África sem luz | Maria Archer

Maria Emilia Archer Eyrolles Baltazar Moreira África
Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira | Imagem: DebathGraph.Org

Introdução

Este artigo tem por propósito discutir o conto “Legítima defesa” da escritora portuguesa Maria Archer. A história se passa em Luanda, em meados do século XX, um período de maior presença portuguesa, bem como de angolanos vindos do interior, gerando assim um aumento das segregações e tensões sociais e raciais, que repercutiu na produção literária tanto dos escritores portugueses, quanto dos angolanos.

Fruto de suas viagens e presença em Luanda, ele apresenta um limite tênue entre história, memória e ficção, sendo, portanto, resultado das histórias que a autora ouvira quando de sua estadia na capital de Angola na década de trinta, nos permitindo assim perceber as diferentes trocas culturais e os jogos de poder entre a população endógena e os europeus pois mesmo a fala sendo de uma autora portuguesas, o texto é polifônico e revela uma serie de vozes que vão para além do olhar colonial.

Maria Archer e seus trânsitos

A escritora Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira (Maria Archer) nasceu em Lisboa no ano de 1899. Em 1910, foi viver em Moçambique com a família, onde seu pai exerceu a função de gerente de uma agência bancária. De Moçambique conheceu outras regiões africanas, sobretudo regiões colonizadas por Portugal, como Angola. Veio a morar no Brasil, onde faleceu em 1982.

Nas décadas de 1930 a 1960 sua produção literária foi intensa, priorizando a temática feminina intercruzada com as matérias coloniais sobre a África portuguesa. Ela é considerada a percussora em Portugal do que se chama de “literatura feminina” ou “literatura no feminino” sobretudo depois de “Três Mulheres” (novela, 1935), “Ela É apenas Mulher” (romance, 1944), “Filosofia de Uma Mulher Moderna” (contos, 1950) e “Nada Lhe Será Perdoado” (romance, 1952). Segundo Ana Ferreira (2002) suas obras possibilitam um panorama da vida privada, ou mesmo das mentalidades e condutas características da mulher da burguesia e pequeno burguesia portuguesa das décadas de trinta e cinquenta2. Neste sentido, ela destoa de grande parte dos escritores portugueses de seu tempo, quase sempre homens e com temáticas que dava pouco espaço para um ponto de vista a partir da mulher, ainda que da mulher burguesa.

Ana Paula Ferreira (1996) destaca que grande parte desta literatura colonialista publicada no período de consolidação da ideologia estado-novista (entre os anos trinta e quarenta) era de autoria masculina, diferenciando-se apenas duas mulheres, Guilhermina dos Santos, que tem sua obra “Feitiços” vencedora do concurso de Literatura Colonial de 1935, promovido pelo governo Salazarista desde 1933 e Maria Archer que concorre neste mesmo concurso, na edição de 1935, com a obra “África Selvagem, Folclore dos negros do grupo Bantu”. Tanto homens, quanto mulheres reverberavam em seus diferentes escritos o que Homi Bhabha (1998) chama de discurso colonial, apresentando o “[…] o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 1998, p.111).

Além de uma produtiva atividade literária, atuou também como jornalista, escrevendo não só em jornais portugueses, a exemplo do “Portugal Democrático”, como também publicações brasileiras, “O Estado de São Paulo”. Em sua produção dedicou-se a registrar aspectos distintos das realidades locais de suas múltiplas viagens. Como uma mulher de seu tempo suas análises refletem o racismo da sociedade portuguesa do qual é originária, levando a uma certa incompreensão da diversidade dos locais por ela visitados e fazendo com que ela se tornasse um dos mais respeitados nomes da “literatura colonial”.

Archer foi também uma das divulgadoras do lusotropicalismo, um corpus ideológico criado a partir das ideias de Gilberto Freyre que defendia uma suposta especificidade do colonialismo português, mais brando e propicio as misturas do que os demais. Freyre é o prefaciador da obra “Terras onde se fala português”, título da edição brasileira (no original “Herança Lusíada”) de 1956, que é um grande relato de Archer de suas viagens ao continente africano, onde ela procura demonstrar in loco o sucesso colonial português. O estudioso brasileiro a compara com as antropólogas americanas Ruth Benedict e Margaret Mead, dizendo ainda que “[…] pouco falta às páginas da talentosa escritora portuguesa para serem ensaio de lusotropicalismo de todo consciente da unidade na diversidade” (FREIRE apud ARCHER, 1957, p. 8).

