África e Brasil. História e Cultura | Eduardo D’Amorim

Passados quinze anos da lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino sobre a história e a cultura afrobrasileira, a questão ainda é tida como desafiadora por muitos professores e gestores escolares. Um dos principais motivos relatados pelos profissionais das áreas de educação é a ausência de materiais que abordem a temática com a qualidade esperada, e que privilegiem com correção as múltiplas dimensões socioculturais africanas, assim como as conexões entre esse continente e o Brasil.

O livro África e Brasil. História e Cultura, de Eduardo D’Amorim, está comprometido em suprir uma importante carência do mercado editorial brasileiro. A publicação, que recebeu a primeira colocação na 59º edição do Prêmio Jabuti, categoria Didático e Paradidático (2017), tem escrita clara, apurada organização dos capítulos e trabalho gráfico e editorial de altíssima qualidade. Tais elementos contribuem para uma leitura prazerosa e muito esclarecedora sobre a temática. Sendo útil para aos mais variados tipos de leitores que desejem debruçar-se sobre o assunto, e que tenha interesse em conhecer mais sobre a importância da história da África e da contribuição dos africanos na formação da cultura e da sociedade brasileira.

Eduardo Orlando de Aguiar D’Amorim é filósofo e atua na rede de escolas Maristas há mais de três décadas. Como ex-aluno na educação básica de Colégios Maristas, D’Amorim entende – em sua própria vivência – que o lúdico e uma formação integral possibilitam aos estudantes uma educação humanizada e multifacetada, em que inúmeras potencialidades podem ser plenamente desenvolvidas. A experiência formativa do autor indica tal preocupação, por meio de uma trajetória acadêmica rica e plural no campo das humanidades. Titulando-se mestre em sociologia da educação pela Universidade de Louvain (Bélgica), D’Amorim especializou-se em arte e psicologia social, também em instituições internacionais. Tomando especificamente sua relação com as temáticas culturais africanas, o autor realizou ampla pesquisa em psicologia social, junto a uma comunidade seminômade Kountas, no deserto do Saara, na Mauritânia. Na ocasião, aprofundou aspectos antropológicos e psíquicossociais daqueles sujeitos, especialmente pesquisando a riqueza cultural e as possíveis conexões com traços da cultura brasileira.

A produção bibliográfica sobre a temática do ensino da cultura africana é relativamente recente, especialmente as publicações voltadas para a prática docente, que têm sido uma novidade no campo. Em A África na sala de aula, 1 Leila Leite Hernandez nos apresenta relatos de suas experiências ministrando aulas que tinham como temática a história da África. No cerne da sua reflexão está o processo histórico em que o continente africano está inserido e como os acontecimentos que envolveram os territórios da África tiveram amplo impacto global, especialmente entre os séculos XIX e XX. Para tal, a autora realiza vasta pesquisa textual e ricamente ilustrada, tomando a complexa diversidade de culturas da África como fio norteador. Todavia, o estudo de Hernandez não se propõe a tocar diretamente nos pontos de interseção entre a África e o Brasil. A preocupação com a dimensão relacional África-Brasil se faz presente em História da África e do Brasil Afrodescendente, de Ynaê Lopes dos Santos.2 Obra recém-publicada, traz a dimensão africana da Antiguidade até os dias atuais. Servindo de subsídio para professores e estudiosos, especialmente por ampliar possibilidades de aprofundamento da temática. O grande diferencial da abordagem dos temas na obra de D’Amorim em relação aos trabalhos de Hernandez e Santos está na linguagem e no tratamento dos temas sem os rigores exigidos pelo leitor especializado, porém sem perder de vista a complexidade da temática, ou mesmo empobrecer as análises apresentadas.

O argumento em África e Brasil. História e cultura consiste no esforço de conhecimento da história da África, despensando particular atenção às formas de entrelaçamento com a história e as culturas da América, principalmente, a do Brasil. Tal procedimento é fundamental para que possamos entender plenamente por que os africanos constituem uma importante matriz cultural brasileira. Considerando-se especialmente as relações estabelecidas entre a África e o Brasil, conhecer as riquezas culturais africanas é situação urgente. Especialmente nos dias atuais, em que o conservadorismo e posições radicais têm se constituído como força política em uma espécie de projeto de poder que busca a manutenção do status quo. Se tratando da população negra, historicamente marginalizada e vista com desprezo pelas classes dominantes brasileiras, trabalhos como o de Eduardo D’Amorim contribuem consideravelmente para afastar visões deturpadas sobre a historicidade do negro no Brasil. Além disso, a análise comprometida do autor busca ampliar perspectivas sócio-culturais para além da tradição eurocêntrica.

