AQUINO, Julio Groppa; CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Abecedário: educação da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2009. Resenha de: MENEZES, Antonio Basilio Novaes Thomaz de. Abecedário: educação da diferença. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.35 n.2, p.323-326 maio/ago., 2010.
Vocábulo da língua portuguesa, abecedário significa alfabeto: um “conjunto de signos gráficos, letras e diacríticos utilizados para representar os sons de uma língua”, ou, ainda, na forma vernacular, “qualquer sistema de signo gráficos, visuais ou sonoros”, de acordo com o Dicionário Larrousse. Isto por si só bastaria para enunciar todo o conteúdo pressuposto no título, não fosse o livro um esboço da construção coletiva e individual de todo um vocabulário inerente àquilo que lhe complementa o significado com a expressão educação da diferença. Entretanto, não se trata aqui de mais uma simples coletânea que reúne textos de diversos autores ou uma coleção de vocábulos e temas dispersos agrupados num volume. Trata-se, antes de tudo, de uma obra, um constructo que traduz, na decomposição da ordem vocabular, a composição da multiplicidade, dos múltiplos significados dos verbetes e do próprio léxico, daquilo que emerge cifrado como a composição de muitas vozes, no desafio de uma nova forma de pensar a educação.
A referência à forma típica dos dicionários, inclusive daqueles específicos à Filosofia e à Educação, revela uma inversão do significado do termo abecedário, subvertendo o estatuto estabelecido na sua própria lógica de ordenação. Heterogênea e heterotópica, a série alfabética das noções, dos conceitos e dos temas rabisca as primeiras letras daquilo que se experimenta como educação da diferença frente à concepção modal da educação vigente.
A capa negra com letras brancas apresenta o Abecedário na forma invertida de um espelho refletido nas letras negras das suas páginas brancas. Seus detalhes gráficos em cinza e em vermelho apontam para a norma e seu avesso, seja num retângulo cinza destacando o prefixo ab, neste caso prefixo da ausência na ordem do alfabeto, seja nas letras em vermelho que singularizam a educação da diferença. Isto que, na última capa às costas do volume, já prenuncia “33 autores imaginando e fabulando em 46 verbetes, as questões: O que é a educação? O que é a pedagogia? O que é pensar?”.
Urdidura em rede, a coletânea dos temas que lhe servem de conteúdo desenha um labirinto cujo descentramento das diferentes formulações constitui um ponto de fuga no quadro dos postulados teóricos. Neste, o pensamento se lança livre, formando constelações de noções e conceitos em torno do que se pode chamar de um plano projetivo da educação pela diferença. As questões apontam marcos de referência, sem qualquer pressuposto de identidade, numa cartografia de imaginações e fabulações que descrevem a leitura como um espaço da produção do pensamento.
A leitura do Abecedário constitui um desafio para o leitor que caminha pelas primeiras letras e se introduz na dinâmica de construção do pensamento. O livro produz novas séries de sentidos, configurados no uso dos parênteses, por exemplo, em verbetes como: “(o) Fora”, “(o) Que é a Filosofia?”, “(o) Que é a Pedagogia?”, “(o) X da questão”, que correspondem às diferentes formas de subversão do código ou de elisão da ordem na gramática do significado em verbetes como “Regimento (escolar)”, “(des)Territorialização” ou “(trans)Valoriz- ação do magistério”.
O livro exige do leitor colocar-se na condição da criança que, frente ao fascínio quase mágico das letras, põe-se a brincar com elas, não fossem elas imaginações e fabulações experimentadas como conceitos nas diferentes dimensões do seu conteúdo. O Abecedário tem como precondição de leitura a liberdade de pensar.
Universo tridimensional das constelações de noções e conceitos que lhe dão volume à perspectiva da educação da diferença, a obra compõe as peças de um quebra-cabeça nos seus diferentes modos de montar. Tomada sob o eixo tríplice das suas questões centrais, a perspectiva da diferença é aquela do múltiplo, daquilo que se lhe apresenta como superfície e se lhe configura como dado, expectativa ou probabilidade de um significado. O Abecedário resiste à redução dos cânones, incapsulável na sua totalidade fragmentada.
Muitas são as matrizes encontradas na construção da obra: Filosofia, Literatura, Semiótica, cinema… Desde a inspiração do título, no “Abécédaire” de Deleuze, cujo pensamento perpassa a obra, até as vozes recorrentes de Nietzsche, Platão, Bergson, Foucault, Espinosa, que ressoam em algumas páginas; bem como nas passagens ocasionais por Kafka, Barthes, Pessoa, Borges, Pasolini e Artaud, apenas para citar algumas notas; o livro mostra a sua originalidade na dodecafonia da sua composição. Antes, daquilo que num primeiro movimento nos parece inaudível.
Uma após a outra as letras se sucedem no Abecedário, e os verbetes multiplicam-se, incitando as imaginações às novas fabulações. Há uma superfície na qual se organizam os enunciados dispersos. Auto-organização da vida, da matéria do pensamento… Há, na forma de interação das partículas, uma correspondência entre os diferentes níveis de organização da matéria e aqueles que são possíveis na leitura do livro.