O livro é dividido em onze capítulos, que tratam da presença portuguesa na África, na América e na Ásia3. Destacando a coragem daquele “pequeno país” que era Portugal em se empreender por “mares bravios” e “regiões distantes” para “levar o progresso e civilização” aos povos que mantinham contato. A obra de Archer mais do que um roteiro de viagem, era a prova do sucesso do empreendimento português, o que não deixa de ser contraditório, visto que ela foi uma das opositoras do regime salazarista, razão pela qual resolvera deixar Portugal, como salientou em uma entrevista dada em meados do século XX:

Vim para o Brasil, tendo chegado dia 15-07-1955, porque já não podia viver em Portugal. A ação da censura asfixiou-me e tirou-me os meios de vida. Apreenderam-me dois livros publicados, assaltaram-me com policiais a casa e levaram-me um original que ainda estava escrevendo, violência inédita em países de civilização europeia (Diário de Notícias, In: MATOS, 2017, p.21)

Maria Izilda Matos (2017) destaca que ela foi também uma precursora da participação da mulher no movimento de resistência ao salazarismo em Portugal, sobretudo em função de seus textos na impressa escrita, sobretudo no jornal Portugal Democrático e Revista Municipal, e no rádio, onde denunciava as atrocidades do regime português.

Em diferentes entrevistas Archer dizia que sua participação política e obra literária tinha sido norteada “[…] pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da mulher”4. Sobre a presença da colonização portuguesa na África, Archer criticava a pouca ausência de mulheres, na obra “Brasil: Fronteira da África” (1963), ela diz que “uma civilização só se fixa e define através da mulher” (ARCHER, 1963: 166). Entretanto seu olhar sobre a mulher africana era eivado pelo racismo e distanciamento, ao chegar em Angola em finais da década de cinquenta, se horroriza com as mulheres encontradas:

O seu corpo nu, ornado de tatuagens e missangas, é como a sua alma, pertença de uma arcaica civilização de que não somos partícipes […] Entre essas negras há algumas que estão em um estágio civilizatório um pouco mais avançado que são as criadas, as lavandeiras e as modestas companheiras dos brancos pobres (ARCHER, 1957, p.159).

Archer (1957) associa a nudez, com a falta de civilização, não muito distante das análises feitas pelos europeus quando chegaram no novo mundo no início da época moderna, para quem a ausência de roupa era a demonstração visível da falta de qualquer propriedade cultural, costumes, ritos e religião por parte dos autóctones das regiões com os quais mantiveram contato5.

Os livros de Archer relavam uma grande “incompreensão” do ser africano, marcada pelo racismo português ela só via, o que queria de antemão ver, dando pouco (ou nenhum) espaço para uma análise mais diversa e complexa da realidade social por ela visitada. Entretanto a análise das entrelinhas de suas obras nos permite ver para além do olhar colonial.

Para aprofundarmos este debate faremos uma análise do conto “Legítima Defesa” presente na obra “África sem luz” de 1962, a despeito do racismo e imprecisões que marcam suas representações do homem e do continente africano, o conto em questão apresenta-se enquanto uma narrativa polifônica, no qual é possível perceber as diferentes formas que os povos locais (“nativos” nas palavras dela) encontraram para lutar e se defender dentro de uma sociedade colonial.

Quando falamos em polifonia, referimo-nos à possibilidade de vencer as dificuldades impostas por uma documentação colonialista para encontrar outras falas possíveis – principalmente aquelas dos nativos– com uma leitura crítica, atenta aos indícios que surgem nas entrelinhas e às mediações sofridas pelos interlocutores, buscando interpretá-los a luz dos instrumentos da história e das ciências sociais.

