A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) | Mary Karasch

Desde o século XIX, o tema da escravidão tem sido central nos estudos sociológicos e históricos sobre a formação do Brasil. Como objeto de investigação, teve um percurso variado. A produção intelectual brasileira voltou-se para o tema a partir de diversas perspectivas e, logicamente, chegou a diferentes conclusões. Sem dúvida, a obra de Gilberto Freyre, da década de 1930, destaca-se pelo êxito em termos de apresentação e circulação de suas idéias (Pinheiro, 1999). Na década de 1950, também sobressaíram vários estudos,1 que, procurando ir contra a idéia de uma escravidão branda, acabavam por considerar os escravos como vítimas passivas do sistema — abordagem já bastante criticada pela historiografia brasileira da década de 1980 (Chalhoub, 1990).

Um esforço no sentido de resgatar os grupos subalternos, inclusive os escravos, como agentes de sua própria história (Machado, 1988; Slenes, 1999), pode ser identificado nas historiografias européia e norte-americana entre o final da década de 1960 e o início da de 1970. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), de Mary Karasch, originou-se da tese de doutorado defendida pela autora em 1972, estando inserida nesse período de renovação.

Durante a elaboração de sua tese, não havia muitos autores sobre escravidão urbana, especialmente no Brasil, com quem pudesse dialogar, a não ser pelo trabalho de Richard Wade (1964). Apesar disso, vários estudos antropológicos e históricos sobre comunidades africanas e o tráfico de escravos, que a influenciaram, foram produzidos nessa época, como os de Jan Vansina e Philip Curtin.

Entre a defesa da tese e a publicação do livro em inglês (1987), Karasch completou a pesquisa e pôde incorporar produções da década de 1970 e início da de 1980.2 Embora tenha sido um estudo pioneiro sobre escravidão urbana no Brasil, somente após 1987 o trabalho passou a ser citado de forma mais constante pelos historiadores brasileiros. Assim, a grande contribuição de sua obra para a historiografia brasileira se deu junto ou posteriormente à significativa produção sobre escravidão no Brasil da década de 1980 e, certamente, se tornará mais visível com a edição em português.

A investigação sobre a vida dos escravos é feita em uma perspectiva ampla: quem eram, como se adaptaram à nova sociedade, quais as atividades que lhes eram designadas, quais eram as condições materiais de vida (habitação, castigos, dieta) e os problemas de saúde a que estavam sujeitos. Também são considerados aspectos relacionados às identidades culturais referentes às suas origens e como foi se formando, de acordo com a autora, uma “cultura escrava afro-carioca”.

Para dar conta dos inúmeros aspectos da vida dos escravos considerados no livro, Karasch recorreu a vários tipos de fontes, cujos dados são bem organizados e utilizados no decorrer do texto. É de se notar a quantidade de relatos de viajantes — em torno de duas centenas —, assim como a quantificação dos preciosos registros de enterros da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro.3 Mas também foram pesquisados correspondências da polícia, registros notariais, casos jurídicos e testamentários, petições de escravos protestando contra tratamento cruel, teses médicas do século XIX, além de folclore e cultura material contemporânea, história da arte e tradições religiosas do século XX.

As quase 650 páginas são organizadas em 11 capítulos, incluindo também ilustrações, apêndices, notas e bibliografia. A primeira questão a qual Karasch se propõe responder diz respeito a quem eram essas pessoas trazidas da África. Os termos genéricos que identificavam os africanos no Rio são organizados em tabelas, explicitando-se todos os detalhes e nuanças das categorias contemporâneas — o que é muito útil para o leitor não especialista em escravidão. Além disso, são percorridos os caminhos traçados pelo tráfico, para se chegar às possíveis etnias às quais pertenciam os escravos africanos, mostrando-se, em seguida, como eles e seus descendentes se definiram e se agruparam como nações no Rio.

Depois de identificar as comunidades de onde vieram e como se organizaram na cidade, Karasch trata, minuciosamente, de uma questão fundamental em suas vidas: o momento da venda. Investiga as formas pelas quais podiam ser vendidos (leilões, lojas de varejo, anúncios, contatos pessoais), quem eram os compradores, quais eram as condições em que esperavam até serem vendidos.

Além disso, a autora consegue relativizar a experiência dessas pessoas: de acordo com a idade e o sexo, enfrentaram situações diferentes. Evidentemente, o contexto econômico é considerado, já que também influenciava o destino dos escravos, cuja maioria passava pelo trauma e insegurança de pelo menos uma venda e sofria com a separação de seus companheiros.

Acompanhando suas trajetórias depois da venda, Karasch passa a investigar, no cap. 3, como os cativos se inseriam na sociedade carioca, ressaltando as dificuldades enfrentadas nesse processo de adaptação à cidade. Porém, não perde de vista que, ao mesmo tempo em que aprendiam a reconhecer o lugar de cada pessoa na hierarquia social e qual deveria ser sua conduta diante das pessoas de status superior, desenvolveram uma cultura própria. Denominada “cultura escrava afro-carioca”,4 que é analisada de forma mais detida no cap. 8, era constituída por vários grupos sociais e religiosos.

