Africanidades e Amazônia | Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará | 2020
[…] Contínuas a ser a mesma virgem de Loanda, Cantando e sapateando no batuque, correndo o frasco na macumba, quando chega o Ogum, no seu cavalo de vento, varando pelos quilombos
Quanto Sinhô e Sinhá-Moça Chupou teu sangue, Mãe Preta?!
Agora como ontem, és a festeira do Divino, a Maria Tereza dos quitutes com pimenta e com dendê. És, finalmente, a procreadora côr da noite, Que desde o nascimento do Brasil Te fizeste ‘Mãe de Leite’.
(BRUNO DE MENEZES 1,1956)
O Instituto Histórico e Geográfico do Pará desde a sua fundação em 1900 vem produzindo trabalhos e debates envolvendo a história e a cultura do Brasil e, de maneira mais efetiva da Amazônia, através de seus sócios. Reuniões, palestras, publicações, exposições e eventos são disponibilizados para a sociedade. Este ano, em comemoração ao mês da Consciência Negra e não podendo fugir dos debates correntes na sociedade acerca das questões relativas aos problemas raciais, lança um dossiê de trabalhos acadêmicos sobre a questão das africanidades.
Tal produção corresponde a um dos objetivos do Silogeu:
Promover o estudo, estimular o desenvolvimento e fazer a difusão dos conhecimentos […] em todos os seus ramos, em todas as suas aplicações à vida social, política e econômica em especial no que se refere ao Brasil e, particularmente, à Amazônia2.
Dentre as questões atuais na sociedade o mundo se depara, ainda, com embates relativos às questões raciais e religiosas que continuam a provocar conflitos e desencontros. É no contexto da celebração do mês da Consciência Negra, que o IHGP reúne artigos de vários sócios, acadêmicos e lideranças religiosas que produzem trabalhos com a temática da africanidade. Compartilhar tal produção permite que se reconheça a importância e a atualidade da temática no estado do Pará e sua transversalidade agregando questões como religiosidade, cultura material, arte, pesquisa, participação, dentre outros.
Na atualidade, os valores e atitudes de respeito à diversidade cultural estão sendo marcados por momentos de acomodação e tensões de diferentes ordens. Tais ações possuem sua gênese em períodos históricos da formação da sociedade brasileira que impuseram ao negro, aos indígenas e ao mestiço situações de usurpação e aviltamento. A resistência, desde então, passa a ser pautada basicamente pela organização desses grupos, inicialmente na forma de rebeliões e fugas, constituindo mocambos/quilombos e na atualidade a partir da conscientização, valorização, rememoração e reconhecimento de seus direitos, de sua cultura.
Assim, o dossiê propõe compor a Revista do IHGP com trajetórias e resultados que discutam as possibilidades de abordagem das africanidades na [e da] região Norte e Nordeste do Brasil, Em particular na Amazônia, compreendendo debates sobre as questões da presença negra na região nos seus múltiplos campos de análise cujas reflexões se voltem às práticas, aos símbolos, às artes, às abordagens e construções teóricas acerca dos sujeitos afrodescendentes, nas ciências humanas, em quaisquer tempos de sua história.
O dossiê é organizado por sócios efetivos da instituição que, direta ou indiretamente, transitam com a temática apresentada. É composto por 12 trabalhos, sendo 10 artigos, 01 relato de experiência e 01 discurso de posse. No trabalho intitulado A Semana Santa nos Terreiros: um Estudo do Sincretismo Religioso em Belém do Pará, Anaíza Vergolino e Silva recupera um debate ocorrido por ocasião das comemorações dos 100 anos da abolição da escravatura no Brasil (1988) e retoma a temática do sincretismo religioso afrocatólico. A partir dos festejos da Semana Santa, a autora trabalha a existência da importante associação sincrética entre o Orixá Oxalá e Jesus Cristo.
No artigo Nos Passos da Paixão, o Encontro de Matrizes: Catolicismo e Afrorreligiosidade na Sexta-Feira Santa de Belém/Pa, Juscelio Mauro de Mendonça Pantoja, aborda a ressignificação e participação de afro-religiosos do Tambor de Mina em rituais católicos referentes à Semana Santa, em especial, a Procissão do Senhor dos Passos, a Procissão de Nossa Senhora das Dores, o Encontro do Senhor dos Passos com Nossa Senhora das Dores e a Peregrinação com visitas as sete igrejas que ocorrem em Belém, na SextaFeira da Paixão. O trabalho evidencia como tais sujeitos rememoram e ritualizam o sacrifício, a paixão e morte de Jesus.