Acreditamos, como Mikhail Bakhtin (1999), que jamais apagamos as vozes daqueles que falam a partir de outras linguagens sociais, por mais inadequadas que sejam. Segundo ele, a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, essas estão ligadas às estruturas sociais, e a “palavra é a arena onde se confrontam valores sociais contraditórios”. Cada época e cada grupo social têm seu próprio repertório de formas de discursos. “Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal” (BAKTHIN, 1999, p. 98).

A análise intertextual, concebida por Bakhtin de forma dinâmica e dialética, mostra que os textos podem transformar-se em materiais sociais e históricos, ou seja, a “inserção” da história em um texto, e desse na história para, assim, tentar apreender os diferentes gêneros do discurso e nesses diferentes gêneros perceber tanto as representações como as falas destes nativos, é o que pretendemos fazer com “Legítima defesa”.

“Legítima defesa”, entre representações e polifonias

“Legítima defesa” é um conto que faz parte do livro “África Sem Luz”, que foi inicialmente publicado no Brasil, pela editora Clube do Livro no ano de 1962, quando a autora estava no país em seu autoexílio. O livro é composto de uma série de contos alusivos ao continente africano, anteriormente publicado de maneira fragmentada em Portugal entre os anos trinta e quarenta, e que procuram destacar o caráter “selvagem/não civilizado” do africano, como o próprio título do livro já deixa bastante claro.

Leonor Martins (2016) destaca que seus diferentes textos “[…] evocam episódios da história colonial portuguesa, narram lendas e contos de temática africana, descrevem paisagens, gentes e culturas exóticas, veiculam conhecimentos de teor etnográfico e críticas à administração colonial portuguesa” (MARTINS, 2016, p.88). Assim sendo misturam e intercalam diferentes tipos de discursos, históricos, etnográficos, políticos, ficcionais etc.6.

No conto em análise a história gira em torno de dois “assimilados” Matinguita e Jaquim, ferroviários da linha Luanda – Malange. Desde o início do século XX, esta linha de ferro foi um elemento fundamental de integração no território predominantemente kimbundu, trazendo para a capital trabalhadores desta região7. Estes são assim descritos por Archer:

Indígenas de Luanda, destes mal assimilados, dos que disfarçam com trajes europeus o natural primitivismo. Talham a carapinha, em jeito de penteado janota, com a risca aberta por corte de navalha, e vestem, em dias de folga, roupas bem feitas, com chapéus de feltro e gravata de seda. Na missa dominical, luzem os luxos maiores (ARCHER, 1962, p. 55).

Os dois são identificados como “indígenas de Luanda”, o indígena, mais do que uma categoria colonial para definir as populações locais foi uma tentativa de imposição de identidade, trata-se de um “efeito de poder”, tendo portanto “[…] uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença. (SAID, 2001, p. 17), a saber o colonialismo português e seu corpus ideológico. Há, neste caso, uma construção literária que molda as personagens, muitas vezes reais, com contornos mais nítidos e até mesmo hiperbólicos/absolutizados em função da mensagem que o/a escritor/a quer passar para o seu leitor.

O caráter dela é de denúncia em relação aos “mal assimilados” ou também chamados pejorativamente de “calcinhas”, ou seja, “nativos” (negros e mestiços) que eram assimilados quase sempre apenas no habito externo, sem ter necessariamente o estatuto legal8. Interessante destacar que a descrição feita por Archer em muito se aproxima de uma outra feita pelo Secretário dos Negócios Indígenas e Curador Geral da Província de Angola Ferreira Diniz em sua publicação de 1918, “Populações Indígenas de Angola” evidenciando desta forma um processo de circulação das ideias coloniais e de construção de imaginários que parece ter influenciado, mesmo que indiretamente a sua produção9 . Diniz, assim define os “indígenas” de Angola no início do século XX:

Vestido à europeia, esfarrapado, do casaco restando só quase as mangas, meio calçado, meio descalço, não dispensando um chapéu ou um desbotado boné, entregando-se a uma doentia ociosidade, e a quem o mascavado português, que fala e que escreve só serve para burlar os seus ingênuos compatriotas com reclamações e requerimentos, baseados na pinturesca interpretação que dão à Constituição da República, o calcinhas é o tipo indígena semi-educado, semicivilizado, um dos piores elementos da população indígena. (DINIZ, 1918, p. 61).