Como organização, o livro está divido em três partes, as quais abordam distintos aspectos da história e da cultura africana – desde o surgimento dos seres humanos até os dias atuais –, preocupando-se em dimensionar a importância da contribuição africana para a formação do povo brasileiro. Deste modo, D’Amorim valoriza expressões culturais das mais diversas e as maneiras como tais elementos foram assimilados e introduzidos na base cultural do Brasil. Ao fim de cada uma das partes, o autor propõe atividades concretas que ajudam a refletir e aprofundar pontos trabalhados por ele nos capítulos.

A primeira parte, Uma história milenar, possui quatro capítulos. No primeiro, Surgimento dos seres humanos, são apresentadas pesquisas atuais realizadas por arqueólogos e antropólogos que reforçam as teorias de que o continente africano é o berço da humanidade. E que a partir da África os primeiros grupos de homo sapiens migraram durante milhares de anos para outras regiões do planeta, levando consigo seus conhecimentos e suas vivências. Tentando integrar-se aos novos ambientes, desenvolveram ferramentas que possibilitassem enfrentar os obstáculos naturais que lhes eram impostos. Como fontes sobre essa presença dos nossos ancestrais, o autor apresenta os artefatos usados por eles, encontrados em pesquisas realizadas em quase todo o território africano, reforçando a importância do conhecimento que esses primeiros homo sapiens dedicaram para o desenvolvimento e sobrevivência cotidiana da espécie. Além disso, D’Amorim apresenta inscrições rupestres que registravam suas vivências e atividades cotidianas das mais diversas, em uma multiplicidade de temas, forma e cores – que demonstram quão sofisticadas e organizadas eram aquelas sociedades.

D’Amorim argumenta no capítulo 2, Reinos da Antiguidade, sobre as importantes civilizações situadas no continente africano e que atingiram grau de complexidade considerável em diversos aspectos e produziram legado para o continente africano, assim como para toda a humanidade. Atento às contribuições do Egito Antigo, dos Reinos de Kush, Axum e Garamantes, D’Amorim apresenta a experiência dos povos que ocuparam a Costa Ocidental (sulatlântica), e como tais povos estabeleceram diferentes relações com os recursos naturais ali disponíveis.

Nos capítulos 3 e 4, a análise versa sobre as transformações impostas a alguns povos do continente pelo cristianismo e pelo islã, e também pelos contatos com os europeus. Novas dinâmicas e modos de viver são adquiridos pelas populações sob influência dessas grandes religiões. Os impactos de uma “cultura religiosa” são apresentados pelo autor como um ponto essencial para compreensão das disputas e dos conflitos entre os povos africanos. Além disso, o autor recorda que ao longo da Era Cristã as principais trocas e rotas comerciais entre africanos e europeus já estavam amplamente estabelecidas e que, ao longo de séculos, esse comércio de mercadorias encontrou uma opção extremamente lucrativa: a venda de seres humanos. Ainda que a escravidão fosse uma prática cultural bastante antiga na África, foi a partir do século XI que o comércio de pessoas, incentivado pelos muçulmanos, ampliou os confrontos sociais com objetivo de escravizar povos derrotados. As rotas comerciais estabelecidas passaram, então, a servir como instrumentos para um dos maiores crimes contra a humanidade.

D’Amorim dedica a segunda parte do livro ao encontro entre África e América. Nos capítulos 1 e 2, o autor explora aspectos das viagens dos portugueses, tomando como base os relatos dos viajantes, a narrativa envolvente sobre as conquistas da Costa Atlântica africana, e como a presença portuguesa ampliou-se ao nível das grandes navegações do século XV e XVI. Esse cenário nos ajuda a estabelecer a cruel conexão de que uma rede de tráfico comercial muito lucrativa, e que atuava de maneira compulsória, atuava desumanizando povos inteiros pela ganância para a força de trabalho e a exploração de outros seres humanos. A sensibilidade do autor ao abordar a temática diferencia-se justamente por apresentar detalhadamente como se organizou esse comércio, descrevendo rotas usadas pelos traficantes, assim como as condições aviltantes a que esses seres humanos eram submetidos em todo esse processo.

O capítulo 3 é dedicado à etapa final da infame rede da escravidão: a América. A estrutura comercial no Novo Mundo é apresentada pelo autor com inúmeras ilustrações e enriquecida com boxes que explicam de maneira simples as condições e os usos dos escravizados desse lado do Atlântico. Importante destacar que D’Amorim faz questão de ressaltar em seu texto que aqueles homens e aquelas mulheres não eram trabalhadores, e que ao contrário disso eram submetidos a uma situação de extrema violência em todas as etapas relativas à escravidão. Além disso, a dependência da forma de trabalho por parte dos portugueses aumentou consideravelmente nos ciclos do açúcar, da mineração, do café, assim como nas mais diversas atividades urbanas, ou seja, a economia portuguesa daquele período seria outra sem a força de trabalho dos negros escravizados.