Esses grupos, como se vê no cap. 9, representavam apoio muito importante para os cativos. Por isso, as características das crenças religiosas dos grupos de origens étnicas mais presentes na cidade no período são esmiuçadas, utilizando-se todas as pistas dos relatos de viajantes e dos relatórios da polícia.

Entrando cada vez mais no cotidiano dos escravos, Karasch identifica também as diferenças de status entre eles, que eram determinadas pela etnia, cor, sexo, idade, liderança e ocupação do cativo e pela situação da família do senhor. Vivendo numa sociedade altamente estratificada, podiam ter certa mobilidade, mesmo sem acesso ao sistema político (aberto só a descendentes branqueados), já que também se inseriam no clientelismo.

Nesse sentido, a possibilidade de obter uma carta de alforria funcionava como estímulo ao bom comportamento dos escravos, servindo aos senhores como forma de controle, o que é analisado no último capítulo. Os cativos que não se dispunham a esperar tanto pela liberdade lutavam contra a escravidão de forma mais direta através de fugas e resistências cotidianas (Reis e Gomes, 1996; Pinheiro, 1998).

Essa cultura própria, estudada com tanto cuidado por Mary Karasch, desenvolveu-se em condições materiais específicas não ignoradas no livro. Como faz em toda a obra, recorre aos relatos de viajantes analisando-os criticamente, já que dependiam da experiência que tiveram no Rio. Dedica o cap. 5, então, ao exame de toda espécie de problemas enfrentados pelos cativos devido às más condições de vida e de trabalho (moradia, roupas, alimentação, castigos e cuidados médicos inadequados), que contribuíam muito mais para as mortes prematuras do que a violência direta. Aponta também para o controle exercido pelo poder público e pela população em geral sobre castigos considerados cruéis e desmedidos. Associando essas circunstâncias às formas de contágio e disseminação de vetores, vermes, vírus, bactérias, chega-se às doenças que comumente atingiam os escravos e que poderiam ser letais ou não, dependendo, além de idade, sexo e condição física, do tipo e da quantidade de suas ocupações e da riqueza de seus senhores.

No cap. 6, a autora detém-se nas causas e nas doenças identificadas a partir, mormente, dos registros de óbitos da Santa Casa da Misericórdia, concluindo que o ambiente mórbido da cidade era a causa essencial da mortalidade dos escravos. O resultado da quantificação dos dados, complementado por teses e relatórios médicos da época, é explicado à luz de conhecimentos médicos atuais que ajudam a determinar a causa da morte. Assim como no caso das etnias africanas, as categorias utilizadas na primeira metade do século XIX para definir as doenças também são objeto de pesquisa detalhada, uma vez que vários termos usados consistem, muitas vezes, apenas no que consideramos, hoje em dia, um sintoma.

As carências nutricionais que também fazem parte da investigação, associando a dieta básica dos escravos a alguns sintomas descritos como causa mortis, são difíceis de serem identificadas, mas se pode considerar que tinham um impacto devastador sobre a saúde deles. Os africanos e seus descendentes enfrentavam problemas maiores devido às altas necessidades de ferro, à intolerância à lactose e à dificuldade de sintetizar vitamina D. Fica claro, contudo, que qualquer que fosse a doença, os cativos, em geral, estavam mais suscetíveis a ela devido às condições de vida. As conseqüências das moléstias, também por isso, eram piores.

O tipo de ocupação em que essas pessoas eram empregadas também repercutia em sua saúde. No cap. 7, Karasch analisa, justamente, as mais variadas atividades manuais de diferentes setores da economia exercidas por escravos. Examina, então, os tipos de trabalho, que poderiam ser especializados, semi-especializados ou sem especialização. Havia uma série de funções, muitas acumuladas por um mesmo escravo, sendo algumas ocupações tão duras que serviam de punição para rebeldes e fugitivos.

Enriquecendo o trabalho com uma análise demográfica da população (cap. 4), podemos saber quem morria, sua idade, seu sexo, a duração da vida dos cativos, as taxas de mortalidade e natalidade. Tais dados são relevantes para o estudo das comunidades escravas, que têm sido objeto privilegiado de investigação da historiografia brasileira das últimas duas décadas.

Em especial, quanto à análise das relações familiares escravas, nucleares ou extensas, podemos dizer que diversas pesquisas (de monografias a teses) têm sido feitas depois da publicação do livro (Slenes, op. cit.; Castro, 1995; Florentino e Góes, 1997). Utilizando outras fontes paroquiais e cruzando-as com inventários, novos debates têm apontado para conclusões diferentes das de Karasch. Sobretudo, as análises dos padrões de casamento e compadrio escravos têm indicado a existência de famílias numa proporção maior do que a sugerida pela autora e de estabilidade em algumas dessas relações (Guedes, 2000; Motta, 1999; Rocha, 1999; Góes, 1998). Do mesmo modo, algumas asserções sobre as atividades terapêuticas dos escravos podem ser abordadas de outras formas, considerando a popularidade dos terapeutas decorrente de uma escolha dos que procuravam tratamento e não apenas falta de opção devido à ausência de médicos diplomados (Soares, 1999; Pimenta, 1997).