Em um sentido diametralmente oposto a Diniz e Archer, mas que acaba por chegando no mesmo ponto, os críticos ao colonialismo viam também naqueles que tentavam assimilar aos valores europeus como um “suicídio identitário”. Para Roland Corbisier o colonizado que se assimilava, via-se “[…] ocupado, invadido, dominado, sem condições para reagir, nem ideológicas, nem materiais”, não podendo desta forma evitar a mistificação do colonizador que “[…] impondo-lhe a imagem de si mesmo que corresponde aos interesses da colonização e a justifica. O colonizador se perde no ‘outro’, se aliena. (CORBESIER apud MEMMI, 1977, p.8).

Entretanto podemos fazer uma leitura um pouco distinta destes autores, pois em grande parte fazer o uso dos códigos do colonizador naquele contexto era comum para os habitantes da região de Luanda e sobretudo Kimbundu, pois trata-se de uma área de colonização antiga, no qual o processo de interpenetração cultural já estava solidamente instalado10. Além disso na geopolítica local esta posição de aproximação com os “estrangeiros” era um fator de diferenciação e poder ante aos outros grupos presentes.

Assim podemos entender que mais do que “mal assimilados”, Matinguita e Jaquim não “disfarçavam” com trajes europeus o seu “natural primitivismo”, mas sim sabia fazer usos dos novos códigos de poder: vestuário e religião, como um fator de inserção social no mundo português e suas supostas vantagens, mas também de diferença (e poder) em relação aos outros grupos sociais locais que estavam em contato e concorrência, como os Umbundo por exemplo, mas sobretudo para os outros povos que estavam sobretudo no interior do que então era Angola.

A fala de Archer, além de desconhecer esta dimensão, vai também no sentido de “denunciar” o fato de que o processo de colonização portuguesa nas colônias não conseguia avançar por conta do estágio civilizacional atrasado que viviam estas populações. Neste sentido sua argumentação era de que a “culpa” pelo “falha” da colonização portuguesa de integrar os agentes locais era por conta da culpa dos mesmos. Trata-se de um tipo de argumento presente também entre as autoridades coloniais e os pensadores portuguesas da época11. Como ela deixa claro em outro trecho na descrição dos dois angolanos protagonistas de seu livro:

Eram indígenas bem falantes, espécie de fonógrafos avariados de discos conhecidos, que discorrem em português como o papagaio discorre na janela. Negros mal saídos do sertão, apenas afastados da nudez selvagem e da bárbara imponência animal, cobrem de ouropéis o corpo despojado da juba leonina (ARCHER, 1962, p. 55).

Na sua descrição a referência ao sertão como um lugar de atraso, o “mato”. Já a civilização seria encontrada em Luanda, mas apenas parcialmente por aqueles que vieram do interior. Como mostramos em trabalhos anteriores, a construção discursiva da ideia de “mato” estava associada à própria presença de Portugal em Angola. O “mato” não era um território com fronteiras delimitadas, mas o longe e periférico, o não urbano, o não civilizado12. Aqueles que vinham deste “mato” eram denominados como matumbos, variante da palavra em quimbundo matumbu, que passou a designar, em Angola, um “Indivíduo bastante atrasado, ainda não liberto dos costumes primitivos. Selvagem. Ignorante. Bisonho. Fig. Incivil. Acanhado. Inexperiente” (RIBAS, 2009, p. 306).

Esse termo, registrado pelos documentos portugueses, desde pelo menos finais do século XIX, serviu também para designar os africanos ainda não urbanizados e era utilizado em alternância com a expressão “gentes do mato”, criando-se, assim, mais uma clivagem na sociedade angolana, onde um grupo local secularmente instalado no litoral e no núcleo urbano da colônia se considerava superior aos angolanos vindos do interior ou lá residentes. A fala de Archer, acaba por refletir essas clivagens e “impossibilidade” da assimilação:

Até que ponto a infiltração europeia embebe a alma do indígena e a modifica num sentido civilizador? Ignora-se. O negro parece ter estacionado numa fase remota da evolução humana. Nos seus atos, surpreende a lógica primitiva, que nos espanta nas crianças (ARCHER, 1962, p. 56).

