É com grande satisfação que apresentamos o dossiê África & América. Os artigos aqui reunidos dizem respeito a diferentes temas, épocas e sociedades cujo entendimento se remete aos processos históricos inaugurados com a expansão ultramarina da época moderna. Mais especificamente, são textos que procuram avaliar, por meio da revisão de conceitos e de enfoques, o significado histórico dos encontros e dos confrontos entre sociedades européias e não européias, ocorridos nas dimensões do mundo atlântico ou um pouco para além dele. Guardadas as especificidades de cada um dos artigos, é possível articular os textos entre si e demarcá-los em dois conjuntos: um primeiro relativo ao período que vai do século XVI à primeira metade do século XIX, e o segundo, mais contemporâneo, tratando de questões relativas às dinâmicas próprias ao século XX. Em linhas gerais, essa divisão corresponde a marcos da história do mundo atlântico e das interações entre suas frações americanas, africanas e européias.
O primeiro bloco de artigos encontra-se demarcado pela época em que se desenvolveram as características do Atlântico enquanto unidade histórica e pela discussão de diferentes aspectos das sociedades envolvidas diretamente ou indiretamente com o comércio de produtos variados mas, sobretudo de escravos. Deslocando-se de um lado ao outro do oceano, alguns dos textos focalizam a movimentação de contextos portuários, exemplificados aqui na história da cidade de Cartagena, na América hispânica dos inícios do Seiscentos (estudada no artigo de Paola Vargas Arana), em Luanda e Benguela na África portuguesa entre os séculos XVIII e XIX (no texto de Roquinaldo Ferreira) e nos acontecimentos que envolveram o porto de Bonny, na baia de Biafra, área de influência dos britânicos em meados do dezenove (tratados por Alexsander Gebara). Outros dois artigos (os de Catarina Madeira Santos e de Alexandre Marcussi) consideram processos ocorridos em zonas localizadas mais ao interior, na hinterlândia de regiões africanas ou americanas atingidas de formas variadas pelos acontecimentos mais gerais, revelando que, historicamente, o Atlântico não se limitava às suas bordas. Contemplam a inserção de sociedades que ganharam um novo dinamismo, uma vez que foram transformadas não só pelos negócios transoceânicos e pelos fluxos de mercadorias, como se viram envolvidas na ampla circulação de idiomas, de culturas, de práticas e crenças religiosas, ideologias e visões de mundo veiculadas no ir e vir constante de agentes históricos. Entre eles, portugueses, espanhóis, cristãos novos, judeus, flamengos, bem como populações hifenizadas e mestiças, mas principalmente africanos, de várias nacionalidades e etnias que passaram a constituir o segmento mais peculiar e sui generis da nova configuração: trazidos como escravizados para as Américas, conformariam seus maiores contingentes populacionais, modificando substancialmente o perfil destas sociedades. Ao tratar de marcas distintivas e de movimentos singulares, os artigos reunidos neste primeiro bloco contemplam fenômenos complexos que dizem respeito a mestiçagens e a bricolagens, ocasionadas, de um lado, pelos deslocamentos humanos, e de outro, por processos de apropriações e ressignificações culturais, destacando-se entre eles os que se deram no mundo das crenças religiosas que se encontram, dialogam ou simplesmente concorrem entre si. Ou ainda, contemplando as inferências da escrita nas relações de poder em sociedades não européias.