Fábio Oliveira de Sena aborda no artigo A Chama e as Formas Sagradas: um Estudo Sobre a Magia das Velas Afro Religiosas em Belém/Para, o uso das velas afro religiosas nos terreiros localizados em Belém, descrevendo seu potencial mágico nas religiões de matrizes africanas ressaltando o poder simbólico conferido ao formato e às cores delas. Busca compreender a multifuncionalidade do uso das velas a partir de sua função nos rituais e comercialização em lojas de vendas de produtos sagrados.
Manuel Vitor Barbosa Neto autor do artigo O Elevado Pentecostal Sobre a Encruzilhada de Exú: a Presença no Espaço Urbano de Belém, aborda a questão da apropriação e uso de espaços urbanos, neste caso o Elevado Daniel Berg, como lócus para a prática de manifestações religiosas e de ocupação de duas presenças religiosas, uma legitimada pelo Estado – Assembleia de Deus – e outra de resistência e defesa de sua memória de maneira subversiva, as religiões afro-brasileiras. Neste estudo apresenta-se um contraponto entre a prática de rituais para Exú por religiões de matriz africana a partir do Tambor de Mina, e a Igreja Assembleia de Deus, que se faz presente nomeando o espaço em homenagem ao fundador da referida igreja durante seu centenário.
O trabalho de José Maia Bezerro Neto intitulado Imagens Escravas nas Visões Senhoriais: uma Leitura dos Corpos Escravos Através dos Anúncios de Fugas (Século XIX) enfoca a produção da percepções do corpo dos escravos frente as marcas da estrutura social vigente, ressaltando as relações entre corpo e trabalho; corpo, saúde e doença; corpo e imaginário e, corpo e identidade. A partir de notícias veiculadas analisa imagens construídas sobre os escravos pelos anúncios de fugas publicados na imprensa periódica paraense do século XIX (1840-1888), enfocando as leituras dos senhores de escravos sobre os corpos dos escravos.
Os(as) cozinheiros(as) negros(as) no Pará e suas possíveis abordagens (1870-1888), trabalho de Amanda Danniely Proença Gonçalves Souza e Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo, traz um levantamento sobre cozinheiros negros do Pará e tematiza o “mundo da cozinha” entre os negros escravizados que se especializavam em diversos ambientes laborais, como casas, padarias e ruas, cuja atividade exigia-lhes aprimoramento e qualificação, que iam da cozinha às implicações morais dos vícios e bons costumes.
Aldrin Moura Figueiredo, no trabalho intitulado Cromotopia e História: Frederico José De SantaAnna Nery e o Folclore Afro-Indígena na Amazônia, 1885-1889, analisa os marcadores da cor e da raça no folclorismo da Amazônia entre a passagem do Império à República. Apresenta uma correlação entre cor e história na produção intelectual do folclorismo brasileiro no final do século XIX, com ênfase na obra de Frederico José de Santa Anna Nery (1848-1901). Conhecido como propagandista do Brasil e da Amazônia nos círculos letrados parisienses, com atividades que vão desde projetos de imigração até a escrita e divulgação da cultura popular brasileira. Foi um dos pioneiros em evidenciar a presença das três raças na formação da nação e da cultura nacional.
No trabalho intitulado Educação de Povos e Comunidades tradicionais: da Conquista do Direito à Construção da Ação Pedagógica à Diversidade Étnica e Cultural, Eliane Sousa Faria e Jéssica Feiteiro Portugal trazem a reflexão da relação entre os fundamentos teóricos, os métodos e o currículo do Curso de Licenciatura em Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará. Questionam se ao longo dos seus 10 anos de existência o Curso tem possibilitado uma nova configuração do “fazer didático-pedagógico” da Educação de povos e comunidades tradicionais da Amazônia paraense, dentre eles as comunidades quilombolas e indígenas, com as demandas sociais provenientes da prática pedagógica.