Falando do conto, “Legítima Defesa”, a história é concentrada em Matinguita “[…] o negro assimilado, bem falante e bem vestido” (ARCHER, 1962, p. 56), que entra em disputa com seu melhor amigo Jaquim, por uma mulata13. Percebe-se que o fato de ser mulata era sinal de que estava em uma situação social diferenciada e que isso acabava sendo importante para Matinguita.

Matinguita era o feliz possuidor da maravilha mulata, preciosa por ter a pele clareada do sangue europeu, preciosa para ele como um vislumbre de graça da mulher branca – deusa tabu– e engrandecida pelo luxo do vestido, pela pintura na cara, pelos sapatos de tacões altos, pela faceirice moderna. Uma mulata hein? A posse de moça mimosa, que os próprios brancos galanteavam, dava a Matinguita fumaças de preto fino, de conquistador, guindado, quase, de preto a puxar para branco… (ARCHER, 1962, p. 57)

O fato de ter a pele um pouco mais branca coloca a “mulata” em uma situação de maior posição social do que Matiguita, sendo ela, cobiçada, inclusive, por brancos. A distinção racial existente em Luanda, não foi muito diferente (guardadas as especificidades locais) do restante dos domínios portugueses, incluindo o Brasil, trata-se de um espaço onde o padrão branco é colocado pelos metropolitanos como meta, objetivo, ponto de chegada… estabelecendo-se assim desta forma o padrão branco x não branco, quanto mais próximo deste universo, mas distinção social se tinha, mesmo entre os nativos já assimilados aos valores e convenções europeias14.

Ao associar a “mulata” a perturbação da ordem social, Archer também reverbera um imaginário colonial de que os processos de mestiçagem era fator de desagregação e diluição de uma sociedade colonial a ser construída a partir da distinção europeu branco x nativo preto. Tentando olhar a partir da perspectiva da “mulata” é possível perceber uma mulher dona de si, que usava do jogo de sensualidade e poder, para assim ter espaços de manobra e alguma possibilidade de ascensão social naquela realidade marcada pelo racismo e segregação.

Na trama descrita por Archer (1962), Matinguita dorme no serviço e é denunciado por Jaquim que estava interessado na mulata. Mantiguita é então suspenso por seis meses, ficando sem seu salário, não conseguindo dessa forma manter a namorada que “[…] exigia mundos e fundos em Luanda, moradia apartada e caiada de novo, moleque para o serviço, chapéu” (ARCHER, 1962, p. 58). Ela então começou a se interessar e depois a viver com Jaquim que “[…] gozava a fama de preto endierado e convencido” (ARCHER, 1962, p. 58).

Para se proteger da possível vingança, Jaquim, procura um feiticeiro, que prepara um feitiço e faz Mantiguita contrair uma doença. Com muito medo do feitiço (e do feiticeiro), Mantiguita procura seu antigo amigo para fazer as pazes, dizendo ao mesmo que nenhuma mulher poderia separar os dois, além disso dera dinheiro para seu oponente, para o Uloge (feiticeiro), para o tio de Jaquim (que contatara o feiticeiro) e até para a mulata. “Pagava a vida!”

Tal ato ofendeu mais ainda a Jaquim, que disse que gostaria de ver Matinguita, morto. Não está claro as razões de tamanha ofensa de Jaquim, podemos ao menos supor que talvez fosse pela proposta de Matinguita resolver a partir de uma dimensão material (o dinheiro) uma questão imaterial (o feitiço). Entretanto, como deixa claro as pesquisas feitas por José Redinha (1975) em Angola por este período, a articulação entre poder material e força espiritual estavam claros em Luanda, como demonstra os suntuosos banquetes oferecidos as kiandas (gênios da natureza/espíritos da natureza) por parte da elite nativa, que mais do que agradar a entidade, servia para mostrar seu poder para os locais15.

