A Wolf in the City: Tyranny and the Tyrant in Plato’s Republic – ARRUZZA (RA)
ARRUZZA, C. A Wolf in the City: Tyranny and the Tyrant in Plato’s Republic. Oxford: Oxford University Press, 2019. Resenha de: MAIA, Rosane de Almeida. Revista Archai, Brasília, n.30, p 1-15, 2020
Diante de tudo que foi visto, conclui-se que a natureza filosófica corrupta “é um perigo para a cidade”(Arruzza, 2019, p. 258). Sócrates parece estar advertindo Atenas sobre os riscos que rondam a cidade que se descuida do ambiente adequado para que a filosofia floresça. Portanto, abrir mão do comprometimento político revela-se moralmente indesculpável para a cidade justa. Onde quer que se encontrem as circunstâncias apropriadas, os filósofos devem aproveitar a sorte (kairos) para salvar a cidade.
Assim é encerrado A Wolf in the City: Tyranny and the Tyrant in Plato’s Republic (“Um Lobo na Cidade: Tirania e Tirano na República de Platão”), livro de Cinzia Arruzza, recém-lançado pela Oxford Press. A autora já é conhecida no Brasil, uma vez que publicou, em 2019, “Feminismo para os 99% – um manifesto”em coautoria com Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser.
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que Arruzza demonstra na investigação, e na exposição, um didatismo indispensável tanto para estudiosos do período grego clássico, como para o público em geral. Toma a mão de leitores para conduzir nesse árduo caminho, não se importando quão complexa possa ser a argumentação e não se perdendo no emaranhado prodigioso de argumentos contraditórios e na polissemia desencadeada pela leitura dos diálogos platônicos. Em especial da República, que, num primeiro momento, pode frustrar a boa vontade e o interesse de estudantes e curiosos recém-chegados no mundo platônico.
I
Já na introdução, Arruzza aponta a principal questão da milenar exegese da República de Platão, obra notável pelo difícil enquadramento em nossas estreitas áreas de conhecimento. O problema consiste na disputa em torno da definição de seu escopo. Os intérpretes apontam ora a virtude da justiça, ora as formas de governo como o principal objetivo da República. Seguindo as pistas de Próclo1 (séc. V d.C.), Arruzza afirma que o método apropriado de interpretação deve levar em conta forma, conteúdo, componentes dramatúrgicos e narrativos que convergem para a articulação em um único escopo. A solução para o dilema consiste em harmonizar os topoi, considerando que a discussão sobre a justiça na alma e a forma justa de governo não permite separação, nem ordenamento hierárquico (entre objetivos primários e acessórios), na medida em que não há distinção entre a justiça no indivíduo, na vida privada ou na cidade. Para Arruzza, a ressalva de Próclo expõe a tradição interpretativa do diálogo, que sempre se notabilizou pelas querelas e adesões ferrenhas aos polos considerados antagônicos. Como Vegetti (2010), a autora considera que a melhor maneira de se vislumbrar a unidade do escopo não é reduzir sua complexidade, mas adquirir uma compreensão plena das conexões entre seus tópicos. A psicologia moral, que recentemente tem se tornado o objeto de investigação preferido da academia, não pode ser facilmente desconectada da política. Para Arruzza, a República nos oferece uma conversa filosófica cuja preocupação não é só com as vicissitudes da alma individual, mas com a alma do povo que vive na comunidade política sob a mesma constituição. A dinâmica estabelecida entre alma e cidade é, portanto, o seu leitmotiv (p. 4). Não se trata apenas de considerar que cidade e alma são análogas, mas que estão inseridas em uma relação recíproca de determinação causal, em que os contextos sociopolítico e cultural moldam tipos específicos de alma e que, vice versa, as virtudes e vícios dos cidadãos definem as feições da cidade. Seria inócuo o esforço de compreender o que anda errado na política da cidade corrupta sem perscrutar sua degeneração moral, como também os efeitos desses desvios sobre a alma do indivíduo.
Na conclusão, Arruzza busca tirar as consequências profundas, que tanto incomodam a sensibilidade moderna, sobre a tirania presente no diálogo República. Até onde diz respeito ao argumento político, a análise de Arruzza reposiciona sutilmente Platão entre aqueles abertamente antidemocráticos no panteão dos teóricos políticos, porém destacando a singularidade e a complexidade de sua análise. Ao mesmo tempo, abstêm-se de caricaturá-lo como um pensador político de um suposto protototalitarismo.