Kelly C. Tavares, com seu trabalho Africanos” em circulação: as identidades “africanas” e as fronteiras da etnicidade na Amazônia do século XIX recoloca a questão sobre as revisões historiográficas acerca da presença africana na Amazônia e busca refletir sobre essa presença seguindo uma perspectiva biográfica, tomando a experiência de um padre “negro” descendente de pretos africanos e vivendo entre a Bahia e o Pará, no século XIX. Assim levanta um conjunto de fontes que corroboram com seu intendo e demonstra que a biografia do padre “negro” Eutíquio Pereira da Rocha, suscita novas reflexões sobre as tensões de identidade étnica e racial, as fronteiras da etnicidade, e suas implicações nos projetos de cidadania e Estado-Nação nos tempos anteriores à entrada das teorias raciais no contexto e no pensamento social brasileiro. E
Uma Experiência Cruzada Pelas Águas do Pará: a Família de Turquia no Tambor de Mina, elaborado por Taissa Tavernard de Luca e Mosaniel Reis Costa, retrata a mitologia construída sobre a família de Turquia no Estado do Pará, uma das mais importantes cultuadas dentro do panteão da religião de matriz africana mais antiga de Belém: a Mina. Os autores apresentam sua organização estabelecendo uma comparação com as narrativas registradas no Maranhão, associando mitologia e história para entender a lógica de adoração dos Turcos pelas religiões afro-brasileiras no eixo norte cultural.
Sandra Regina Feiteiro, com seu relato de experiência, intitulado Literatura e representatividade Afro-brasileira – uma experiência na Escola Estadual de Ensino Médio Integral Padre Eduardo, na Ilha de Mosqueiro/Belém-Pa, apresenta o desenvolvimento de um Projeto educacional cujas reflexões sobre o ensino da Literatura Afro-brasileira na escola pública e o seu caráter intervencionista, através de oficinas e rodas de conversa, com colegas profissionais da área de conhecimento e discentes do Ensino Médio. Dentre os principais resultados destacam-se as atividades de leitura, que, através da diversidade dos gêneros textuais, adequaram-se como via de letramento e interdisciplinaridade, melhorando os usos e funções da oralidade e da escrita por parte dos alunos, provocando neles o senso crítico sobre racismo e outras questões sobre a negritude.
Por fim, na seção Discursos, Robson Wander Costa Lopes, apresenta seu discurso de elogio ao patrono de sua Cadeira (Nº 51) por ocasião de sua posse no IHGP, intitulado Eduardo Galvão: Fundador de Discursividades, destaca a importância das pesquisas de Galvão para os estudos antropológicos na Amazônia e no Brasil, especialmente sobre as comunidades tradicionais, cuja lacuna sobre a presença do negro na região amazônica torna possível novas discursividades.
Temos a convicção e a esperança de que esses trabalhos hão de marcar momentos significativos da sociedade brasileira, nos quais a cultura afrodescendente clama por ter seu espaço e valor reconhecidos. Oxalá colaborem com os debates atuais e venham a se constituir em inspiração para o desdobramento de estudos e pesquisas referentes à temática da africanidade, de modo especial nestas plagas amazônicas.
Belém, 20 de novembro de 2020.
Notas
1 Bento Bruno de Menezes Costa, negro, escritor, poeta, folclorista e compositor, oriundo de família humilde, é considerado o Pai do Modernismo na Amazônia, e integra a segunda geração de modernistas do Brasil. Escreveu poesias, novelas, peças teatrais e romances trazendo a figura do negro e sua cultura para a literatura. Foi membro do IHGP e da Academia Paraense de Letras, “[…] e seu valor consiste em mostrar toda a influência sentimental que o negro ‘africano’ teve e ainda tem na nossa nacionalidade e cômoda nossa sociedade embrionária chegou até os nossos dias, pelo sangue, pelos hábitos e pelos costumes” (MORAIS, N. O africanismo de Bruno de Menezes, 1940. In: MENEZES, B. (Org.). Batuque. Belém: Gráfica Falangola, 1966, p. 79-86).
2 Estatuto do IHGP, Capítulo I “Do Instituto e seus fins”, Art. 1º, alínea a.
Organizadores
Helena Doris de Almeida Barbosa
Robson Wander Costa Lopes
Taissa Tavernard de Luca
Referências desta apresentação
BARBOSA, Helena Doris de Almeida; LOPES, Robson Wander Costa; LUCA, Taissa Tavernard de. Editorial. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v. 7, n. 3, p.1-4, nov. 2020. Acessar publicação original [DR]