Como não conseguira através da resposta material (o dinheiro) impedir o feitiço, Matiguita recorre a nova força espiritual vinda de fora, o cristianismo, articulando-o com “as coisas locais”:

Fez promessa na igreja e sacristão benzeu-o. Uma missa por intenção particular, também, lhe calhava, e pagou-a. ‘Uloge’ de confiança submeteu-o a ritos imunizantes e desencadeou feitiço ao Jaquim […] cobriu-se de pinturas mágicas, pendurou ao peito amuletos gentílicos e bentinhos cristãos (ARCHER, 1962, p. 60).

Neste caso, o cristianismo era também, de certa forma, uma forma de feitiço. Os usos (a abusos) do feitiço eram instrumentos de demonstração de poder dentro daquela sociedade colonial, saber fazer este jogo era crucial para conseguir desta forma sobressair ao seu oponente. Entretanto como não conseguira se curar, resolveu matar Jaquim, pois assim cortava o feitiço, salvava a sua vida e agia em “legítima defesa”, utilizando um “instrumento” jurídico dos portugueses, que tinha ouvido nas histórias contadas no porto de Luanda.

Aqui temos uma situação bem interessante do mundo colonial, o entrelaçamento entre Feitiço e Direito. Neste sentido concordamos com Georges Balandier (1993) para quem a sociedade colonial e colonizada forma um sistema, criado uma sociedade nova, com o entrelaçamento de perspectivas culturais, sociais, políticas… distintas na qual os jogos de poder e as lutas de classificação agenciam um novo arranjo social plural16.

Assim Mantiguita matou seu antigo amigo, bem como seu tio. Pela manhã vai até ao quartel para se entregar, traçando o interessante diálogo.

-Então… se ninguém te viu… porque vens entregar-te?

Matinguita ouviu-os. Era o momento solene… Dignamente, a cabeça bem erguida, o olhar lampejante, ele atirou a frase altissonante, a frase que o colocava ao nível dos brancos, a frase que ouvira de vadios e degredados:

— Foi em legítima defesa!

Estorcegaram-lhe corpo e alma sem lhe extorquirem outra razão.

Matinguita sabia – sabia muito bem, que o diziam vadios e degredados – que, entre os brancos, se mata sem crime em legítima defesa. O tribunal não condena quem mata em legítima defesa!

— Mas – retorquia o Chefe de Polícia – quê em legítima defesa é essa? De quem te defendeste tu? Eles não armaram espera, não te bateram, não te roubaram, não te feriram. Eles dormiam. Tu é que foste ao ‘muceque’ e a Bungo, para matar. Que legítima defesa é a tua? De quem te defendeste tu?

Formidável de razão, de direito, de lógica, Matinguita respondeu:

— Do feitiço, senhor! (ARCHER, 1962, p.62).

Como se vê Matiguita defende-se dizendo que matara em legítima defesa como resposta ao feitiço a ele imputado No conto mais uma vez vemos o entrelaçamento entre tradição (a feitiçaria) com modernidade (o Direito) entendidas não como antagônicas mas sim como complementares, além do fato de que Matinguita sabia jogar/agenciar os diferentes saberes e formas de resolução de conflitos existentes naquela sociedade colonial O fato de ser “assimilado” o faz usar, como instrumento de sua defesa, o instituto normal entre os brancos, a “legítima defesa”, o que o “colocava no nível do branco”. A causa de sua defesa, entretanto, foi o “feitiço”, instrumental africano.

Mesmo que não seja a sua intenção, na polifonia do texto autora procura retratar a dubiedade e as identidades de fronteira do personagem, além disso a complexidade da sociedade colonial, que formava um complexo de saberes e práticas naquela zona de contato, onde “[…] culturas díspares se encontram uma com a outra, frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação” (PRATT, 1999, p.31), por conta destas relações assimétricas e não por uma suposta “ingenuidade” como dá a entender Archer, “[…] os brancos não o compreenderam, Matinguita foi julgado e condenado em degredo para a Guiné, de onde não mais voltou” (ARCHER, 1962, p. 62-63).