É importante ressaltar que, para Arruzza, a dimensão antidemocrática do logos político de Platão não significa que os leitores democratas contemporâneos não tenham nada a aprender com a crítica platônica da democracia. As lições relevantes podem ser alçadas de uma interpretação totalizante. Se o objetivo da investigação sobre a tirania é evidenciar a corrupção moral dos jovens dotados intelectualmente e inseridos em um contexto democrático, tanto como os riscos de perversão do talento filosófico no âmago da personalidade tirânica, então Platão estaria alertando sobre a tensa relação entre o objetivo de uma vida filosófica frente à realidade política da cidade corrupta, na qual a vida filosófica parece estar destinada a se realizar. Portanto, clama pela necessidade de uma sintonia entre o ideal do governo filosófico (em termos da Kallipolis desenhada no livro V) e a motivação para perseguir o bem comum naqueles que venham adquirir o poder político.
II
Ao combinar a análise histórica contextualizada com o exame dos argumentos filosóficos, Arruzza busca investigar os discursos políticos associados à tirania (e democracia) e à natureza e dinâmica da alma do tirano. Não visa, contudo, traçar um panorama da teoria política nos diálogos platônicos, 2 nem tampouco adentrar nos problemas concernentes às abordagens ditas evolucionistas ou unitaristas do corpus platônico, embora, quando preciso, traga em auxílio passagens do Górgias, Banquete e Fedro para lidar com as
relações entre eros, oratória e política, por exemplo. Arruzza mostra-se interessada no debate contemporâneo sobre a suposta teoria política da democracia em Platão somente ao constatar que, nos anos recentes, um grande número de publicações possibilitaram leituras pouco matizadas. É necessário desafiar a visão comum de que a República articula uma crítica aos princípios e às práticas democráticas do séculos V e IV a.C. em um projeto antidemocrático. À luz de tropos literários que o filósofo mobiliza (e da função que exercem no discurso político democrático), a autora pode concluir que a crítica de Platão não é um mero julgamento dos governantes tirânicos em voga mas, para além disso, é a chave principal para se entender a democracia. O tirano na República é, por seu turno, a figura teorética que corresponde a uma forma específica de liderança democrática desenvolvida em Atenas no último quartel do século quinto do período clássico.
Arruzza se detém, assim, na questão controversa acerca da identidade da “figura histórica”do tirano e do governante, em Platão. Contra a suposição de que a matéria prima para sua representação sejam tiranos famosos da história grega, a autora enfatiza os elementos convencionais da descrição de Platão e mostra a apropriação dessas caracterizações pré-existentes na literatura grega antiga. Considera que a adoção desse tropos literário reflete a estratégia argumentativa de Platão para o desfecho: a tirania é a derivação natural da democracia, ao invés de seu polo oposto (p. 9). Ao investigar a dimensão histórica desse enunciado, advoga que a principal inspiração para a representação do tirano em Platão não é o tirano real, a exemplo do jovem Dionísio de Siracusa, mas sim um tipo específico de líder democrático oportunista. Desse ponto de vista, o diagnóstico platônico do tirano propicia a conspícua intervenção de Platão no debate sobre as transformações em curso na relação do líder político com o demos na crise da democracia nas últimas décadas do séc. V a.C. Esta transformação vista em perspectiva, tal como o faz a República, indica que a democracia “gera”a tirania. Recorrendo à terminologia botânica, Platão pode explicar essa decorrência inexorável vis-à-vis a degeneração dos outros regimes de governo e avançar para um ponto delicado
concernente ao exercício da democracia ateniense: “o demos é o pai da tirania”(p. 117). Assim, chama a atenção para duas questões igualmente polêmicas: 1) os efeitos corruptores dos mecanismos institucionais da democracia e das ações coletivas do demos quando atua como um corpo soberano; 2) a similaridade entre os apetites naturais do demos e de seus líderes políticos, uma vez que a figura do tirano encarna (e individualiza) características fundamentais do demos enquanto corpo coletivo político.
Dadas essas questões gerais, passaremos a destacar alguns pontos específicos, que consideramos pertinentes para a reflexão sobre tirania no debate contemporâneo.