As lutas e as resistências dos escravizados são apresentados no último capítulo dessa parte. Nele, D’Amorim organiza as formas de resistência dos povos que não aceitavam a opressão imposta pela experiência traumática da escravidão. Das fugas, que marcaram o cotidiano dos senhores e dos cativos, aos quilombos, o autor elenca uma série de negociações, ataques e resistências dentro dessa complexa organização social que havia se tornado o Império Português sob o regime escravocrata.

Eduardo D’Amorim acerta consideravelmente ao deslocar sua objetiva de aspectos excepcionais, como as grandes rebeliões – por exemplo, a Conjuração Baiana e a Revolta dos Malês – e investe em formas de resistência difusas e cotidianas, que por muito tempo não receberam a atenção devida de pesquisadores. Trata-se de esforços dos escravizados para preservar suas culturas. Desde os aspectos mais simples, como a língua materna, até os mais complexos, como as festas e as danças reproduzidas na América.

Na terceira parte do livro, Brasil e África: um panorama atual, o autor busca demonstrar como essa, que foi a maior migração forçada da história da humanidade, impactou os dois lados do Atlântico. No Brasil, o legado cultural africano foi determinante para a formação do povo – tema que o autor explora no capítulo 1. Por isso, é impossível conhecer a construção social, cultural e política brasileira nos dias atuais se ignoramos a história da presença africana em nosso país. O argumento de D’Amorim é elaborado no sentido de salientar a importância de reconhecermos que os traços mais sutis, por vezes imperceptíveis de tão enraizados na sociedade brasileira, são os que muitas vezes demonstram o quão importante são esses traços da história e das culturas africanas. Nesse esforço, portanto, o autor versará sobre questões relacionadas à presença dessas influências culturais africanas na culinária, na língua, nas músicas, nas danças e nas expressões religiosas, por exemplo. Ampliando sua análise, considerando não somente as expressões materiais que integram a cultura brasileira, mas também elementos da cultura imaterial. D’Amorim relativiza a própria ideia de uma cultura brasileira, pois, para ele, as trocas e as conexões culturais constituídas ao longo da história fazem com que todas as contribuições assimiladas durante esse processo histórico integrem e elaborem a complexidade cultural do nosso país.

No segundo capítulo, dedicado ao fim da escravidão no Brasil, Eduardo D’Amorim escreve sobre as dificuldades enfrentadas pelos homens e pelas mulheres escravizados para inserirem-se na sociedade brasileira, especialmente em meio às profundas mudanças políticas, economias e sociais de fins do século XIX. Posturas racistas perduravam no senso comum e em atitudes concretas e cotidianas, e constituía-se em exclusão, que se materializava na ausência de políticas públicas que pudessem alterar as condições da população afrodescendente brasileira.

Nos últimos dois capítulos, o autor realiza grande explanação sobre as condições do continente africano nos séculos XX e XXI. Analisa desde o impacto da diáspora, passando pela modernidade e pelo imperialismo na África, e também pelas lutas de independência que agitaram o mundo, especialmente na segunda metade dos novecentos. As tensões e os conflitos desses processos (neocolonialismo e descolonialismo) são abordados pelo autor como responsáveis pelas fragilidades políticas e econômicas do continente, os quais acabam por impactar todo o planeta. Observa o continente e sua riqueza, recusando interpretações monolíticas, mas atentando para a pluralidade e a importância única da região. Assim, D’Amorim ressalta as condições atuais das Áfricas, que em meio a grandes dificuldades, mantêm uma considerável aproximação com a América Latina e demais regiões do mundo. Com a abordagem do autor, podemos compreender que as Áfricas, muito mais que um continente selvagem e incivilizado, são um lugar especialmente desenvolvido e com práticas culturais riquíssimas.

Eduardo D’Amorim obteve grande êxito na sua proposta de construir um amplo panorama das culturas africanas e do modo como essas culturas resistiram ao brutal processo imposto pela diáspora forçada pela escravidão moderna, integrando-se ao cotidiano brasileiro. O autor consegue demonstrar a riqueza da história e da cultura africana de maneira muito clara e com profunda qualidade técnica.

África e Brasil. História e Cultura é um livro essencial para o ambiente escolar, mas consegue com sucesso ultrapassar tal fronteira, sendo indispensável também para todos os leitores, não somente por tratar de temática importantíssima mas sobretudo por fazer isso com qualidade técnica, eficiência e sensibilidade.

Notas

1 HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008. 680 p.

2 SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil afrodescendente. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 408 p.


Resenhista

Vitor Leandro Souza – Professor-tutor no Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB/UFF). Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é Doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).


Referências desta Resenha

D’AMORIM, Eduardo. África e Brasil. História e Cultura. São Paulo: FTD, 2016. Resenha de: SOUZA, Vitor Leandro. Não é somente sobre a África, é sobre todos nós! Escrita da História, v.5, n.9, p.292-298, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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