Em 2022, o MHN completa seu primeiro centenário e o Brasil os 200 anos de sua independência de Portugal, dando curso a um projeto de nação iniciado nas primeiras décadas do século XIX e que segue ainda hoje.
O MHN insere-se nesse projeto, já que há 100 anos comemorava-se o primeiro centenário da Independência, e a criação de um museu de história no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, fazia parte dessas comemorações. A criação dos Anais do Museu Histórico Nacional estava prevista como uma das funções do MHN desde sua fundação, embora o primeiro exemplar dos AMHN seja de 1940.
Os AMHN, apesar de serem uma publicação com colaborações majoritariamente exógenas ao MHN – como uma revista científica deve ser –, refletem preocupações históricas, patrimoniais e museológicas que permeiam as atividades técnicas do MHN, pelo menos em seus aspectos conceituais, como expresso na organização dos dossiês temáticos dos anos de 2021 e 2022.1 Uma dessas preocupações é a releitura de acervos, tendo por norte a noção que os acervos museológicos são polifônicos e que sua riqueza documental reside justamente nessa possibilidade de reinterpretá-los a partir de novas perguntas e de novos olhares. Afinal, a melhor forma de celebrar os 100 anos do MHN é produzindo novos saberes para acervos e objetos tão antigos, o que pode (e deve) contribuir para novas aquisições.
Assim, o presente dossiê Acervos: (re) leituras possíveis organizado por Aline Montenegro (MHN-Ibram), Márcio Rangel (Mast – Unirio) e Rafael Zamorano Bezerra (MHN-Ibram) é dedicado à divulgação de pesquisas sobre objetos e coleções que nos ajudam a escrever histórias do Brasil, que contribuam para outras histórias nacionais, regionais ou locais, identificando silenciamentos e invisibilização, seguindo a trilha de Walter Benjamin2 , ao propor uma leitura a contrapelo, no sentido de trazer à baila agentes e agências subterrâneas nas práticas colecionistas, que fundamentam a ideia de patrimônio nacional.
O texto que abre o dossiê é assinado pela mestre em museologia Ana Lourdes Costa e pelos professores Ivan Coelho de Sá e Bruno Brulon, e tem por base a pesquisa de mestrado de Ana Lourdes, que busca construir uma biografia cultural do vestido de Maria Bonita, hoje, parte do acervo do MHN. O ponto central da biografia, para os autores, é a musealização do vestido, que se dá antes mesmo de sua entrada no museu. Ademais, o artigo apresenta outros aspectos relevantes de vida social do objeto, como as análises de classe e gênero, fundamentais, segundo autores, para o entendimento do processo de musealização do vestido.
O segundo texto é assinado pelo historiador e um dos organizadores do dossiê, Rafael Zamorano Bezerra e sua aluna de iniciação científica da FAPERJ, Fernanda Pinheiro Pereira Silva. O texto, oriundo da pesquisa de IC realizada pela bolsista, analisou as duas principais intervenções arquitetônicas na Casa do Trem, edifício colonial de caráter militar erguido em 1762 e, atualmente, parte do complexo arquitetônico que abriga o MHN. Em 1922, a Casa do Trem foi alterada pelos arquitetos Arquimedes Memória e Francisque Couchet, sendo transformada em um edifício neocolonial para abrigar o Pavilhão das Grandes Indústrias, na ocasião dos preparativos da Exposição do Centenário da Independência. Em 1985, um grande projeto de restauração do edifício foi elaborado, visando o retorno aos contornos coloniais do edifício. Em suas conclusões, o texto mostra como a restauração da Casa do Trem foi elaborada tendo por base a Carta de Veneza de 1964 e como o projeto foi circunstanciado por mudanças que aconteciam na administração do SPHAN no fim dos anos 1980, ainda marcado pela a influência do movimento modernista nos modos de entender e valorizar o patrimônio nacional.
O terceiro texto do dossiê é o artigo da professora de museologia da Unirio, Ludmila Leite Madeira da Costa, e das estudantes de museologia Rayssa Lisbôa França e Rosemere Gomes de Andrade. O texto é um relato de experiência de ensino no âmbito do Curso de Museologia da Unirio e seu desdobramento em ação de extensão universitária. As autoras estudaram os brasões e seus símbolos para além de seu contexto de origem – baseado em elementos da Europa ocidental moderna – trazidos às Américas pelo colonizador. No texto, a Heráldica foi estudada enquanto linguagem visual presente no cotidiano atual da sociedade e, a partir dessa abordagem, conteúdos sobre o tema foram divulgados nas redes sociais, sendo a linguagem Heráldica problematizada a partir de seus usos e aplicação em manifestações culturais brasileiras, como os emblemas e estandartes das escolas de samba do Rio de Janeiro.
O quarto texto do dossiê e assinado pelo historiador e museológo Anderson Pereira Antunes que analisa como os saberes locais contribuíram para a formação das coleções de História Natural reunidas durante algumas das expedições científicas estrangeiras que percorreram o Brasil durante a segunda metade do século XIX. A historiografia recente demonstrou a importância da sociabilidade para a realização destas expedições, destacando o caráter social do trabalho de campo. A partir das interações com as populações locais, os viajantes conseguiam o apoio logístico necessário para a movimentação em regiões pouco conhecidas e reuniam informações importantes sobre os hábitos e habitats de espécies animais e vegetais, incluindo seus usos econômicos e medicinais. Além disso, indígenas e escravizados, dentre outros, contribuíram com a coleta e a preparação dos espécimes que formaram as coleções levadas para museus de História Natural nos Estados Unidos e na Europa, principalmente. Ao longo deste artigo analisaremos exemplos destas contribuições nos livros de viagem publicados por Henry Bates, Alfred Wallace e Louis Agassiz.
Por fim, cabe ressaltar que os textos que compõem o dossiê são constiuídos por diferentes níveis de pesquisa, iniciação científica, mestrado e doutorado, o que mostra a força da produção acadêmica na área do patrimônio e da Museologia e reafirma o lugar dos Anais do MHN como espaço de divulgação de estudos na área dos museus.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Notas
1 Ver chamada pública para dossiês temáticos. Disponível em: https://anaismhn.museus.gov.br/index.php/amhn/announcement/view/13 Acesso em: 24 de jun. 2021.
2 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. V. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 22-23.
Organizadores
Aline Montenegro Magalhães – Historiadora, doutora em história (PPGHIS/UFRJ), com pesquisa de pós-doutorado em museologia pelo PPGPMUS/UNIRIO-MAST. Pesquisadora no Museu Histórico Nacional, docente credenciada no PROFHISTÓRIA/UNIRIO e professora do MBA em Gestão de Museus UCAM/ABGC/MAR. E-mail: aline.magalhaes@museus.gov.br. E- mail: aline.magalhaes@museus.gov.br
Márcio Rangel – Museólogo, doutor em História das Ciências (COC/FIOCRUZ) Professor da Pós-graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/Museu de Astronomia e Ciências Afins (Unirio/Mast) e diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). E-mail : marciorangel@mast.br
Rafael Zamorano Bezerra – Historiador, doutor em história (PPGHIS/UFRJ), historiador do Museu Histórico Nacional, professor e orientador nos cursos ProfHistória/Unirio e PPGPAT/COC/FIOCRUZ. E-mail: rafael.bezerra@museus.gov.br . Bolsista pós-doutorado CNPq, PDJ. E- mail: rafael.bezerra@iphan.gov.br
Referências desta apresentação
MAGALHÃES, Aline Montenegro; RANGEL, Márcio; BEZERRA, Rafael Zamorano. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 55, 1-4, 2021. Acessar publicação original [DR]
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