III
Arruzza apresenta o tropos literário que se dedica à ti rania na Antiguidade Clássica. Nesse contexto, examina o papel que a literatura tirânica e antitirânica tivera para o propósito de oferecer ao cidadão democrata um espelho invertido, no qual é possível contemplar a prática democrática. A representação da tirania, odiada e altamente estilizada, passa a ter uma relevância crescente para a autocompreensão democrática da pólis. Nas Vespas, Aristófanes parodia a obsessão da Atenas democrática com a tirania em uma fala mordaz proferida por um Bdelicléon exasperado:
Oh, tudo é “tirania”ou “conspiração”para você, não importa se a acusação é um ato grande ou pequeno! Pelos últimos cinquenta anos eu não havia escutado a palavra “tirania”, e agora ela é mais barata do que peixe salgado, e seu nome é escarrado de boca em boca no mercado. (Ar. V. 488-492; Arruzza, 2019, p. 21)
Nessa representação discursiva, emergem questões inquietantes (p. 9): apropriação privada dos bens comuns da pólis, cerceamento da liberdade 3 desfrutada entre iguais (homoioi), abolição da liberdade de fala e da igualdade perante a lei (isonomia, isegoria e isokratia), falta de moderação, violência excessiva e arbitrária, excessos sexuais, impiedade, e falta generalizada de medida, ou de controle (sophronein) – lembremos do preceito apolíneo em Delfos, “nada em excesso”. Ao constatar os riscos envolvidos, seria suportável para o cidadão ateniense as perdas de conquistas históricas?
De uma maneira paradoxal, concomitante a essa contraposição, o poder crescente do demos ateniense e a dominação imperialista de Atenas sobre as demais pólis gregas seriam ambos tachados como tirânicos, não apenas pela oposição antidemocrática e pela propaganda pró-Esparta, mas também por lideranças democratas e poetas. Considere-se a louvação à igualdade política e à liberdade individual e coletiva nas tragédias de Ésquilo, a prosa de Heródoto e oratória de Péricles, Protágoras e Demóstenes, dentre outros exemplos detalhados pela autora (ver cap. 1). A complexidade da caracterização da tirania e dos tiranos – e sua relevância para a vida institucional e política de Atenas – é o pano de fundo para a intervenção de Platão no debate que se travava, envolvendo poetas, tragediógrafos, comediógrafos, historiadores, oradores e filósofos. O tema da usurpação de direitos e benefícios pertencentes a todos os cidadãos no regime democrático incide sobre a avaliação da tirania. De outro lado, destaca-se simultaneamente a apreciação da hybris ilimitada do tirano, que se eleva acima dos demais cidadãos, agindo de forma possessiva e f ascinante diante do poder absoluto e irrestrito. Como apontado por Arruzza, vislumbram-se traços desse fascínio em Tucídides e Aristófanes, como também na ideia de felicidade nas falas de Polo, Cálicles e Trasímaco no Górgias e na República de Platão, com seus ecos em Xenofonte. Enquanto o tirano é odiado e rejeitado como estranho à pólis democrática e à sua moralidade, a sua representação amalgama desejos ambíguos, refletidos na ideia de suprema felicidade desfrutada em virtude de sua irrestrita liberdade e acesso à riqueza, despertando o comportamento mimético do demos. Ironicamente, a ambivalência arcaica de evasão e devotamento, de pavor e encanto, torna-se reflexiva. 4
As propriedades do tirano descritas nos livros VII a IX da República decorrem dessa discussão pública, em que tal imagem aparece em toda a eloquência de Platão: é ganancioso, licencioso, violento, intemperante e, ainda, um “erotomaníaco sem regras”(p. 14). Além do mais, explora o demos, mata e exila todas as pessoas virtuosas e proeminentes da cidade, rouba a propriedade da cidade e dos cidadãos, constantemente exalta guerras, vive em um isolamento paranoico e eventualmente devora a cidade como um animal selvagem a sua presa. Enquanto se revela enganoso tentar identificar o tirano de Platão com um político ateniense qualquer, alguns de seus traços fazem alusão aos políticos oportunistas conhecidos – em particular Alcibíades, quem, alternadamente, defendeu a democracia, flertou com a oligarquia e aspirou ao poder absoluto, tudo em conjunção com as voláteis circunstâncias. Arruzza indaga se, para os intérpretes, o tratamento de Platão ao tirano seria, sob certa extensão, um mero documento histórico que carrega uma condenação ao tirano real em seu contexto histórico, munido de referências aos textos que circulavam na época. Contudo, para Arruzza, tais leituras terminam por negligenciar o significado da mobilização que Platão promove desse acervo público contra a tirania. Assim, a adoção de tropoi da literatura convencional teria uma intenção argumentativa precisa, voltada para uma função precípua de autocompreensão ateniense. O tratamento dado à tirania não seria um ataque subtextual contra essa liderança histórica, mas uma rigorosa reflexão teorética acerca de sua natureza e, principalmente, uma intromissão no debate concernente à transformação da relação política entre líder e demos em curso.
