Flores é professor Titular do Departamento de História da UFPB, pesquisador na área de História Moderna e Contemporânea e atua nas áreas de Cultura Histórica, Ensino de História, História da África, Educação das Relações Étnico-raciais, Direitos Humanos e Saberes Históricos.
O livro está organizado em quatro capítulos: o primeiro deles intitula-se “Sair da história: direitos humanos, tempo presente”; o capítulo 2, “Mergulhar na história: viradas, ventanias”. No capítulo 3 o autor reflete sobre o “Fazer-se professor (e historiador) de História da África – Licenciaturas”; e no quarto capítulo apresenta a “A tal tese e outras tensões (ou doutoristicamente falando?)”. Aos capítulos apresentados seguem-se as “Considerações Finais: à guisa do Posfácio” e a sua produção intelectual bibliográfica.
Flores apresenta uma narrativa quase nativista, ainda que o mesmo se defina como um Internacional; talvez aqui resida uma bela metáfora referendada na citação do seu Colorado gaúcho. Nativista de dupla face, sulista e nordestino, assim se refere ao longo do livro-memorial ou na “escrita de si”, como ele próprio afirma na obra ora resenhada.
Flores traça uma trajetória intelectual que se confunde com a sua própria vida – ou com a do seu fazer de classe – assim como fez E. P. Thompson em seu “fazer-se” quando pesquisou a classe operária inglesa, tomando ele próprio parte, como trabalhador ferroviário, do “chão da fábrica”.
Em sua trajetória em Direito e Direitos Humanos, Flores bebe nas fontes de Boaventura de Souza Santos e Norberto Bobbio, passando pela “invenção dos direitos humanos”, que guarda em seu bojo os resquícios de uma certa historicidade, dado que os três grandes direitos humanos são, na verdade, acontecimentos históricos que mudaram as sociedades das suas épocas, sendo eles: a Revolução Francesa, a Revolução Estadunidense e o mundo pós-Segunda Guerra Mundial, surgindo daí a Declaração de Independência dos Treze Estados Unidos da América (1776), a Declaração do Homem e do Cidadão (1798) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Como afirma o autor de Afro-Clio, “declarações são larvas de fogo descendo montanha” (FLORES, 2019, p. 51).
Elio Flores trava uma discussão acerca do conceito de território, colocando-o na ordem da cidadania e realocando sua dimensão para refletir no seu fazer didático e teórico. Para o autor, territórios são também lugares onde “mulheres e homens pobres das periferias do capitalismo global” constroem os seus direitos (FLORES, 2019, p. 57) – dialogando com Milton Santos na sua visão humanista de território humanizado, dos direitos humanos, quando afirma que “o território é o chão mais a população” (SANTOS, 2007). Flores também se ampara no geógrafo Haesbaert (2002; 2012).
Em sua trajetória de professor e pesquisador Elio Chaves Flores se reinventa como geógrafo para compreender os espaços, lugares e territórios, especialmente a geografia dos quilombos. Em Rafael Sanzio dos Anjos (2006), busca aporte teórico e metodológico para cumprir a sua empreitada; aprende e ensina que quilombos não são coisas do passado, mas do presente, além de extrair daí o conceito de “territórios étnicos”.
É no item sobre as teorias feministas que vamos encontrar o ponto alto do livro ora resenhado. Nele, Flores nos brinda com as duas autoras de maior envergadura, estudiosas da temática e militantes da causa: Donna Haraway e Judith Butler; a primeira com a sua noção de “ciborgue”, que destrói quase todos os nossos mitos, fantasias, apegos e concepções de verdade secularmente construídas e inventados por um tipo de sociedade patriarcal, eurocêntrica e cristã. Donna Haraway lança um balde d’água bem gelado nas pretensões do saber positivista enraizado como verdade estabelecida acerca da noção ou invenção do gênero. Haraway (1991) propõe, e Flores concorda com ela, a tese do “pós-gênero”, em seu “Manifesto ciborgue”.
Afirma Elio Flores (2019, p. 78), citando Eco (s/d): “Que texto formidável, pós-tudo! Que fardo impressionante, pós-humano! Imaginei-me saindo de vez da história e entrando nos ‘bosques da ficção’”. O único problema é que, na atual conjuntura política, social e religiosa de extrema direita no poder, Haraway não poderia visitar o Brasil, pois correria o risco de ser queimada na fogueira, em praça pública, pelos reacionários obscurantistas-terraplanistas que usurparam o poder desde o golpe de 2016. Flores (2019, p. 68) trava ainda um diálogo com Joan Scott, pioneira nos estudos de gênero e história, comentando que, com sua leitura, conseguiu superar o denomina seu “marxismo positivista”.
O feminismo ganha ainda contorno de cor; Flores esmiúça essa categoria e a hierarquiza ao debater o feminismo negro como classe e raça. A estadunidense Angela Davis e a brasileira Lélia Gonzalez dão suas contribuições aos estudos e ao ensino de Elio Flores. Na antropologia de Gonzalez, a discussão é sobre os “intérpretes do Brasil” – Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre – e suas visões pouco animadoras acerca das mulheres negras e o seu papel na construção da sociedade brasileira, revelando um tipo de “domesticação da mulher negra” ou de sua visão como mero objeto sexual. Para Flores (2019, p. 98), “Lélia opera um desmascaramento linguístico de uma corrente importante da historiografia brasileira”.
Nessa tessitura da escrita da história, ou da própria história, Elio Chaves Flores narra sua trajetória dentro da ciência histórica e suas experiências, como a criação do Núcleo de Documentação Histórica Regional – NDIHR – em 1976, o curso de Pós-Graduação Latu-Sensu em nível de Especialização, o Mestrado em História em 2004. Amparado pelos três “Michéis” –Foucault, Certeau e Pêcheaux –, Flores parte munido linguisticamente da análise do discurso historiográfico para a docência na pós-graduação stricto-sensu, sempre acompanhado de Marc Bloch e Lucien Febvre e das lições annalistes desses historiadores.
