entre as histórias de povos da diáspora africana; 4. a denúncia da ausência de uma proposta política concreta. Quanto a esse último ponto, em debates, em textos críticos e em discussões em sala de aula sobre o Afropessimismo, é comum que apareça alguma versão da pergunta: Mas o que você quer?

Como se viu, uma das respostas é: pensar a escravidão em outro nível de abstração, elevando a antinegritude ao lugar de paradigma. É a plantation, e não a fábrica, o cenário que deve ser visto como paradigmático para a compreensão da modernidade. Além disso, demanda-se um tempo maior para o reconhecimento da dor e do sofrimento daqueles tocados pelas histórias da escravidão, em vez da passagem imediata para a afirmação e a resolução. E, finalmente, diante da insistência – mas, afinal, qual é a sua proposta? –, Wilderson responde que, se querem uma proposta, resumida em poucas palavras, seria esta: o que queremos é o fim do mundo; o que é preciso é acabar com o mundo tal como ele existe. Assim, Wilderson poderá responder a uma pergunta sobre a brutalidade policial contra pessoas negras dizendo que não deseja a diminuição da violência policial; deseja o fim da polícia. Ou, contrapondo-se a Henry Louis Gates Jr., que dissera que o erro dos revolucionários haitianos havia sido terem queimado as plantações da ilha, afirmará que, se os haitianos cometeram algum erro, foi não terem dado um salto à Florida, para começarem a queimar também as plantations da América do Norte. Nesses momentos, é comum que surja como réplica a observação de que aí seria ir longe demais. Entretanto, se for assim, o problema não está no Afropessimismo, mas no desejo de conservar o mundo como ele é, e nesse caso quem teria algo a explicar seria quem não deseja criar outro mundo – um mundo que não dependa do racismo e não esteja fundamentado na antinegritude.


Notas

1 É possível conjeturar que a publicação do livro em português apenas um ano após seu lançamento em inglês, juntando-se a outras traduções recentes de obras importantes (de W. E. B. Du Bois, Octavia Butler, Saidiya Hartman etc.) antes indisponíveis no Brasil, se deve em parte a mudanças nos cursos e na composição das universidades públicas brasileiras na última década, realçando a importância da continuidade desse processo de transformação.

2 Frank B. Wilderson III, “To Address Black Suffering is to Destroy the World”, entrevistado por Siddhant Issar e James Padilioni, Always Already Podcast, episódio 28, maio 2020.

3 Frank B. Wilderson III, “Afropessimism”, entrevistado por Susan Liebell, New Books Network, 3 de jun. de 2020.

4 Frank B. Wilderson III, “Frank Wilderson on Afropessimism”, entrevistado por Jocelyn Burrell, UCI Illuminations, 8 fev. 2021.

5 Movimento estético que imagina, através da ficção científica, da música, do cinema etc., a sobrevivência de povos e culturas da diáspora africana no futuro e rejeita a associação entre negritude e arcaísmo e sua projeção ao passado.

6 Cf. também Wilderson, “To Address Black Suffering is to Destroy the World”.

7 Osmundo Pinho, Cativeiro: Antinegritude e ancestralidade, Salvador: Ed. Segundo Selo, 2021. 


Resenhista

Marcos Natali – Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0003-4609-5431


Referências desta Resenha

WILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 2021. Resenha de: NATALI, Marcos. O afropessimismo e a antinegritude do mundo. Afro-Ásia, 66, p. 729-739, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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