IV
Qual o sentido de se definir o demos como tirânico? Essa é uma das questões mais instigantes da leitura de Arruzza. Inicialmente, a autora considera que essa identificação expressa, de um lado, a ausência de um governante acima do demos e, de outro, a concentração do poder decisório em poucas mãos – uma concepção expressa, por exemplo, em Isócrates (p. 115). Seria lógico que essa identificação ocorresse no sentido de que a coletividade cidadã compartilha o poder “absoluto”, riqueza e liberdade desfrutados pelo tirano. Obviamente, o aspecto negativo dessa associação (demos-tirano) coexiste com o positivo: na literatura antidemocrática, a tirania do demos é entendida como o setor pobre da população que dominaria a elite democrática. Veja-se como exemplo disso, entre outros, A Constituição dos Atenienses de Pseudo-Xenofonte. Porém, a acusação tomada como parte da propaganda antidemocrática deve ser claramente diferenciada de um mero elogio do despotismo, conforme encontrado em Aristófanes (p. 37). Os aspectos contraditórios não se encerram aqui. Tão polêmica quanto essa questão é a identificação de uma suposta excepcionalidade que legitimaria os atos tirânicos. As representações trágicas do tirano partilham de elementos semelhantes daquelas histórias de Heródoto, cujas descrições como monstros morais são amplamente difundidas pela doxa da cidade. Excesso aparece de forma transversal: excesso de ganância, de licenciosidade, de arrogância, de força, de erotismo. Essa natureza excessiva do tirano seria motivo de uma disrupção na ordem da pólis, revirando as normas de cabeça pra baixo, rompendo as convenções, pervertendo os costumes tradicionais e problematiz ando as fronteiras entre o divino e humano. Sendo o tirano (encenado nas tragédias do séc. V e IV a.C.) aquele que condensava características opostas ao modelo dominante de uma pessoa sábia e livre, ele teria se tornado um bode expiatório (p. 38), ou seja, um ídolo polêmico que incorpora tudo que a pólis rejeita como diferente e negativo. Um homem conciliado com a besta fera – o lobo 5 – e que ameaça devorar a cidade inteira.
Daí, mais outras propriedades dos tiranos são extraídas das narrativas biográficas, em especial nas tragédias: bestialidade, impiedade, hybris, paranomia (transgressão às leis e costumes) e eros excessivo. Antes de se ater ao erotismo enfatizado na República, Arruzza adiciona inúmeras referências literárias. Assim, a conexão entre o pode r tirânico e eros mostra-se mais compreensível à medida que se considera eros, na Grécia Clássica, como a uma categoria política de máxima relevância. Nesse contexto, eros pode evidenciar a origem de uma matriz de diferentes paixões – de ambição até patriotismo – e ser conceituado ao longo de um continuum que se estende do amor à cidade ao amor entre cidadãos, passando pela licenciosidade sexual dos tiranos. As características negativas revelariam a interface com os aspectos valorados positivamente, notadamente a capacidade intelectual (“simply put, the tyrant is no dummy”p. 39), ao que Arruzza irá dedicar muitas páginas no capítulo 6, porém com pouca capacidade persuasiva.
V
Na segunda parte do livro, Arruzza dedica-se à investigação da psique do tirano, considerando, conforme Platão, as três partes da alma: a parte apetitiva (ephithymetikon), a parte espirituosa (thymoeides) – que poderia ser traduzida por impetuosa – e a parte racional (logistikon). A autora destaca que os comentários acadêmicos sobre a psique do tirano têm focado na parte chamada de apetitiva e em eros (cap. 5). Essas são consideradas as principais motivações das comentadas psicopatologias dos tiranos, sendo que pouco se menciona acerca das partes atribuídas à razão e ao espírito e ao pro cesso que conduz a uma “escravização do espírito”(p. 213) no tirano. Sua intenção é problematizar esse foco nos desejos básicos e enfatizar os papéis específicos desempenhados pelas outras duas partes da alma do tirano, para entender a complexa dinâmica psicológica verificada no homem tirânico descrito no livro IX.