Nos cursos de licenciatura em Ciências Sociais e Humanas, na Universidade Federal da Paraíba (1994-2020), Flores “faz-se professor”. Para tanto, redefine e readequa algumas “disciplinas” do curso de História que, por sua organização patriarcal, eram quatripartite – História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea –, surgindo o problema imediato que é o do apagamento, esquecimento e omissão das outras histórias, dos outros povos e outras temporalidades. Nessa estrutura tradicional do curso de História, simplesmente a História da África não existia, nem a dos povos asiáticos, do Caribe e tantas outras histórias; o que se estuda é a história da Europa. Diante dessa problemática, Flores propõe outros saberes e visões, no sentido de fazer um curso de História humanista e pluralista. Era preciso “africanizar um currículo eurocentrado” (FLORES, 2019, p. 142), saber e ensinar que no Caribe e no Haiti houve uma Revolução negra.
Após essa empreitada teórica e metodológica, Flores se tornou professor de História da África em 2002, ofertando a disciplina de História da África Contemporânea como optativa. No ano seguinte, a disciplina passou a ser obrigatória, sofrendo profundos impactos positivos com uma série de leis e decretos em prol da inclusão dos estudos e da população afrodescendente nas universidades brasileiras. A inclusão dos estudos da cultura e da história da África na educação básica, por meio da Lei 10.639/03, decretada durante o governo Lula, se torna obrigatória um ano após Elio Flores começar a ofertar a disciplina no curso de graduação.
Por fim, Flores fecha o livro narrando a sua trajetória de doutoramento na Universidade Federal Fluminense (UFF) com seu método de escrita regressivo à la Marc Bloch pesquisando as “representações cômicas” da história da República, ao modo de Braudel, da longa duração, indo de 1870 até 1933. A estada no Rio de Janeiro foi permeada por muitos estudos e lazeres, a boa conciliação entre a vida acadêmica e a boemia marcam o período da tese de Elio Chaves Flores, que volta da cidade maravilhosa “doutor como Brás Cubas” (FLORES, 2019, p. 205). “Vives; não quero outro flagelo” (ASSIS, 1999).
Flores assume, então, a direção estadual da ANPUH-PB (2004-2002), bem como começa a atuar no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD/UFPB) e nos cursos de formação em Direitos Humanos, ensinando e aprendendo com policiais civis e militares que, por sua formação, desconheciam/desprezavam os direitos humanos e para os quais “bandido bom é bandido morto” (FLORES, 2019, p. 210).
Finalmente, as leituras do jovem e do velho Marx começam a fazer parte, definitivamente, da vida e da formação de Elio Flores (2019, p. 216). Porém, o autor deixa claro que seu marxismo tem mais relação com a postura e o estilo de Marshall Berman (1986), quando este afirma que “tudo que é sólido desmancha no ar”. O regionalismo nordestino lhe é apresentado por um viés foucaultiano de desconstrução do mito do Nordeste seco enquanto categoria discursiva defendida por Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2001).
Afro-Clio elenca toda a produção bibliográfica de Elio Flores, num rico acervo de referências sobre história da África, direitos humanos, histórias regionais do Sul e do Nordeste, além da sua dissertação de mestrado e tese de doutorado.
Diante de tantas reminiscências e poesias, só faltou a Flores, em sua narrativa – ou Memorial, ao estilo de Aires, de Esaú e Jacó – embalar uma canção do cancioneiro sulista na voz de Sá e Guarabira, de forma quase terapêutica, com toda leveza, tratando da vida, quase “à beira da falésia”, em sua “produção do eu” ou na busca “do que é um autor”, sem se preocupar “se tal advérbio vai com tal adjetivo”, dizer “que saudade da Redenção, do Fogaça e do Falcão, cobertor de orelha pro frio e a galera no Beiro-Rio”.
“Se tal advérbio vai com tal adjetivo; creio que vai, ao menos para mim”.
Referências
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife; São Paulo: Editora Massangana/FJN; Cortez Editora, 2001.
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Cartografia e Quilombos: territórios étnicos africanos no Brasil. Africana Studia, n. 9, Centro de Estados Africanos da Universidade do Porto – CEAUP, p. 337-355, 2006.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das letras, 1986.
FLORES, Elio Chaves. Afro-Clio: direitos humanos, história da África e outras artesanias. João Pessoa: Editora do CCTA, 2019.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Lisboa: Editora Veja, 2009.
HAESBAERT, Rogério. Hibridismo cultural, “antropofagia” identitária e transterritorialidade. In: BARTHE-DELOIZE, Francine; SERPA, Angelo (Orgs.). Visões do Brasil: estudos culturais em geografia. Salvador: Edufba e Edições L’Harmattan, 2012, p. 27-46.
HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. Campinas: Contexto; Niterói: Eduff, 2002.
SANTOS, Milton. O país distorcido (organização, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro). São Paulo: Publifolha, 2002.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Resenhista
Eduardo Martins – Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2001). Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2003). Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, Assis (2008). Pós-doutorado pela UFGD (2018). Professor efetivo na UFMS (Adjunto 3 – 2020) – Campus de Nova Andradina/MS. E-mail: e.martins@ufms.br https://orcid.org/0000-0001-5345-1188
Referências desta Resenha
FLORES, Elio Chaves. Afro-Clio: direitos humanos, história da África e outras artesanias. João Pessoa: Editora do CCTA, 2019. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Afro-Clio: história da África e outras visões. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa v. 26, n. 44, p. 488-492, jan./jun. 2021.
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