Considerações Finais

O reconhecimento oficial do feitiço como um elemento novo daquela sociedade colonial é negado pelas autoridades metropolitanas, a despeito destas também temerem estes elementos de força, que apesar de distintos, também podiam ser encontrados na metrópole, mas em Luanda, a alteridade humana é simultaneamente revelada, reconhecida e recusada.

Por outro lado, enquanto um “nativo” influenciado pelo universo português, Matiguita sabe fazer o jogo entre as diferentes formas de justiça possíveis em sua sociedade, o feitiço local e o direito metropolitano, adotando uma atitude pragmática, transitando entre o tradicional e a moderno para tentar resolver os seus conflitos.

Assim sendo o conto de Archer, revela as agencias dos africanos naquele espaço de realidades misturadas, e como os mesmos sabiam fazer uso do arsenal simbólico e ritual existente, para fazer frente ao avanço colonial e tudo o que ele significava.

Notas

2 FERREIRA, Ana Paula (Org.). A Urgência de Contar. Contos de Mulheres dos anos 40. Editorial Caminho, Lisboa, 2002, p.277.

3 Segundo Elisabete Batista “[…] roteiro no qual apresenta compreensiva síntese sócio-histórico-geográfica dos territórios africanos que mantêm o português como língua de comunicação”. (BATISTA, 2007, p. 8). BATISTA, Elisabeth. Entre o Índico e o Atlântico: incursões literárias de Maria Archer. Revista Crioula, v. 1, p. 1-9, 2007.

4 ARCHER, Maria. Revisão de Conceitos Antiquados In.: Ler (7). Lisboa. Out. 1952, p.5.

5 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 2009, p.34.

6 MARTINS, Leonor Pires. Menina e moça em África. Lusotopie[En ligne], XII (1-2)2005, mis en ligne le 31 mars 2016, consulté le 24 mars 2017. URL: http://lusotopie.revues.org/1183, p.88.

7 DIAS, Jill R. (1994), Mudanças nos padrões de poder no hinterland de Luanda: o impacto da colonização sobre os Mbundu. Penélope 14, p. 43-91.

8 Os assimilados foram africanos que durante o governo salazarista português (1926 – 1974) utilizaram-se do Estatuto do Indigenato (1926 – 1961) e seus documentos complementares, para conseguiram um status legal de civilizado, que os afastava do trabalho compulsório, além de permitir que trabalhassem nos órgãos da administração metropolitana, terem autonomia para deslocar-se dentro das colônias, solicitar carteira de motorista, direito a voto etc., possibilitando assim alguma ascensão econômica e social. NASCIMENTO, Washington Santos. Políticas coloniais e sociedade angolana nas memórias e discursos do escritor Raul David. Anos 90, 2016 (no prelo).

9 DINIZ José de Oliveira Ferreira, Populações indígenas de Angola. Introdução do autor. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, 756p.

10 DIAS, Jill R. (1994), Mudanças nos padrões de poder no hinterland de Luanda: o impacto da colonização sobre os Mbundu. Penélope 14, p. 43-91.

11 CASTELO, Cláudia. Investigação científica e política colonial portuguesa: evolução e articulações, 1936- 1974. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 19(2), 2012 e PEIXOTO, Carolina Barros Tavares. Limites do ultramar português, possibilidades para Angola: o debate político em torno do problema colonial (1951-1975). Niterói: Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, 2009.

12 NASCIMENTO, Washington Santos. Gentes do Mato: os “novos assimilados” em Luanda. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

13 ARCHER, Maria. África sem luz. São Paulo: Clube do Livro, 1962.

14 BOXER, Charles. Relações raciais no Império Colonial Português 1415 — 1825. Porto: Afrontamento, 1988.

15 REDINHA, José. Sincretismos Religiosos dos Povos de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola. 1975.

Referências

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TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 2009


Resenhista

Washington Santos Nascimento – Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: washingtonprof@gmail.com


Referências desta Resenha

ARCHER, Maria. África sem luz. São Paulo: Clube do Livro, 1962. Resenha de: NASCIMENTO, Washington Santos. “Indígenas de Luanda” e o direito português como forma de resistência: uma análise do conto “legítima defesa”. Dimensões. Vitória, n. 47. p. 224-234, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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