Arruzza expõe a lógica, ou seja o racionale, da definição do tirano como um tipo de homem erótico e apetitivo, concentrando-se na “ganância”(p. 148) como seu predicado singular e extravagante. A análise da natureza da parte apetitiva da alma tirânica é situada no âmago do debate sobre a tripartição da alma, com o objetivo de esclarecer o seu desregramento. Vale dizer, a falta de leis é o objeto de desejo típico do tirano (cap. 4). Para Arruzza, esse esforço de análise responde à controversa questão sobre a natureza do eros do tirano, considerado como “sexual”, contudo não igualado ao apetite. Esse ponto será remetido posteriormente à conexão que será estabelecida entre eros e a relação entre o homem tirânico com o poder político, mediante o exame da politização de eros, do uso disseminado de eros como categoria política na literatura grega entre os séculos V e IV a.C.
Resta ainda destacar a explicação para o título do livro de Arruzza, no capítulo 5. Essa concentra-se no papel que o “espírito”(thymoeides) exerce na alma tirânica, cuja irracionalidade impetuosa impele o tirano para atos danosos que desvelam sua necessidade incontrolável de autoafirmação. É descrita a dinâmica em que o espírito desempenha uma função crucial na configuração da psique própria do tirano, à medida que toda a sua alma vai se “inflamando”(p. 186) pela parte apetitiva (ephithymetikon). De fato, o forte e vivaz espírito do tirano, embora escravizado p ela parte apetitiva, é determinante no seu apego ao poder, ódio e violência. As duas seções do capítulo estão enlaçadas pela metáfora animal. O lobo – animal associado com o tirano na República – é a metáfora, por excelência, para o espírito corrupto do tirano.
A reflexão se encerra com o papel da parte racional (logistikon) do tirano. Com base no livro VI da República, Arruzza explora a hipótese de que o tirano pode ser dotado de uma forte capacidade intelectual. Nessa medida, o tirano é um exemplo da completa perversão moral na pessoa dotada de uma inteligência excepcional. Ademais, examina o tópico do tipo de loucura atribuída ao tirano e sua conexão com as suas respectivas crenças negativas com respeito ao “bem”. Chega-se ao final, não sem uma forte sensação de incômodo, à problemática identificação do tirano e a natureza filosófica extraviada ou, diga-se melhor, o que é próprio de um filósofo desnaturado.
VI
Por fim, o tratamento dispendido por Platão ao tirano (nos livros VII e IX) é o ponto culminante da argumentação sobre a natureza da injustiça e sua relação com a felicidade e infelicidade. No diagnóstico de Platão, tirania é uma forma de regime própria de um tipo específico de homem apetitivo, cujo grau de corrupção da moral é difícil (senão impossível) de estimar dentro de um processo de reforma moral. Sua psicopatologia (p. 142) é exacerbada pelos impactos corruptores que os mecanismos de poder absoluto acarretam sobre a alma. A acusação de Platão à tirania dá-se em duas vertentes: 1) é o regime mais apto para a liderança de um homem dominado pelos mais básicos apetites da alma; e 2) é um regime nutrido por uma doença psíquica específica que afeta o tirano, pressionando-o a realizar as ações mais terríveis. Vê-se aqui a influência recíproca e o efeito da imposição deletéria do “espírito”sobre a alma e a cidade. Para Arruzza, o cenário dramático e algumas referências históricas encontradas no diálogo sugerem que Platão considerava o período como sendo decisivo para a crise política e ética, com consequências duradouras para a Atenas do século IV. A figura do tirano platônico, como um tipo de líder político oportunista capaz de cultivar uma relação instrumental com o demos e de aspirar um poder absoluto visando satisfazer seu hedonismo poderia ser nefasta para a pólis. Aqui cumpre lembrar o paradigmático fato recente da política brasileira, em que a tomada do poder pelo presidente em 2018 foi o desfecho propiciado pela prisão do principal adversário e sua exclusão das eleições majoritárias, com o recurso à chamada Lawfare.
Arruzza destaca que o segundo nível de sua análise é o “político-filosófico”. Nesse âmbito, o diagnóstico do processo de corrupção política e moral articula uma complexa interpretação sobre a natureza do poder político e seus abusos, além da relação entre as condições políticas e sociais e a formação dos tipos de caráteres dos cidadãos. Nesse sentido, o tirano de Platão é o “filho”da democracia ateniense. Como vimos anteriormente, os mecanismos institucionais próprios da democracia conferem uma autoridade suprema ao demos e suas opiniões, em nome da igualdade política. Isso torna os líderes políticos subalternos ao ethos democrático (apetitivo e hedonista, segundo Platão), forçando-os a serem assimilados por estes mecanismos ao invés de assumirem um papel educativo das massas.
