MAZRUI, Ali. African Thought in Comparative Perspective. Cambridge, Cambridge Scholars Publishing, 2013. 369 p. OLIVEIRA, Silvia. Pensamento africano em perspectiva comparada. História Unisinos, 23(3):475-477, Setembro/Dezembro 2019.
Assente no profissionalismo e na crítica científica, a presente obra traz a público, num único volume, uma coletânea de artigos publicados por Ali Mazrui ao longo da sua carreira, onde apresenta não só os resultados das suas pesquisas enquanto historiador, pesquisador, professor, analista e cientista político, mas igualmente as suas ideias e convicções enquanto cidadão africano, como o mesmo faz questão de se identificar. Apesar de ser pouco abordado no espaço lusófono, a sua experiência, o seu intelecto, o seu carisma, a sua defesa do pan-africanismo e a sua dedicação à causa africana fazem dele um “dos mais prolíficos escritores africanos do nosso tempo” (p. xi), assim como uma referência na produção de conhecimento sobre África, nas suas múltiplas dimensões, com destaque para a pesquisa sobre o Islão e os estudos pós-coloniais.
African Thought é um livro realista e, ao mesmo tempo, apaixonante na medida em que, ao lermos, vemos o cenário de África ser descortinado, ampliando, desse modo, a compreensão do leitor em relação ao continente e aos africanos, de um modo geral, mostrando igualmente que, ao contrário da “irrelevância histórica para a qual foi relegado” (Mazrui, 2013, p. 10), este é detentor de um “repertório intelectual riquíssimo” (Mazrui, 2013, p. XII) que precisa de ser explorado, compreendido, explicado e valorizado. A riqueza das temáticas abordadas e analisadas, que vão desde o “legado dos movimentos de libertação, a convergência e a divergência africana, o pensamento islâmico e ocidental, ideologias nacionalistas, o papel da religião na política africana e o impacto da filosofia clássica grega na contemporaneidade” (Mazrui, 2013, p. XI), visa precisamente cumprir estes pressupostos. Dada a complexidade do objeto de estudo, os editores organizaram este volume em cinco secções autónomas, cada uma delas dividida em capítulos.
A primeira secção – Africanidade comparada: identidade e intelecto – apresenta as teorias e os preconceitos “meio-diabólicos” (Mazrui, 2013, p. 4) que alimentaram, durante séculos, a exploração e a colonização do continente e dos africanos, caracterizados como “crianças imaturas” (Mazrui, 2013, p. 5), “pré-históricos” (Mazrui, 2013, p. 8), “cultural e geneticamente retardados” (Mazrui, 2013, p. 10), posicionados como os menos civilizados na escala evolutiva estabelecida pelo próprio ocidente, catalogações que serviram de pretexto e justificativa para o tráfico de escravos e alimentaram ideias e teorias como o darwinismo social e as conhecidas teorias da modernização e da dependência. Segue-se uma abordagem sobre a legitimação e reconhecimento da filosofia africana enquanto fonte de sabedoria, sendo identificadas três escolas filosóficas, nomeadamente a) escola cultural, também conhecida como etnofilosofia, que assenta na tradição oral e é classificada pelo autor como uma escola de massas, abrangendo os períodos pré-colonial, colonial e pós-colonial; b) ideológica, que reúne as ideias dos ativistas políticos e seus líderes, abrangendo sobretudo o período colonial e pós-colonial, cuja caraterística principal passa pela utilização das línguas ocidentais, sendo por isso considerada mais elitista; c) crítica ou racionalista, composta essencialmente pelos filósofos académicos, enquadrados nas universidades.
Posteriormente, Mazrui identifica as cinco maiores tradições do pensamento político em África, nomeadamente, a) conservadora, ou solidariedade tribal, assente na continuidade (da tradição) em detrimento da mudança. Esta engloba três subtradições: the elder tradition (o respeito pelos mais velhos), the warrior tradition (a tradição dos guerreiros) e the sage tradition (a sabedoria); b) nacionalista, que surge parcialmente como resposta à arrogância da colonização branca, podendo assumir diferentes dimensões, nomeadamente, nacionalismo linguístico, religioso, rácico, pan-africanismo, etnicidade (unidade tribal), nacionalismo civilizacional; c) liberal-capitalista, com ênfase no individualismo económico, na iniciativa privada, assim como na liberdade civil; d) socialista, e) internacional ou não alinhamento. O autor salienta ainda o papel e a importância da memória coletiva identificando, para o efeito, quatro funções da mesma, nomeadamente: preservação, seleção, eliminação e invenção, bem como a questão dos arquivos africanos que assentam sobretudo na tradição oral.
Ao alertar para a necessidade de compreensão e distinção entre relativismo histórico (diferença entre épocas históricas) e relativismo cultural (diferença em termos de valores entre sociedades) no início da segunda secção, o autor introduz a temática sobre a presença do Islão no mundo e em África, constituindo este, a par da africanidade e da influência ocidental, uma das suas heranças, denominada pelo autor de triple heritage (tripla herança). Posteriormente, Mazrui apresenta a sua teoria sobre a existência de cinco níveis de pan-africanismo: 1) Subsariano, que congrega a união dos povos negros ao sul do Sara; 2) Trans-Subsariano, a unidade do continente como um todo, tanto ao norte como ao sul do Sara; 3) Transatlântico, que engloba igualmente a sua diáspora pelo mundo; 4) Hemisfério Ocidental, união dos povos descendentes de africanos e que se encontram no ocidente; 5) Global, a conexão de todos os negros e africanos pelo mundo. É feita ainda referência à Negritude como movimento cultural, no qual o autor distingue duas categorias, nomeadamente: a literária, que inclui não só a literatura criativa, mas igualmente aspetos da esfera política e social, e a antropológica que corresponde a um estudo romantizado de uma comunidade tribal africana por um etnógrafo africano.