Escritos em sua maioria por jovens historiadores comprometidos com a pesquisa histórica, realizada nos arquivos de Luanda, de Lisboa, de Cartagena, da Itália e do Brasil, os textos apresentam outro elemento em comum, significativo para o aprofundamento historiográfico de temas complexos ainda insuficientemente explorados: a revisão de conceitos e de enfoques necessária à sua abordagem. Roquinaldo Ferreira, africanista e professor da Universidade de Virginia, em suas “Ilhas crioulas”, historiciza o conceito de mestiçagem a partir das singularidades que se evidenciaram em Angola e em Benguela, na busca de se aproximar da complexidade implícita ao que Richard Price chamou da “magia da crioulização”. Já a historiadora portuguesa Catarina Madeira Santos, vinculada aos centros de pesquisa de Lisboa e de Paris, num viés profundamente compromissado com a história africana, reconsidera a introdução e a apropriação da escrita num sentido latente de poder e na perspectiva dos Ndembos do norte de Angola. Avalia a configuração que esse aparato deu às interações dos mesmos com os portugueses de Luanda, veiculado nos tratados de vassalagem e na correspondência entre eles, e às que os mesmos rearticulam com as demais chefaturas africanas da região. A abordagem escolhida pela historiadora pressupõe a impossibilidade de dicotomizar sociedades ágrafas e letradas, sociedades com Estado e sem Estado, mas principalmente, de pensar tais processos a partir da aceitação a priori de um esquematismo conceitual rígido. Para dar ênfase à história não dos portugueses em Angola, mas das relações que os Ndembos constroem com os mesmos e com os demais poderes da região, seu texto se desenvolve precisamente escapando de obrigatoriedades historiográficas e acadêmicas.
De um outro ponto deste mundo transoceânico, o artigo de Paola Vargas Arana, mestre do Centro de Estudos Asiáticos e Africanos do Colégio do México, e atualmente professora de História da África em Salvador, demonstra o profundo envolvimento das sociedades hispânico-americanas com o tráfico atlântico de escravos, ao contemplar o importante porto que foi Cartagena já nos inícios do século XVII, e o escoamento da mão-de-obra africana que daí se fazia em direção às zonas de mineração. O estudo sobre a presença das populações africanas toma como ponto de partida o jesuíta Pedro Claver que desenvolveu seu trabalho de evangelização junto aos desembarcados em Cartagena, trazidos por negreiros portugueses e flamengos, na época da União das Coroas ibéricas. A principal fonte que a autora utiliza – o processo de canonização do jesuíta – lança luz tanto às intenções da Igreja Católica em se reconciliar, por meio do santo, com as populações afrodescendentes, passando pela descrição das estratégias adotadas pelo missionário para a conversão, como também se aproxima, a partir dos depoimentos processuais, do universo mental africano e afro-americano dos que aí viviam, em sua variação étnica e lingüística, chegando aos que intermediavam os mundos em contato, nos desencontros pautados pelas tragédias do tráfico: a figura dos “línguas”, africanos poliglotas identificados e adquiridos pelos padres.
Da mesma forma que o alvo do estudo sobre os Ndembos desloca-se do litoral para o interior e particulariza as mudanças que se operam no âmbito do poder africano, o artigo de Alexandre Marcussi, mestrando do Departamento de História da USP e da Linha de Pesquisa em Escravidão e História Atlântica prioriza as transformações na ótica da reconfiguração de dimensões do religioso, consideradas a partir do processo inquisitorial de Luiza Pinta. Seguindo a tradição historiográfica de estudos sobre os calundus na América portuguesa, sua releitura intrumentaliza-se por um aporte conceitual mais generoso do que a idéia de sincretismo. Finalmente, fechando o primeiro conjunto de textos, a resenha feita por Rosana Gonçalves, também mestranda do Departamento de História e de suas linhas de pesquisa, nos conduz ao estudo recente de António Custódio Gonçalves sobre a história do reino do Kongo e de Angola no período abrangido por este dossiê, analisada com a intenção de reduzir dimensões exógenas e recuperar o dinamismo próprio a estas sociedades.
Avançando no tempo e colocando em perspectiva a figura ambivalente e conflituosa de um dirigente africano em meio a cônsules e mercadores britânicos do golfo de Biafra, o artigo de Alexsander Gebara, doutor e especialista na história das regiões compreendidas no golfo da Guiné, refere-se a um episódio que pode ser visto como marco divisor da história do Atlântico e das sociedades africanas, capaz de flexionar interações seculares havidas entre europeus, africanos e americanos. Trata do contexto decorrente das medidas britânicas de contenção do tráfico de escravos e dos prenúncios de sua política agressiva e intervencionista que irá modificar essencialmente a dinâmica econômica e política de uma ampla região. Apesar da dramaticidade do período anterior, dada pela configuração centrada na escravidão e no seu comércio, afirma Alberto da Costa e Silva que a partir dos eventos dos inícios do século XIX nunca mais o Atlântico será o mesmo. Vale lembrar que este episódio completa atualmente seus duzentos anos, e foi comemorado em Londres com um pedido formal de desculpas, feito pelo primeiro-ministro, diante do enorme comprometimento da Grã-Bretanha no tráfico de escravos.