Em síntese, o tratamento dado à tirania por Platão combina uma dimensão “contextual”6 e outra “político-filosófica”, que transcendem o contexto histórico propriamente dito. No plano político, Platão equipara a desunião (p. 170) – típica de uma guerra civil que faz combalir a cidade – a uma doença, descrevendo a gênese de cada regime e a natureza conflituosa dos interesses entre as partes da cidade. No plano moral e psicológico, é articulada uma taxonomia “sociopsicológica”(livro VIII) e uma crítica aos princípios morais que regem cada tipo de governo (aristocracia, oligarquia, democracia, tirania), para demonstrar suas insuficiências e revelar a correspondência entre corrupção moral da alma individual e doença política e moral da cidade. A degeneração sociopolítica de cada tipo de regime contribui para moldar os respectivos tipos de personalidade e formas de corrupção moral que, por sua vez, afetam a natureza e a dinâmica dos regimes, em um processo circular. Para Ar ruzza, esse é o porquê de o logos sobre a moral psicológica em Platão não poder ser desatrelada do político, nem vice-versa.
Não seria justo encerrar essa resenha sem aplaudir as qualidades da pesquisadora Arruzza, pelo árduo trabalho de esgrimir contra e a favor das mais diversas interpretações da República e de levantar uma miríade de argumentos de grande envergadura; tudo em prol do rigor acadêmico e da mais genuína honestidade intelectual.
Nota
1 Procl. Rem. Pub. 7.5-11.4.
2 Note-se que pesquisadores contemporâneos estariam especialmente interessad(e)s no debate emoldurado pelas teorias políticas liberais, liberalpluralistas, comunitaristas, marxistas, da justiça, da democracia, de gênero, teoria crítica, dentre tantas outras que refletem sobre o poder nas relações humanas.
3 Liberdade é aqui entendida tanto como estar livre da sujeição a um governo despótico, como livre para exercer o igual direito de participação no governo da cidade.
4 O comportamento mimético despertado nas massas, com toda a sua ambivalência, foi analisado por Horkheimer & Adorno (2002), para decifrar o falso retrato da terrível mímesis no nazismo hitlerista, em que o impulso mimético traz a promessa de felicidade sem poder (p. 157 e 161).
5 “The tyrant is often associated with wild beasts-often with wolves and to a lesser extent with lions – to emphasize his savagery, which turns all his subjects into possible prey. This association is an ancient one: we can find an early example of it in Alcaeus’ anti-tyrannical poetry, where the poet depicts Pittacus of Mytilene as intent on dev ouring the city. This description echoes the Homeric Achilles’ derogatory reference to Agamemnon as a δημοβόρος (a devourer of his own people). In Aeschylus’ Agamemnon, Cassandra calls Aegisthus a “wolf”: Aegisthus personifies a set of tyrannical traits, a s he is a hubristic figure, sleeps in a bed that does not belong to him, and aspires to rule over Argos without having any religious or dynastic justification for his rule (Ag. 1258-1260). Moreover, immediately after the assassination of Agamemnon, the cho rus mentions tyranny twice: first to denounce Aegisthus’ and Clytemnestra’s tyrannical plot, and then to emphatically declare that death is preferable to tyranny (1354-1355 and 1364-1365). The trope of the wolf reappears much later, in Diodorus Siculus’ ac count of an episode from Gelon of Syracuse’s childhood (Diod. Sic. 10.29)”. Arruzza, 2019, p. 39.
6 Para Arruzza, não é precisamente histórica. Note-se, porém, que pode articular um debate específico estimulado por um conjunto de eventos históricos
Referência
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. (2002). Dialectic of Enl ightenment. Philosophical Fragments. Ed. by Gunzelin Schmid Noerr. Trans. by Edmund Jephcott. Stanford, Stanford University Press.
VEGETTI, M. (2010). Um Paradigma no Céu: Platão político de Aristóteles ao século XX. Trad. Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo, Annablume.
Rosane de Almeida Maia – Universidade de Brasília – Brasília – DF – Brasil. E-mail: rosanealmaia@gmail.com.br