É a partir da filosofia e da construção do conhecimento que Mazrui reflete sobre a influência que a filosofia ocidental exerce(u) sobre os africanos, sobretudo sobre os nacionalistas. Composta por seis capítulos, a terceira secção é dedicada à construção do nacionalismo africano e às suas diferentes manifestações. O autor defende que a herança greco-romana foi utilizada pelo ocidente com propósitos sombrios, servindo como justificação para a colonização, sendo o exemplo belga na República Democrática do Congo (RDC) o mais pragmático de todos. Assim sendo, o autor defende que a Negritude não é mais do que “a resposta do homem negro à mística greco-romana” (Mazrui, 2013,p. 146). Mas é igualmente essa mesma filosofia que influencia o pensamento africano, em particular os nacionalistas, tornando-se eles próprios, de certa maneira, filósofos, ao beberem e defenderem, posteriormente, as teorias de Hobbes, Rousseau e Lénin, entre outros autores, que estarão na base da luta pela igualdade e libertação do continente, constituindo por isso três formas de resistência, nomeadamente, 1) tradição guerreira: assente na cultura indígena; 2) resistência passiva: técnica utilizada por Gandhi; 3) revolução marxista, tendo como exemplo os casos das ex-colónias portuguesas, nomeadamente, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
No entanto, a luta não se circunscreveu às fronteiras do continente, sendo que a diáspora também arregaçou as mangas e deu o seu contributo; exemplos dessa luta são Frederick Douglas e Du Bois. Outros aspetos igualmente importantes para a compreensão da dinâmica política contemporânea do continente prendem-se com a questão do religioso, da tradição, da cultura e, consequentemente, da ética, na análise dessas temáticas. E o autor chama a atenção para a sua importância na quarta secção, a mais curta de todas as secções. De uma forma bastante simples, porém, completa, são-nos apresentadas as características do religioso em África, nomeadamente, a) étnicas, b) não expansionistas, c) universalistas, d) ausência das sagradas escrituras, tendo como base a tradição oral, e) língua nacional, f) não separação dos assuntos terrenos e espirituais, ou seja, não se assentam na fé. Outras peculiaridades culturais que fazem do continente aquilo que ele é, como o casamento, os casamentos inter-raciais, a poligamia, entre outras, são igualmente analisadas por Mazrui, que alerta para a exercem no quotidiano dos africanos ainda na contemporaneidade e pelo fato de nos ajudarem a perceber a atual situação do continente, funcionando igualmente como pressupostos de análise do pós-colonial.
Nos seis capítulos que compõem os Ensaios Conclusivos, o autor traz a debate temáticas mais contemporâneas, que têm levado a uma continuidade da ideia periférica que se construiu e se continua a construir sobre o continente, nomeadamente, pós-colonialismo, multiculturalismo, modernidade, democracia, globalização, entre outras. Ao alertar para a necessidade de pensarmos e debatermos o pós-colonial ou o que “Said chamou de orientalismo e Mudimbe chamou otherness” (Mazrui, 2013, p. 287), Mazrui relembra a tripla herança africana e aponta para os diferentes instrumentos de que o ocidente tem feito uso para manipular o discurso que vai contra a visão do mundo implantada pelo próprio ocidente, monopolizando e perpetuando, deste modo, os seus próprios paradigmas em relação ao “Outro” (Mazrui, 2013, p. 288), numa tentativa de continuar a dominar, mostrando a sua supremacia, da qual a globalização se apresenta como o exemplo mais flagrante.
Apesar da obra estar disponível apenas em língua inglesa, o que constitui uma condicionante para os não falantes dessa língua, não podemos deixar de realçar que, pela riqueza de informações e pela crítica científica que serve de base para a sua análise, estamos em presença de material de consulta obrigatória para qualquer ramo do saber, não só direcionado para a área dos estudos sobre África, mas igualmente sobre a temática da produção do conhecimento sobre o pós-colonial, numa perspetiva macro. Com efeito, uma das suas inovações é precisamente a transdisciplinaridade do autor na análise dos diferentes temas com destaque para a sistematização teórica do pensamento político africano, a sociedade africana, filosofia, multiculturalismo, globalização, bem como a visão global que emprega nessa análise, levantando mais questões do que dando respostas às interrogações iniciais. Por outro lado, a sua riqueza bibliográfica dá-nos igualmente pistas para futuras leituras e pesquisas sobre as diferentes temáticas, alimentando desse modo o debate científico e abrindo caminhos futuros de pesquisa.
Pela sua importância, não podemos igualmente deixar de referir aspetos que a podem fragilizar, como o fato do autor não aprofundar o debate sobre a responsabilidade das elites africanas pela atual situação em que se encontra o continente, as falhas no processo de construção da democracia, assim como em relação à realidade que enfrentam os africanos na contemporaneidade, os desafios e expectativas em relação ao futuro. Talvez seja esse o propósito, ou seja, despertar em cada um dos leitores outras interrogações que conduzam à produção de mais conhecimento sobre o continente, desmistificando, deste modo, a ideia preconcebida e obscura que se foi construindo ao longo dos séculos.
Notas
2 A partir dessa parte da resenha, os trechos em itálico são grifos presentes no livro.
Silvia Oliveira – Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, Avenida Dom Antonio, 2100 – Parque Universitário, 19.806-900 Assis, São Paulo, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: slviadeoliveira9@gmail.com.
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