Ao longo dos capítulos, em que são abordados diferentes aspectos da cultura escrava, percebe-se certa alternância entre a ênfase na unidade dos escravos em torno de uma nova cultura que estava se formando no Rio de Janeiro e nas especificidades dos grupos étnicos que chegavam constantemente à cidade na primeira metade do século XIX. Longe de ser uma contradição em seus argumentos, parece ser conseqüência de sua pesquisa minuciosa sobre a complexa sociedade estudada.

Bem conhecido dos historiadores da escravidão desde sua edição em inglês de 1987, com a publicação em português, um público muito maior pode ter acesso ao trabalho de Mary Karasch sobre a vida dos escravos no Rio de Janeiro na primeira metade do XIX. Assim, podemos esperar que a variedade de temas tratados no decorrer do livro, seja em capítulos específicos, seja em simples notas, continue a instigar e a contribuir para o desenvolvimento de novas pesquisas.

Notas

1 Muitos dos quais ligados ao projeto Unesco (como os trabalhos de Costa Pinto, Oracy Nogueira e Florestan Fernandes), com o objetivo de entender as relações raciais contemporâneas no Brasil. Ver Maio (1998); Gomes (1999).

2 A obra de Kenneth Kiple, por exemplo, auxiliou bastante a análise sobre as doenças dos escravos.

3 Preciosos porque, além de os dados serem muito relevantes para o tema, são de difícil acesso e encontram-se em um estado lastimável.

4 Termo introduzido a partir do vocabulário de categorias dos estudos norte-americanos sobre escravidão negra.

Referências

CASTRO, Hebe M. 1995 Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista — Brasil, século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.

CHALHOUB, Sidney 1990 Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo, Companhia das Letras.

FLORENTINO, Manolo e Góes, José Roberto 1997 A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

GÓES, José Roberto 1998 Escravos da paciência — estudo sobre a obediência escrava no Rio de Janeiro (1790-1850). Tese de doutoramento, Niterói, Universidade Federal Fluminense.

GOMES, Flávio 1999 ‘Em torno da herança: do escravo-coisa ao negro-massa’. Em Marcos Chor Maio e Glaucia Villas Boas (orgs.), Ideais de modernidade e sociologia no Brasil — ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa PintoPorto Alegre, Editora da UFRS.

GUEDES, Roberto 2000 Na pia batismal: família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de janeiro (primeira metade do século XIX). Dissertação de mestrado, Niterói, Universidade Federal Fluminense.

MACHADO, Maria Helena P. T. 1988 ‘Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da escravidão’. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 8, nº 16.

MAIO, Marcos Chor 1998 ‘Costa Pinto e a crítica ao negro como espetáculo‘. Em L. A. Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudançaRio de Janeiro, Editora da UFRJ.

MOTTA, José Flávio 1999 Corpos escravos, vontades livres: posse de escravos e família escrava em Bananal. São Paulo, Fapesp/Anna Blume.

PIMENTA, Tânia Salgado 1997 As artes de curar — um estudo a partir dos documentos da fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX. Dissertação de mestrado, Campinas, Unicamp.

PINHEIRO, Claudio 1999 Idéias em busca de pais — por uma análise sócio-histórica da circulação de formulações acerca da escravidão brasileira e seu papel na formação do Estado nacional. (mimeo.)

PINHEIRO, Claudio 1998 Quereis ser escravo? Escravidão, saberes de dominação e trajetórias de vida na cidade do Rio de Janeiro, 1808-1865. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, Museu Nacional.

REIS, João José e Gomes, Flávio 1996 Liberdade por um fio: história de quilombadas no BrasilSão Paulo, Companhia das Letras.

ROCHA, Cristiany 1999 História de famílias escravas em Campinas ao longo do século XIX. Dissertação de mestrado, Campinas, Unicamp.

SLENES, Robert Na senzala, uma flor1999 Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

SOARES, Márcio 1999 A doença e a cura — saberes médicos e cultura popular na corte imperialDissertação de mestrado, Niterói, Universidade Federal Fluminense.

WADE, Richard 1964 Slavery in the cities: the South 1820-1860Oxford, Oxford University Press.


Resenhista

Tânia Salgado Pimenta – Mestre em história social pela Universidade de Campinas. E-mail:spimenta@domain.com.br


Referências desta Resenha

KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Resenha de: PIMENTA, Tânia Salgado. Um guia da vida dos escravos no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.8, n.2, jul./ago. 2001. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.