Como fechamento da problemática geral do dossiê, os dois artigos finais, o de Patrícia Santos Schermann, professora de História da África na Universidade Federal de São Paulo e africanista versada nos temas do islamismo na África Central, e o de Petrônio Domingues, pesquisador e professor da Universidade Federal de Sergipe, indicam que embora o Atlântico já não seja o mesmo com os primórdios do imperialismo, contextos advindos de sua formação histórica repercutiram nas trajetórias tomadas por frações dos continentes americano, africano e europeu e nas interações entre suas partes, podendo atingir tanto um distante Sudão, quanto aproximar as partes americanas numa vertente comum das políticas direcionadas aos afrodescendentes. Em outras palavras, nas primeiras décadas do século XX, seus trabalhos acompanham aspectos de uma história que decorre, direta ou indiretamente, da configuração moldada pela escravidão e por seus efeitos. Retomando o tema da canonização que estivera presente já na América hispânica do século XVII, Patrícia Schermann interpreta um processo similar envolvendo Josephine Bakhita – uma resgatada da escravidão que transitava entre a sociedade italiana e o Sudão central –, interpretado como uma das formas da Igreja em se aproximar dos africanos e de se reconciliar com seu passado escravocrata. De uma santa africana a um jornalista afrodescendente, a figura histórica analisada por Petrônio Domingues é o de um norte-americano que, em viagens ao Brasil e em seus artigos publicados em Chicago, contribuiria para a constituição do mito da nação brasileira como paraíso racial, em contraposição ao que ocorria nos Estados Unidos. Neste sentido, o conceito de democracia racial no geral associado tão somente à figura de Gilberto Freyre e, no mais das vezes destituído de contextualização, ganha historicidade relevante ao se ver atrelado às imagens que se procurava incutir nos negros norte-americanos, oferecendo possibilidades de fuga do “inferno racial” e da política de discriminação legal, em direção ao universo da dissimulação do qual o próprio jornalista havia sentido os efeitos em sua viagem às cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Os artigos que compõem este dossiê foram recebidos em resposta ao chamado que Editores e Comissão Editorial da Revista de História da USP fizeram, em novembro do ano passado, no sentido de compor um número destinado ao tema bastante largo de zonas de contato, pensado este em sua acepção ampla de espaços históricos em que populações, culturas e visões de mundo se encontraram e se transformaram. O título modificado de África & América traduz as características de um primeiro conjunto delineado pela remessa e seleção de textos, expressando possivelmente a atenção que estudos feitos nesta ótica vem ganhando entre a produção histórica. De outra parte, formulado desta maneira, este conjunto de textos vem ao encontro da firme determinação do Departamento de História da FFLCH e de seus Programas de Pós-graduação em História Social e em História Econômica em estimular a formação de pesquisadores e de professores especializados em temas nos quais as histórias das múltiplas frações do Atlântico se conectam. Também como resultado da experiência de um trabalho coletivo, o dossiê só pôde ser concretizado a partir do debate acadêmico promovido pela Linha de Pesquisa Escravidão e História Atlântica e pelo esforço conjunto em restabelecer a prática do diálogo acadêmico, na forma dos seminários promovidos pelos professores Carlos Alberto Ribeiro de Moura Zeron, Maria Helena Pereira Toledo Machado, atual editora da Revista de História, Marina de Mello e Souza, Rafael de Bivar Marquese, e por mim que assino esta apresentação,
Maria Cristina Cortez Wissenbach
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 155, 2006. Acessar publicação original [DR]
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