As questões centrais do livro (“O que é a educação?”; “O que é a pedagogia?”; “O que é pensar?”) divisam o horizonte de um enquadramento teórico, matriz histórica do pensamento educacional e fundamento da sua concepção moderna. As perguntas pelo significado da Educação e da Pedagogia como propostas do seu conteúdo remetem à distinção destas em fins do século XIX e início do século XX, tal como aparece, por exemplo, em 1885, no “Cours de pédagogie theórique et pratique”, de Gabriel Compayré. Deste modo, a pergunta pelo significado de ambas recoloca a questão do caráter da Educação como formação e da prática que define o ensino como ato pedagógico na sua acepção genérica.
De outro modo, na esteira da tradição consolidada, a divisa da educação da diferença produz a ruptura com a épistèmé moderna, quando no seu próprio quadro de definições coloca a pergunta pelo significado do pensar: “O que é pensar?”. A pergunta se põe à própria condição do pensamento como exercício e de invenção da Educação como esforço de criação do novo. Ela parte da existência do pensamento na Arte, na Ciência e na Filosofia, possibilitando, por um lado, interferências, repercussões e ressonâncias; ressaltando, por outro lado, as especificidades dos saberes, suas questões e condições próprias. Exercício do pensamento… Jogo de adivinha… Experimento mental… Afinal… O que o livro tem a dizer?
A composição da obra corresponde às variações possíveis em torno da leitura e aproximações do que se pensa diferença. Fragmentos da criação de um mosaico, totalidade fragmentada, possibilidades de séries e séries de possibilidades, o Abecedário se define nos modos de usar.
Lê-lo é colocar-se sob a perspectiva da exterioridade, do exercício do pensar a educação da diferença, a partir dos encontros, das conexões, das intercessões, das articulações e dos agenciamentos, tanto no domínio educacional quanto em conceitos, noções e elementos de outros domínios.
A leitura constitui-se num jogo probabilístico; dentre muitos, uma possibilidade de se estabelecer uma gramática própria ao Abecedário, a partir das suas redes de relações. Estas que relacionam os conceitos aos vocábulos do pensamento; as áreas de vizinhança aos outros domínios do saber; os substantivos à produção da materialidade do processo; as adjetivações à expressão das especificidades, às aproximações; e, por fim, os próprios verbos, a todo o processo da criação. Assim, a gramática fragmentada articula na forma da sintaxe vocabular a instância da criação de novos significados, assinalados em verbetes como “Rizoma”, cujo conceito aponta para o duplo aspecto do modelo e decalque transcendente, da configuração da identidade simultânea ao processo imanente da produção da diferença e da singularidade no domínio educacional.
Paralelo aos conceitos, a mesma gramática permite áreas de vizinhança nas quais as intercessões reverberam nos verbetes, a exemplo de “Plano” e “Zero”, oriundos de outros domínios, estabelecidos numa nova perspectiva, em torno de problemas específicos postos em relações topológicas e de variação de posições. Ei-los então, os conceitos de “Plano” e “Zero”, que atravessam o domínio da educação naquilo que concerne à prática e à vivência.
De outro modo, verbetes como “Sala de aula”, “Universidade”, “Máquina”, “Xerox” denunciam os substantivos na materialidade das práticas, daquilo que se faz por materializar a produção de objetos ou de um sistema d objetos que compõem o quadro da Educação. Emolduramento de uma percepção da realidade, aos substantivos se seguem as adjetivações como forma de sintaxe do que se apresenta e decorre da materialidade dos objetos em sistema, isto é, os referenciais da identidade avaliados na superfície em que se encontram, a exemplo dos verbetes “Sociedade de controle”, “Tecnologia educacional”, “Metodologia do ensino”, “Formação de professores”, “Inclusão escolar” etc.
A gramática fragmentada dos verbetes possibilita ainda uma leitura na direção daquilo que o Abecedário indica como “Zona de variação contínua”, de diferentes forças que interagem, constituem e atravessam o espaço da produção. Outros verbetes, como “Univocidade do ser”, “Geologia da moral” e “Esquizoanálise” são expressão de agenciamentos e conexões sobre aquilo que o pensamento suscita na prática educacional, por meio de novas aproximações, que permitem vislumbrar a perspectiva da diferença.
Assim, na diferença e na repetição dos verbetes, encontram-se os verbos “Aprender”, “Brincar”, “Ensinar”, fragmentos centrais nesta gramática de leitura processos afirmativos que caracterizam a singularidade no cerne da criação, daquilo que se reúne em torno da educação da diferença: devir.
Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes – Editor da Revista Saberes: Filosofia e Educação. É chefe do Departamento de Filosofia, professor do Programa do Pós-Graduação em Educação, membro do Grupo de Pesquisa Fundamentos da Educação e Práticas Culturais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: gpfe@ufrnet.br
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